São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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A NINFETA FEIA

ENSAÍSTA DISCUTE SE VLADIMIR NABOKOV TERIA SE APROPRIADO DE CONTO DE UM AUTOR QUASE DESCONHECIDO PARA COMPOR "LOLITA", UM DOS PRINCIPAIS ROMANCES DO SÉCULO 20

por Michael Maar

Você já não ouviu isso antes? O narrador na primeira pessoa, um homem culto de meia-idade, relembra a história de um "amour fou" passado. Tudo começa quando, durante viagem ao exterior, ele aluga um quarto em uma casa de família. No instante em que vê a filha da família, se apaixona perdidamente. Ela é uma pré-adolescente cujos encantos o escravizam imediatamente. Ignorando sua idade terna, ele se torna íntimo dela. No final ela morre, e o narrador, marcado para sempre pela garota, permanece só. O nome da menina dá título à história: "Lolita".
Conhecemos a menina e sua história, conhecemos o título. Pensamos também conhecer o autor, mas nos enganamos. Seu nome era Heinz von Lichberg.
"Lolita", de Von Lichberg, é um conto de 18 páginas publicado em 1916, 40 anos antes de seu homônimo famoso. A história é obra de um autor alemão de 25 anos que praticamente não deixou rastro nos arquivos literários. Mesmo em termos bibliográficos, ela é bem camuflada: "Lolita" está escondida dentro de um volume intitulado "The Accursed Gioconda" [A Gioconda Maldita]. É o nono da coletânea de 15 contos. Ainda em 1975 o livro podia ser comprado em um sebo de Berlim. É provável que, nos anos 1920 e 1930, fosse facilmente encontrável. Hoje, porém, só é possível vê-lo em algumas poucas bibliotecas universitárias.
Quem foi o criador da primeira "Lolita"? O autor não é encontrado em nenhuma enciclopédia de literatura. A única obra de referência biográfica que o menciona nem sequer acerta as datas de sua vida. É perdoável, já que Lichberg era um pseudônimo literário. O verdadeiro nome do autor era Heinz von Eschwege. Descendente de uma família antiga de Hesse, Von Eschwege nasceu em 7 de setembro de 1890 em Marburgo, filho de um tenente-coronel da infantaria. Aos 7 anos ele perdeu sua mãe. Durante a Primeira Guerra Mundial, foi tenente da Artilharia Naval.
Nesse período, além de "A Gioconda Maldita" e de uma antologia de poesia alemã, ele publicou contribuições nos periódicos "Jugend" e "Simplicissimus". Depois da guerra -durante a qual tinha sido lançado um volume de seus próprios poemas- ele trabalhou em Berlim, como jornalista para os jornais do Scherl-Verlag, o núcleo do posterior império Hugenberg. Suas cartas traziam o cabeçalho Eschwege-Lichberg, e ele ainda se assinava Eschwege, mas publicava seus escritos sob o nome de Heinz von Lichberg.
Ao ler o conto hoje e compará-lo com o romance, somos dominados por uma leve sensação de irrealidade e de déjà vu, como se tivéssemos entrado em uma das histórias labirínticas de Borges. A parte principal do conto, que possui pouco valor artístico, apresenta uma viagem à Espanha. O narrador anônimo, que escreve na primeira pessoa, parte do sul da Alemanha, depois de se despedir de dois irmãos idosos, proprietários de uma taverna que ele frequenta. Ele passa por Paris, chega a Madri e, depois, Alicante. Ali ele se hospeda em uma pensão à beira-mar. Seus planos não vão além de férias tranqüilas. Mas então algo acontece: após um breve adiamento, um vislumbre primeiro e fatal que não pode deixar de nos remeter à "Lolita" posterior [Companhia das Letras]. Nesta, o narrador na primeira pessoa Humbert Humbert faz uma viagem para encontrar um lugar calmo para trabalhar e que tenha um lago por perto. Na cidadezinha de Ramsdale ele visita a proprietária Charlotte Haze, que ele acha tão pouco atraente quanto sua casa.
