São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
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ENCICLOPÉDIA CARPEAUX

RIMBAUD (1854-1891)
Não há acontecimento mais simbólico do que o nascimento de Rimbaud, filho póstumo, como se o mundo tivesse sido morto antes dele; e nasceu em Charleville, cidade de fronteira, fronteira belgo-francesa, lá onde a fronteira é sempre trágica. Depois que o puritanismo pétreo de sua mãe o afugentou, ele está em Paris, onde Victor Hugo descobre o gênio nesse menino maligno de 17 anos. Na fronteira da velha poesia moribunda e de novas experiências poéticas, Rimbaud (foto) conhece seu primeiro e último dia de glória; a catástrofe de 1870, fronteira entre duas épocas, destrói tudo, as chamas devoram Paris. Segue-se a segunda evasão, evasão dessa fugitiva glória literária a que ele chamou, mais tarde, "une saison en enfer". Vagabundagens, em companhia de Verlaine, que por amor do estranho menino abandona mulher e filhos. Noite sob o céu, que Rimbaud descreve inesquecivelmente.

GOETHE (1749-1832)
Goethe, espírito apolítico, egoísta, não compreendeu o maior acontecimento do seu tempo, a Revolução Francesa. Contra ela, colocou-se ao lado das forças feudais, embora intimamente as desprezasse. Assim, traiu o povo, do qual proviera; traiu a humanidade, cujos sofrimentos absolutamente não o preocupavam (...).
Goethe, o artista, não compreendeu o maior acontecimento literário do seu tempo, o romantismo. Depois de ter experimentado, em vão cativar os seus contemporâneos com a fórmula classicista, ele trai a arte, para abraçar as ciências naturais e enriquecê-las com as suas descobertas duvidosas e as suas fantasias arbitrárias.
Goethe, enfim, traiu a humanidade, a arte e a sua própria dignidade humana. Todas três ao mesmo tempo, ao ajoelhar-se diante de Napoleão, ao beijar as mãos daquele que se deveria tornar o modelo de todos os déspotas.

NIETZSCHE (1844-1900)
Nietzsche não é um autor difícil. É o estilista mais latino e mais claro da língua alemã. A sua prosa é a do grande poeta que era. Exprime com igual mestria o lirismo modesto e profundo dos alemães, a claridade irônica dos latinos, o grande "pathos" da Bíblia; a sua língua soa como os aforismos densos dos filósofos pré-socráticos, como as canções, ébrias de luz, dos provençais, e, às vezes, como versículos mágicos das escrituras sagradas do Oriente. Mas é sempre clara, bastante clara para esconder sob a virtuosidade dos meios estilísticos as contradições internas. Nietzsche (foto) é o último filho da "velha Alemanha" humanista, filho espiritual de Goethe e Hölderlin, e, ao mesmo tempo, profere fanfarronadas de uma ébria vontade de dominação, que se perderam no reino sóbrio de Bismarck, e só mais tarde tiveram eco. Nietzsche é um inimigo mortal dos alemães -a expressão "bom europeu" é dele- e, ao mesmo tempo, proclama o individualismo germânico, o amoralismo bárbaro dos gigantes da Edda. Nietzsche foi o inimigo mais furioso que o cristianismo jamais teve. E todavia esse filho de gerações de pastores luteranos sofre intimamente de conflitos religiosos e é, afinal, um cristão pascaliano. Karl Jaspers chama à obra de Nietzsche "um campo de ruínas, coberto de destroços contraditórios". O único laço que lhes dá coerência é a paixão intelectual de Nietzsche, que lembra as personagens de Dostoiévski; é a sua personalidade, agitada nas profundezas da existência humana, o lanço apaixonado de toda a sua personalidade, o que faz da sua loucura a sua obra máxima. Lembra a verdade dos antigos -que os poetas são uns delirantes. Friedrich Nietzsche era um poeta.

MILTON (1608-1674) Pensando em Milton, vejo o firmamento noturno sobre o sombrio mar do Norte. Nuvens imensas conglobam-se em formações monstruosas: a luta da formação do mundo, a luta dos poderes das trevas contra os poderes da luz recomeça; o destino da humanidade está-se decidindo. O representante dessa humanidade é um homem solitário à margem do abismo; e esse homem é cego (...).
Para poder dignamente apreciar o tamanho de Milton, preciso afugentar uma lembrança feia. No gabinete de trabalho de meu pai achava-se o quadro horroroso de Munkacsy, "O Cego Milton ditando o "Paraíso Perdido" às Suas Filhas", retrato dum burguês de 1880, disfarçado em costume histórico. Em milhares de exemplares esse crime dum pintor famoso está divulgado no mundo. É exatamente o retrato de Milton que uma posteridade incompreensiva fez à sua própria imagem: é Milton, o "clássico".
Que é um clássico? As definições imbecis abundam. Acredito ser o termo uma invenção dos livreiros, para poderem vender livros que ninguém gosta de ler. Em virtude dessa definição comercial, um clássico é um autor desconhecido.

