São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
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Reedição da obra do crítico e ensaísta literário Otto Maria Carpeaux pela Topbooks, em parceria com a Editora da UniverCidade, terá dez volumes
Uma erudição atraente e sem traças

NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

Era uma vez uma atividade especial, mas não especializada, considerada antes uma disciplina humanística do que um tipo de ciência. Seus praticantes podiam ser diplomados em direito, engenharia, medicina etc. ou não ter diploma algum; escreviam em jornais, revistas, publicavam livros, davam conferências e aulas, mas sua hierarquia se devia mais aos méritos que à antiguidade e aos títulos.
Seus interesses tinham um centro forte e claro, bem como uma virtualmente infindável periferia. Eles tratavam de um certo assunto que não era propriedade exclusiva de ninguém, e os melhores dentre eles desejavam ardentemente que pertencesse a todos. Eles falavam e/ou escreviam na língua comum dos seres humanos letrados e acreditavam que seu trabalho tinha uma função definida, qual seja, a de servir como intermediário entre algo em busca de um público e um público em busca de um algo. Esse algo era a literatura, e a atividade em questão chamava-se crítica literária.
O judeu austríaco Otto Maria Karpfen, que deixou, nas vésperas da Segunda Guerra, seu país nazificado, tornou-se, com o nome de Carpeaux, um de seus mais exemplares praticantes no Brasil.
Não se pode, assim, exagerar a importância do primeiro volume (de dez planejados pela editora Topbooks/Ed. da UniverCidade) de sua obra, que, com o nome de "Ensaios Reunidos 1" (preço ainda não definido) e agrupando entre duas capas "A Cinza do Purgatório" (1942), "Origens e Fins" (1943), "Respostas e Perguntas" (1953), "Retratos e Leituras" (1955), "Presenças" (1958) e "Livros na Mesa" (1960), recoloca em circulação, num delicioso catatau maciço de quase mil densas páginas, o melhor de seu trabalho. Pois, se no país de adoção ele fez e escreveu muitas coisas, dedicando-se, por exemplo, ao jornalismo político e à crítica de música, seu grande papel, sem dúvida, foi o de crítico literário, e sua forma ideal de expressão, o ensaio breve.
Assim, embora tenha mesmo escrito uma história da literatura ocidental (e outra, da literatura alemã) que não tem igual nem rival no Brasil e, talvez, em português, mais do que um grande tratado, o resultado é, como observou Sebastião Uchoa Leite, "a tentativa de uma sistemática do que está disperso nos artigos e ensaios (...) uma leitura da literatura ocidental, e por isso se presta com frequência a uma leitura ensaística".
Seu trabalho e seus objetivos, seus interesses e seu "approach" (que convém chamar não tanto de método quanto de estilo, ou seja, "escolha", de acordo com ele, "de ritmos dos fatos, escolha dos próprios fatos"), a função que acreditava ter, didática sem dúvida, mas de um didatismo nem normativo nem institucional, e dependente, portanto, da persuasão e da empatia, tudo isso teria feito Carpeaux se sentir perfeitamente à vontade, conversando no século 18 com, digamos, Diderot num salão francês ou com o dr. Johnson num "drawing room" britânico, mas não com catedráticos e livres-docentes nos atuais departamentos universitários de estudos pós-coloniais, de "gender studies" (estudos de gênero) etc.
Carpeaux falava em seus ensaios, geralmente publicados em periódicos e jornais de grande circulação, de livros e de escritores (sem traçar essa absurda linha divisória tácita que impede sistematicamente a justaposição e o confronto entre os nacionais e os estrangeiros), de poemas e de poetas, de historiadores e de história, de filósofos e filosofia, de uma fantástica variedade de temas que se estendiam de um detalhe de "Macbeth" aos seus (des)encontros com Franz Kafka, da alta cultura à cultura popular, da tradição à vanguarda...
Sua erudição, em várias línguas, era tão imensa quanto a sua capacidade de convertê-la em algo não apenas acessível quanto atraente. Quantos críticos hoje em dia seriam capazes, como ele, de tornar agradável (como era para mim) a visita mensal ao consultório da dentista, porque na ante-sala desta é que estavam os números antigos da revista na qual ele apresentava aos leigos Kaváfis ou Sterne?
Pode-se discutir infindavelmente se ele estava certo ou errado em tal ou qual juízo, se ele foi justo ou não com este ou aquele autor, se muitas de suas conclusões envelheceram ou continuam pertinentes. O curioso, no entanto, é que, se bem que tais discussões não sejam irrelevantes (pelo contrário: são debates assim que constituem o tecido conjuntivo daquilo que algum tempo atrás chamavam de cultura), o resultado delas não deduz em nada da importância de Carpeaux. O valor de seus escritos decorre muito menos das conclusões ou até mesmo inconclusões eventualmente oferecidas do que da qualidade e da inteligência (para nem falar da elegante clareza) da argumentação. Não são poucos os seus ensaios cuja importância está no fato de terem levantado questões que antes não haviam ocorrido a ninguém.
A que se deve isso? Sua formação na Europa Central ainda cosmopolita do entre-guerras, seu multilinguismo num meio multilíngue, sua carga eclética e onívora de leituras e a inesgotabilidade de seus interesses poderiam ser aventados como uma explicação. Mas talvez haja outra, mais simples e mais fundamental. Cético e indagador como era, disposto a duvidar de julgamentos estabelecidos, se há algo que, afinal, ele não costumava pôr em dúvida era a dignidade de seu ofício. Um de nossos últimos humanistas, Carpeaux sabia qual era seu trabalho, acreditava em sua importância e, em vez de se entregar aos prazeres narcisistas das auto-indagações irresolúveis e das especulações especulares tão comuns hoje em dia nesse ramo, dedicou-se simplesmente a praticar a crítica literária.


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