Decidido, em seu íntimo, a partir, ele acompanha a sra. Haze ao que ela descreve como a "piazza" do estabelecimento, e, de repente -"sem nenhum aviso prévio, uma onda azul ergueu bem alto meu coração"-, ele vê a criança imortal, o renascimento de seu primeiro amor de beira-mar: "Era a mesma criança -os mesmos ombros frágeis cor de mel, as mesmas costas flexíveis, nuas e sedosas, os mesmos cabelos castanhos".
Da mesma maneira, o narrador de Lichberg só precisa de um vislumbre para se emocionar, e, da mesma maneira, a beleza da menina dele também possui o toque sombrio de um mistério do passado.
"A pensão administrada por Severo Acosta era uma casa pequena e torta com balcões grandes, apertada entre outras casas semelhantes. O dono da casa, falador e amigável, me levou até um quarto com uma belíssima vista do mar, e não havia nada para me impedir de desfrutar uma semana de beleza sem perturbações. Até o segundo dia, quando vi Lolita, a filha de Severo. Ela era muito jovem para nossos padrões nortistas, com sombras sob seus olhos sulistas e cabelo de uma tonalidade incomum de ruivo dourado. Seu corpo era esbelto e flexível como o de um menino; sua voz, profunda e escura." Como Humbert, nosso narrador se sente imediatamente enfeitiçado e abandona qualquer idéia de partir. Sua Lolita, também, assim como a posterior Dolores Haze, é sujeita a sofrer mudanças violentas de estado de ânimo. Assim começa a descrição que Lichberg faz de uma paixão enigmática que leva o narrador a abandonar qualquer idéia de partir. Lolita é sujeita a caprichos e estados de humor variáveis. Será que ela quer algo dele ou não? Será que esconde segredos em sua alma de criança? Assim como no caso do agradavelmente surpreso Humbert Humbert, ao final é Lolita quem termina por seduzir o narrador, e não o contrário. O autor não o afirma claramente, mas suas elipses e seus rodeios não deixam ao leitor grande margem de dúvida. O texto é ao mesmo tempo tão pouco explícito e tão pouco ambíguo quanto cabe à época. Os dias e noites dedicados por um amante de meia-idade à doce boca de uma linda ninfeta se tornaram sexualmente indecentes apenas mais tarde, com Nabokov, que primeiro pensou em publicar seu manuscrito anonimamente e, mais tarde, escapou da censura por pouco. Apesar disso, a correspondência entre as tramas básicas, a perspectiva da narrativa e a escolha do nome da protagonista não deixa de ser notável. Infelizmente, porém, como observa Van Veen em "Ada", não existe lei lógica que possa nos dizer quando um número dado de coincidências deixa de ser acidental. Em sua ausência, não existe maneira de responder -e, é claro, menos ainda de deixar de lado- a pergunta inevitável: teria Vladimir Nabokov, autor da imortal "Lolita", o orgulhoso cisne negro da ficção moderna, tido conhecimento do patinho feio que foi seu precursor? Poderia ele -mesmo que apenas inconscientemente, já que presume-se que um citar consciente teria sido impensável- ter estado sob seu estímulo? Seja como for, Nabokov poderia facilmente ter cruzado o caminho do autor de "Lolita", o conto. Heinz von Lichberg viveu durante 15 anos na zona sudoeste de Berlim, praticamente no mesmo bairro de Nabokov. Quando criança, Nabokov passou por Berlim várias vezes, quando sua família estava a caminho da França. Um ano depois de a família fugir da Rússia, em 1919, seus pais e irmãos se mudaram para o distrito de Grunewald, em Berlim, onde Vladimir os visitava em suas férias de Cambridge. Em março de 1922 seu pai foi assassinado por um monarquista russo no Teatro da Filarmônica de Berlim. Naquele verão, Vladimir se mudou da Inglaterra para Berlim e -algo que não poderia ter previsto- permaneceu ali até 1937. Naqueles 15 anos em Berlim ele ficou noivo de uma alemã e se separou dela; conheceu Vera Slonim, casou-se com ela e tornou-se