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Reedição da obra do crítico e ensaísta literário Otto Maria Carpeaux pela
Topbooks, em parceria com a Editora da UniverCidade, terá dez volumes
Uma erudição atraente e sem traças
NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas
Era uma vez uma atividade especial, mas não especializada, considerada antes uma disciplina humanística do que um tipo de ciência. Seus praticantes podiam ser
diplomados em direito, engenharia, medicina etc. ou não ter diploma algum; escreviam em jornais,
revistas, publicavam livros, davam
conferências e aulas, mas sua hierarquia se devia mais aos méritos
que à antiguidade e aos títulos.
Seus interesses tinham um centro forte e claro, bem como uma
virtualmente infindável periferia.
Eles tratavam de um certo assunto
que não era propriedade exclusiva
de ninguém, e os melhores dentre
eles desejavam ardentemente que
pertencesse a todos. Eles falavam
e/ou escreviam na língua comum
dos seres humanos letrados e acreditavam que seu trabalho tinha
uma função definida, qual seja, a
de servir como intermediário entre
algo em busca de um público e um
público em busca de um algo. Esse
algo era a literatura, e a atividade
em questão chamava-se crítica literária.
O judeu austríaco Otto Maria
Karpfen, que deixou, nas vésperas
da Segunda Guerra, seu país nazificado, tornou-se, com o nome de
Carpeaux, um de seus mais exemplares praticantes no Brasil.
Não se pode, assim, exagerar a
importância do primeiro volume
(de dez planejados pela editora
Topbooks/Ed. da UniverCidade)
de sua obra, que, com o nome de
"Ensaios Reunidos 1" (preço ainda
não definido) e agrupando entre
duas capas "A Cinza do Purgatório" (1942), "Origens e Fins"
(1943), "Respostas e Perguntas"
(1953), "Retratos e Leituras"
(1955), "Presenças" (1958) e "Livros na Mesa" (1960), recoloca em
circulação, num delicioso catatau
maciço de quase mil densas páginas, o melhor de seu trabalho.
Pois, se no país de adoção ele fez e
escreveu muitas coisas, dedicando-se, por exemplo, ao jornalismo
político e à crítica de música, seu
grande papel, sem dúvida, foi o de
crítico literário, e sua forma ideal
de expressão, o ensaio breve.
Assim, embora tenha mesmo escrito uma história da literatura ocidental (e outra, da literatura alemã) que não tem igual nem rival
no Brasil e, talvez, em português,
mais do que um grande tratado, o
resultado é, como observou Sebastião Uchoa Leite, "a tentativa de
uma sistemática do que está disperso nos artigos e ensaios (...)
uma leitura da literatura ocidental,
e por isso se presta com frequência
a uma leitura ensaística".
Seu trabalho e seus objetivos,
seus interesses e seu "approach"
(que convém chamar não tanto de
método quanto de estilo, ou seja,
"escolha", de acordo com ele, "de
ritmos dos fatos, escolha dos próprios fatos"), a função que acreditava ter, didática sem dúvida, mas
de um didatismo nem normativo
nem institucional, e dependente,
portanto, da persuasão e da empatia, tudo isso teria feito Carpeaux
se sentir perfeitamente à vontade,
conversando no século 18 com, digamos, Diderot num salão francês
ou com o dr. Johnson num "drawing room" britânico, mas não
com catedráticos e livres-docentes
nos atuais departamentos universitários de estudos pós-coloniais,
de "gender studies" (estudos de
gênero) etc.
Carpeaux falava em seus ensaios,
geralmente publicados em periódicos e jornais de grande circulação, de livros e de escritores (sem
traçar essa absurda linha divisória
tácita que impede sistematicamente a justaposição e o confronto entre os nacionais e os estrangeiros),
de poemas e de poetas, de historiadores e de história, de filósofos e filosofia, de uma fantástica variedade de temas que se estendiam de
um detalhe de "Macbeth" aos seus
(des)encontros com Franz Kafka,
da alta cultura à cultura popular,
da tradição à vanguarda...
Sua erudição, em várias línguas,
era tão imensa quanto a sua capacidade de convertê-la em algo não
apenas acessível quanto atraente.
Quantos críticos hoje em dia seriam capazes, como ele, de tornar
agradável (como era para mim) a
visita mensal ao consultório da
dentista, porque na ante-sala desta
é que estavam os números antigos
da revista na qual ele apresentava
aos leigos Kaváfis ou Sterne?
Pode-se discutir infindavelmente se ele estava certo ou errado em
tal ou qual juízo, se ele foi justo ou
não com este ou aquele autor, se
muitas de suas conclusões envelheceram ou continuam pertinentes. O curioso, no entanto, é que, se
bem que tais discussões não sejam
irrelevantes (pelo contrário: são
debates assim que constituem o tecido conjuntivo daquilo que algum
tempo atrás chamavam de cultura), o resultado delas não deduz
em nada da importância de Carpeaux. O valor de seus escritos decorre muito menos das conclusões
ou até mesmo inconclusões eventualmente oferecidas do que da
qualidade e da inteligência (para
nem falar da elegante clareza) da
argumentação. Não são poucos os
seus ensaios cuja importância está
no fato de terem levantado questões que antes não haviam ocorrido a ninguém.
A que se deve isso? Sua formação
na Europa Central ainda cosmopolita do entre-guerras, seu multilinguismo num meio multilíngue,
sua carga eclética e onívora de leituras e a inesgotabilidade de seus
interesses poderiam ser aventados
como uma explicação. Mas talvez
haja outra, mais simples e mais
fundamental. Cético e indagador
como era, disposto a duvidar de
julgamentos estabelecidos, se há
algo que, afinal, ele não costumava
pôr em dúvida era a dignidade de
seu ofício. Um de nossos últimos
humanistas, Carpeaux sabia qual
era seu trabalho, acreditava em sua
importância e, em vez de se entregar aos prazeres narcisistas das auto-indagações irresolúveis e das
especulações especulares tão comuns hoje em dia nesse ramo, dedicou-se simplesmente a praticar a
crítica literária.
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