pai de um filho e, além disso, tornou-se Sirin, o escritor russo de maior destaque da geração jovem da época. Em Berlim ele escreveu nada menos que nove romances russos, e tinha quase concluído o décimo e melhor deles, "The Gift", quando deu início a sua conquista da literatura americana com "The Real Life of Sebastian Knight". Nada disso nos diz se Sirin-Nabokov pode ter lido a "Lolita" alemã. No que diz respeito a seus conhecimentos de assuntos alemães, Nabokov sempre se manteve reticente, quando não o negava simplesmente. Ele deixava subentendido que, isolando-se dentro da comunidade de exilados russos para evitar perder sua língua-mãe, ele quase não falava o alemão e não lia livros alemães. De fato, Nabokov nunca chegou perto de dominar o alemão como fazia com o francês. Mas não estava mentindo quando, no pedido que fez para obter uma bolsa de estudos Guggenheim, em 1947, afirmou ter "conhecimento razoável do alemão". De qualquer maneira, seria inimaginável que um gênio poliglota como ele pudesse viver em um país por tanto tempo sem alcançar pelo menos um comando passivo de sua língua. E sua antipatia posterior -e eminentemente compreensível- pelos alemães não impediu que seu "conhecimento razoável" da língua deles se estendesse a suas letras. Seu comentário sobre "Eugênio Oniéguin", de Puchkin, por si só revela uma erudição especialista que nem todo germanista seria capaz de demonstrar. Nabokov não apenas tinha familiaridade com os românticos e clássicos alemães como sua obra é pontilhada de alusões à literatura alemã.

A célula original
Ele valorizava ao extremo Goethe e Hofmannsthal, respeitava Kafka e desprezava Thomas Mann (cujo "A Montanha Mágica" estudou com a ajuda de um dicionário). Ele traduziu para o russo vários poemas de Heine e a "dedicatória" do "Fausto", de Goethe. Existem indicativos de que tenha lido Schopenhauer no original. Materiais menos corriqueiros também entravam em seu campo de visão: o material de base de seu romance "Despair" saiu de jornais alemães, e em um de seus contos ele lançou uma farpa contra "Bruder und Schwester", de Leonhard Frank, às vezes visto como a fonte de "Ada".
Alguém que tivesse conhecimento de Leonhard Frank com certeza poderia ter topado com Heinz von Lichberg. Não como romancista, mas como jornalista do "Berliner Tages-Anzeiger", Lichberg estava permanentemente presente durante os 15 anos em que Nabokov viveu em Berlim. No entanto, supondo -digamos, graças a uma dessas coincidências mais freqüentes na vida do que devem ser em qualquer romance- que a coleção de "grotescos" do autor alemão tenha caído nas mãos do escritor russo, teria Nabokov se interessado pelo tema de "Lolita" já naquele momento de sua vida?
Sim, com certeza. Vinte anos antes de concluir seu próprio romance sobre o tema, ele já incluíra um esboço dele na boca de um personagem secundário. "Ah, se eu tivesse um ou dois instantes de tempo", suspira o senhorio do protagonista em "The Gift", "que romance eu seria capaz de redigir!".
"Imagine algo assim: um sujeito velho -mas ainda no vigor dos anos, fogoso, sedento de felicidade- conhece uma viúva, e ela tem uma filha, ainda uma menininha -você sabe o que quero dizer-, em quem nada é formado ainda, mas que possui um jeito de andar que deixa você louco, fora de si. Uma garota miúda, esbelta, muito loira, pálida, com sombras azuis sob os olhos -e, é claro, ela nem sequer olha para o velho safado. O que fazer? Bem, sem perder muito tempo pensando, ele se casa com a viúva. OK. Eles vão viver juntos, os três. Assim se pode continuar por tempo indefinido -a tentação, o tormento eterno, a ânsia, as esperanças loucas." E assim Nabokov de fato continuou, escrevendo, cinco anos mais tarde, em Paris, a novela "The Enchanter", em que a célula original de "Lolita" já forma um embrião completo.
Dez anos depois ele começou a compor o romance, que, apesar das tentações do incinerador, concluiu vitoriosamente em Ithaca, na primavera de 1954.
É interessante, porém, que Lolita, embora surja tão precocemente como figura e como tema, como nome surja apenas bem mais tarde. Nabokov disse ao primeiro comentarista de "Lolita", Alfred Appel Jr., que originalmente tencionou chamar sua heroína de Virgínia e intitular o livro "Ginny". No manuscrito, ela teve durante muito tempo o nome Juanita Dark. Foi apenas mais tarde que Nabokov descobriu mil razões pelas quais o nome Lolita, com o qual o livro começa e termina, se tornara essencial. De que profundezas de semiconsciência ou criptomnésia pôde o nome, atraído por alguma isca nova, ter ascendido à superfície?
A figura de Lolita, em si, possui tanta semelhança com sua precursora hispano-germânica quanto qualquer menina pode ter com outra. Elas não são gêmeas, de maneira alguma, e a semelhança entre elas é passageira -tão passageira quanto o perfume do pó-de-arroz espanhol que percorre o primeiro amor de Humbert. Em ambos os casos Lolita é um diminutivo de Lola, em um caso de origem espanhola e, no outro, mexicana. Existe também, como Appel observou, um traço alemão na Lola de Nabokov. A "femme fatale" desse nome que aparece no filme "O Anjo Azul" [1930], de Sternberg, era representada por Marlene Dietrich, a quem Humbert certa vez compara a mãe de Lolita. Ao partir, ele chega a chamá-la de Marlene e, em outra ocasião, de Lotte, enquanto o sobrenome dela, Haze, é semelhante ao alemão Hase (coelhinha), como Nabokov confidenciou a um entrevistador da revista "Playboy" -talvez apenas para lisonjear a revista. O fato de Humbert certa vez chamar sua Lolita de "die Kleine" integra o mesmo pano de fundo espantosamente consistente. Nada disso, entretanto, aponta necessariamente para a Lolita primeira, de Lichberg. Entre as semelhanças entre a "Kleine" de 1916 e a de 1954, que certamente existem, uma delas, de qualquer maneira, diz respeito muito mais à "Ur-Lolita" própria de Nabokov. Lichberg dirige seu foco narrativo desde o início para o corpo esbelto de Lolita, "como o de um menino". Do mesmo modo, a primeira descrição que Humbert faz de Lolita, quando ela traz de volta a imagem de sua paixão infantil à beira-mar, canta seus "quadris pueris". Em vários momentos Nabokov, sem que isso dê na vista, a veste em roupas de menino; em uma ocasião Humbert a chama de "mon petit", em outro ele fala, embevecido, de seus "lindos joelhos de menino". Humbert não está citando Heinz von Lichberg, mas um jovem chamado Erwin. Pois a pré-história de Lolita tem origens mais distantes do que "The Gift". A primeira aparição de uma menina ainda não formada, cujo andar é capaz de enlouquecer um homem de idade madura, ocorre no conto "A Nursery Tale" (1926), de Nabokov. Na companhia de um velho poeta -em que, anos depois, Nabokov, para sua própria surpresa, identificaria um antecessor de Humbert-, uma criança-mulher passa por Erwin, que, ele próprio, não deixa de ter alguns pendores humbertianos, embora seja apreciador especial de "garçons manqués". "The Nursery Tale" não é o tipo de fábula que os irmãos Grimm ou Hans Christian Andersen nos convidariam a apreciar.

Seqüência de pré-Lolitas
Sua trama, tratada com elegância, brinca com uma fantasia masculina clássica. O diabo se oferece para realizar os tímidos sonhos eróticos de Erwin. Ele terá um dia no qual, por meio de seu comando mental, poderá escolher um número ilimitado de garotas para serem suas parceiras de folguedos. A décima segunda e última de suas concubinas é uma criança de cerca de 14 anos que aparece num vestido preto decotado: "Havia algo de bizarro nesse rosto, bizarro era o olhar fugaz de seus olhos muito brilhantes demais, e, se ela não fosse apenas uma menininha -a neta do velho, sem dúvida-, poder-se-ia desconfiar que seus lábios tinham sido retocados com ruge. Ela caminhava rebolando os quadris muito, muito levemente; suas pernas se aproximavam mais, ela perguntava algo a seu companheiro em voz alta -e, embora Erwin não tivesse dado nenhum comando mental, sabia que seu rápido sonho secreto tinha sido realizado".
Aqui, sem dúvida, temos a primeira de uma seqüência de pré-Lolitas, uma cadeia que, desse momento em diante, não mais será rompida. Ela ainda não tem nome, mas já é uma ninfeta fatal, como Nabokov a descreveria mais tarde.
E, desde o início, com sua primeira aparição em sua obra, a figura revela traços demoníaco-fantasmagóricos, aos quais o jovem autor ainda faz referência, sem se precaver. Erwin é convocado à "rua Hoffman" à meia-noite, por um demônio. Não há como deixar passar despercebida a alusão de Nabokov: os contos fantásticos do romântico alemão E.T.A. Hoffman interligam imperceptivelmente o sonho e a realidade demoníaca. Brian Boyd descreve "The Nursery Tale" como sendo "propositalmente hoffmanesco".
Mas desse mastro literário corre um fio de seda que o liga ao "Lolita" alemão. Não ao final, mas já em sua primeira oração, o conto de Lichberg indica o modelo em cuja tradição ele se enxerga: "Alguém atirou o nome de E.T.A. Hoffman na conversa. Novelas musicais".
Em companhia agradável, a conversa passa a girar em torno das relações entre arte e realidade, introduzindo uma narrativa interior. É essa a introdução convencional à história de Lichberg -um artifício do qual o próprio Nabokov, quando jovem, nem sempre se abstinha. A senhora da casa diz ao jovem escritor presente: "Você acha possível que essas coisas, sobre as quais eu raramente chego mesmo a ler, possam me manter acordada à noite? Minha razão me diz que são apenas fantasias, e, no entanto..." "É porque não são apenas fantasia, condessa!" O diplomata deu um sorriso bem-humorado. "Mas você não está querendo dizer que Hoffman viveu esses terrores!" "É exatamente isso o que quero dizer", respondeu o escritor, "ele os viveu, sim. Não, é claro, com suas mãos e seus olhos. Mas, como era escritor, ele viveu o que escreveu -ou, melhor dizendo, escreveu apenas aquilo que já vivera espiritualmente...'".
É a deixa para a intervenção de outro ouvinte, um professor universitário que, até esse momento, se mantivera em silêncio. Ele quer relatar algo que pesa sobre sua mente há anos e que ele ainda não sabe se foi experiência ou fantasia. Assim começa a narrativa real de uma história altamente hoffmanesca, uma história cujo núcleo encerra justamente o tema que germinou na ficção de Nabokov dos anos 20 em diante.
Eis a base da história. Na cidade do sul da Alemanha onde estuda, o narrador entra em uma taverna pertencente a dois irmãos idosos e estranhos, com barbas revoltas, ruivas com tons grisalhos. Ele se senta à mesa deles, recebe vinho espanhol para tomar e vê um lenço de cabeça de seda preta em uma cadeira próxima, do tipo que as garotas espanholas usam em dias de festa. Ocorre a ele que algo fora do comum pode estar acontecendo no lugar, mas ele não pensa mais no assunto. Certa noite, ao passar pela taverna, ele ouve vozes jovens iradas, alteradas, uma briga violenta e um grito de pavor saído da boca de uma mulher. Na manhã seguinte, porém, tudo no estabelecimento dos dois irmãos parece tão normal que ele coloca sua experiência em dúvida e tem vergonha de perguntar a eles sobre o que ouviu. Pouco depois ele parte em viagem à Espanha, na qual conhecerá Lolita, e o leitor descobrirá a solução do mistério.
Lichberg batizou seus contos de "grotescos". A descrição não cai bem em sua "Lolita", que recebe tratamento mais condizente com um conto gótico ou mesmo com as histórias de fantasmas de Hoffman. Nabokov não estava acima de escrever romances fantasmagóricos ao estilo de Hoffman. Além da chamada "dimensão espectral" que já foi detectada em sua obra, ele não tinha receios em aderir a esse gênero resistente.
Quando tinha a mesma idade em que Lichberg inventou sua criança-mulher espanhola, Nabokov-Sirin escreveu "La Veneziana", uma história que brinca com tropos dessa forma. O título e o tópico desse trabalho -que não deixa de ter atrativos- de sua fase inicial é uma pintura antiga que vem acompanhada de uma história incomum. O quadro representa uma beldade que possui uma semelhança espantosa com uma inglesa viva, mas que, na realidade, é -ou deve ser- uma senhora veneziana de vários séculos atrás. A semelhança é tão espantosa que o protagonista da história, que está apaixonado pela inglesa, passa sessões secretas sentado diante do retrato e, no final -como na história do pintor chinês-, desaparece dentro dela.
A "Lolita" de Lichberg não vai tão longe assim. No entanto também com essa relação Nabokov poderia ter encontrado nela seu tema, como se fosse espelhado. O viajante na Espanha topa com um desenho na pensão que parece retratar sua amada. Mas a impressão é enganosa. ""Você pensa que é Lolita", sorriu Severo, "mas é Lola, a avó da bisavó de Lolita, que foi estrangulada por seu amante depois de uma briga, cem anos atrás."'
Eis, também, a solução do mistério: o passado. Com ele, chegamos ao cerne da trama de Lichberg. Lolita não é apenas uma menina encantadora qualquer: ela é amaldiçoada e sofre de compulsão repetitiva demoníaca. O narrador fica sabendo desse passado assombrado quando finalmente decide partir, já temendo o amor perigoso de Lolita. "Nos sentamos, e Severo contou a história à sua moda amigável. Ele falou de Lolita, que, em seu tempo, tinha sido uma das mulheres mais lindas da cidade, tão bela que os homens que a amavam tinham que morrer. Pouco após o nascimento de sua filha, ela foi assassinada por dois de seus amantes, a quem ela atormentara até levá-los à loucura.
E, desde então, foi como se uma maldição tivesse sido imposta à família. As mulheres sempre tinham apenas uma filha, e sempre morriam, dementes, algumas semanas depois de dar à luz uma criança. Mas todas as meninas eram lindas, tão lindas quanto Lolita! "Minha mulher morreu assim", ele sussurrou em tom grave, "e minha filha também morrerá.' Eu mal conseguia encontrar palavras para confortá-lo, pois o temor por minha pequena Lolita era mais forte do que todos meus outros sentimentos. Quando entrei em meu quarto, à noite, encontrei uma pequena flor vermelha, desconhecida para mim, sobre o travesseiro de minha cama. O presente de despedida de Lolita, pensei comigo mesmo, e a peguei em minha mão. Então vi que, na realidade, era branca, e que só estava vermelha por estar tingida com o sangue de Lolita.


Maldição, demonismo, compulsão repetitiva: são essas as correntes subjacentes às duas lolitas


Era assim que ela amava." Nessa noite o narrador é testemunha de uma cena fantasmagórica de assassinato. Ele pensa ver como Lolita -não: sua antepassada, Lola, "ou terá realmente sido Lolita?"- leva dois amantes à fúria e acaba sendo morta por eles. Nos assassinos, ele reconhece os gêmeos Aloys e Anton Walzer. Na manhã seguinte, ele descobre que Lolita morreu durante a noite. "Não posso descrever o que essas palavras me fizeram, e, se eu pudesse, seria como uma profanação falar disso. Minha amada Lolita, minha pequena, estava deitada em sua caminha estreita, com os olhos bem abertos. Seus dentes estavam cerrados convulsivamente sobre seu lábio inferior, e seus cabelos loiros e perfumados estavam revoltos." Com o coração partido, ele deixa a Espanha no navio seguinte. "Mas a alma de Lolita eu levei comigo." Anos mais tarde, ele retorna à cidade do sul da Alemanha, indaga sobre os irmãos Walzer e fica sabendo que, na manhã após a noite em que Lolita morreu, eles foram encontrados mortos em suas cadeiras de reclinar ao lado do fogão, com sorrisos amigáveis nos rostos. Maldição, demonismo, compulsão repetitiva: são essas as correntes subjacentes à outra "Lolita", também. A criança-mulher de Nabokov também é uma "revenant", a reencarnação de uma "gamine sans merci" anterior, fatal. Annabel, sua primeira paixão da praia, incute o desejo pelas ninfetas para sempre em Humbert. Ela lhe lança um feitiço do qual ele só poderá escapar ao deixar que ela reencarne em Lolita. O livro de Nabokov não trata de pedofilia, mas de demonismo. Humbert vive sob uma compulsão erótico-demoníaca. Já em seu "The Nursery Tale" é o demônio quem entrega a primeira Lolita ao herói. Isso não mudou em sua "chef d'oeuvre". De acordo com a queixa contundente de Humbert, é o próprio demônio quem o incentiva e o faz de tolo e quem, mais tarde, terá que lhe dar um descanso se quiser conservá-lo como seu brinquedo por mais tempo. Mas não é apenas Humbert o objeto das maquinações demoníacas. Por sua definição inconfundível, a ninfeta não é humana, mas demoníaca. Lolita é "o demônio imortal disfarçado em criança menina". Será preciso dizer que a Lolita de Lichberg também está presente aqui, nos bastidores? A menina de Lichberg também é metade demônio, metade vítima de uma maldição e, como seu amante, sujeita a uma compulsão vinda do passado. Em Lichberg, há até mesmo um prazo temporal preciso para o feitiço entrar em ação. Quando o narrador deixa Lolita, ela o morde na mão com toda a força de sua boquinha. "Essas cicatrizes do amor", confessa a vítima a seus ouvintes, "se conservaram indeléveis, mesmo 25 anos mais tarde." Encontramos o mesmo intervalo de tempo quando Humbert vê Lolita pela primeira vez -seu primeiro amor reencarnado, aquela de cujo encantamento ele jamais escapou: "Os 25 anos que vivi desde então reduziram-se a um ponto latejante e se desvaneceram."

Perda de identidade
Em seu caso, também, um quarto de século não foi capaz de extinguir a magia do primeiro amor-maldição. E o padrão -é o padrão de todas as histórias de amor e de morte- persiste. O que se repete compulsivamente ao longo dos anos sempre termina por explodir em violência. A história de Lichberg nos conduz à cena, que lembra um sonho, de um assassinato dramático e grotesco. A cruel Lola chama seus amantes a competirem por ela. Ela amará aquele que se revelar mais forte -eles crescem até seus ossos racharem; amará o mais velho -o cabelo cai de suas cabeças; amará aquele que tem a barba mais comprida e feia -longos pêlos ruivos se projetam dos rostos distorcidos dos irmãos Walzer, que então, aos gritos de fúria e desespero bestial, se atiram sobre Lola e a estrangulam. "Fale pela última vez -ou irás ao inferno com sua beleza três vezes amaldiçoada." O final do livro de Nabokov também é uma morte fantasmagórica, que lembra algo saído de um sonho. Humbert e Clare Quilty, os dois amantes de Lolita, se misturam nessa cena, tornando-se os gêmeos que foram desde o início em Lichberg. O sedutor de Lolita, Quilty, é a sombra escura de Humbert, seu segundo eu. Em sua briga, eles chegam a perder suas identidades gramaticais: "Rolei sobre ele. Rolamos sobre mim. Rolaram sobre ele. Rolamos sobre nós". Quando Humbert finalmente consegue matar seu alter ego -o que é difícil, já que as balas no corpo de Quilty, em lugar de destruí-lo, parecem lhe infundir nova energia-, ele sela sua própria sorte. Algumas semanas mais tarde, também Humbert, o sátiro trágico, é um homem morto.

A arte tem a última palavra
No conto de Lichberg, não é o rival quem é morto, mas a mulher. Mas Nabokov também brinca com essa variante. Não apenas o "leitmotiv" de citações de "Carmen" atrai seu leitor até o fim por essa trilha falsa, sugerindo que o amante traído pode acabar por disparar contra sua amada infiel. Mesmo em seu adeus a Lolita, Humbert flerta com a idéia de sacar seu revólver e fazer algo estúpido. Como sabemos, a grávida senhora Schiller, em quem Lolita se transformou, é poupada desse fim.
Indiretamente, porém, a maldição ainda parece se irradiar da obra de Lichberg. Lola é assassinada logo após a morte de sua filha. Lolita morre nas semanas seguintes ao parto de sua filha natimorta.
A última palavra, é claro, não é da morte, mas da arte. Lolita e sua história, repleta de sangue, tutano e lindas moscas verdes reluzentes, fazem de Humbert um escritor. O romance termina com sua esperança da única imortalidade que ele e sua musa poderão dividir: o refúgio da arte. O amante do conto de Lichberg segue o mesmo caminho. Também ele é iniciado na arte por Lolita. Quando conclui sua história, a condessa -que o ouviu de olhos fechados- murmura: "Você é um poeta". Existem apenas três possibilidades, pelo menos até que alguém nos mostre uma quarta.
A primeira é que estamos na presença de uma dessas coincidências fortuitas que ocorrem repetidas vezes na história da arte e da ciência. Essa possibilidade não pode ser excluída. Mas, pelas barbas do profeta, isso seria um verdadeiro milagre.
A segunda possibilidade é que Nabokov tinha conhecimento do conto de Lichberg e, metade inserindo e metade apagando seus rastros, se prestou àquela arte da citação à qual Thomas Mann, ele próprio mestre nela, dava o nome de "plágio de alto nível". Plágio? Um absurdo. Afinal, a literatura sempre envolveu a repetição de motivos já familiares: em que ela consiste, senão em literatura? Entretanto, deixando isso de lado, essa segunda possibilidade é tão improvável quanto a primeira. Ela não combina com Nabokov. Alusões a Poe, Proust ou Puchkin, a Shakespeare, Chateaubriand ou Joyce, que pululam em sua obra, possuem uma valência que alusões a um escritor menor e desconhecido jamais poderiam ter. Nabokov não tinha necessidade de plagiar e tampouco teria enobrecido um Von Lichberg, citando o nome de sua heroína.
Isso deixa a terceira possibilidade como o palpite mais plausível. De alguma maneira misteriosa, ""A Gioconda Maldita", de Lichberg, caiu nas mãos de Nabokov. Folheando o livro, ele poderia ter topado com a história da ninfeta, e assim o tema teria começado a passear por sua mente. Ele esqueceu a história ou pensou tê-la esquecido. Também desse fenômeno, a criptomnésia, a história da arte oferece exemplos suficientes.
Décadas mais tarde, atraídos à superfície por novas iscas, nomes e partes dos detalhes começaram a sair das profundezas de sua memória. O momento de maior acerto ao escrever, explicou Nabokov em entrevista que concedeu à televisão em 1966, lhe ocorria quando ele se percebia indagando: "Como isso veio até mim? Como é que existia em minha cabeça antes mesmo de eu pensar nisso?". Tal é a graça da inspiração. Como a bênção bíblica de duas faces, ela pode vir do alto, mas também pode ascender dos calabouços da memória.
O patinho feio e o cisne soberbo -se essa imagem remete em demasia aos contos de fada, ela também pode ser expressa mais tecnicamente. Heinz von Lichberg, que não deixava de possuir talento, mas era abertamente imaturo, se ocupou em fabricar sua "Lolita" com pano, madeira, papel e barbante. Vladimir Nabokov usou materiais semelhantes -mas, com eles, criou um papagaio que desapareceu no céu azul da literatura.

Michael Maar é pesquisador e ensaísta alemão. A versão integral do artigo acima foi publicada no "Times Literary Supplement".
Tradução de Clara Allain.


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