GIAMBATTISTA VICO (1668-1744)
Giambattista Vico era um homem magro, sempre doente, curvado pelas noites intermináveis à mesa dos estudos, tossindo na poeira dos inúmeros livros devorados. Vestia o traje do seu tempo, peruca de professor, batina semiclerical. A ciência de Vico está vestida do mesmo traje contemporâneo (...).
Vico é o criador do historicismo. Criou esta atitude científica que hoje perece, diante de um novo dogmatismo. Vico predisse-o: percorremos as épocas dos deuses, dos heróis e dos homens, e estamos voltando, agora, à barbaria. E é estupendo, isto. O pobre professor napolitano do tempo barroco previu o nosso problema. Estava perplexo diante do espetáculo da história, e a sua perplexidade é a nossa confusão. O problema de Vico é o nosso problema.

ALBERT CAMUS (1913-1960)
Camus, grande talento de ensaísta e crítico da nossa época, já fez várias descobertas notáveis: em "O Estrangeiro", descobriu o amoralismo do nosso tempo; em "A Peste", descobriu a possibilidade de uma esperança; em "O Homem Revoltado", descobriu o remédio moral contra a política. Agora, porém, desmente-se, declarando que não fez descoberta nenhuma. E tem plenamente razão.
Pois "O Estrangeiro" foi adaptação de uma velha peça de Zacharias Werner para o ambiente e o estilo de ficção surrealista; "A Peste" poderia ter sido adaptação de um romance do escritor italiano De Angelis à experiência da ocupação da França; "O Homem Revoltado" foi adaptação das velhas teses da direita francesa e uma polêmica contra Sartre. Agora, "A Queda" desmente todas as generosidades humanísticas daqueles livros. Mas o desmentido não é mais original que as afirmações.

BENEDETTO CROCE (1866-1952) Enquanto jovens esportivos, fantasiados de correspondentes de guerra, se entusiasmavam com as "chuvas de bombas" sobre Nápoles, pensei num homem muito velho, o homem mais solitário da cidade castigada e deste mundo castigado. Ainda menino, escapou, como por milagre, ao terremoto que lhe roubou os pais e todos os irmãos; está acostumado, desde então, a meditar sobre as catástrofes, cidadão, ele próprio, dessa paisagem histórica de Nápoles que já viu as catástrofes históricas dos gregos, dos romanos, dos godos e longobardos, dos árabes, normandos, suábios, franceses e espanhóis; de modo que aquele homem não se surpreende com a derrota que ele profetizou, citando versos de um poeta alemão: "Não convém jubilar. Não haverá triunfo./ Muitas derrotas, só. Sem dignidade".
O contraste, admito, é eloquência baratíssima: o homem de gênio, encarnando as tradições milenárias de sua cidade de Nápoles, onde conhece, como nenhum outro, a história dos bairros, das ruas, das casas, das famílias, de cada pedra, ele, o maior dos críticos literários, o maior dos filósofos vivos, o maior dos historiadores vivos, a maior autoridade espiritual da Itália e talvez do mundo atual, olhando a derrota de sua cidade e de sua pátria pelo ativismo diletante dos semicultos. Não é trágico? Não, isto não é trágico.

THOMAS MANN (1875-1955)
É impossível não admirar Thomas Mann (foto). É um pensador profundo, um escritor de primeira ordem, e um grande alemão; e em tudo isso admirável. Com o primeiro romance, "Os Buddenbrooks", conseguiu a admiração duradoura dos alemães; o Prêmio Nobel selou a admiração universal ao escritor; enfim, o pensador e escritor em ação, lutando contra a tirania, é objeto da admiração esperançosa do mundo. É impossível não admirar Thomas Mann. Todos o lêem, e todos o admiram, do crítico mais exigente à "girl" mais engraçada. É irresistível, e eu também desejo unir-me a esse cortejo glorioso; temo, porém, que a minha admiração seja perigosa e deixe entrever, enfim, não um gênio vitorioso, mas sim uma tragédia humana (...).
Que é que a gente admira em Thomas Mann? O pensador, o escritor, o alemão. Dizem-no um pensador profundo, um escritor de primeira ordem, e a encarnação de tudo o que é ou foi honesto e admirável no homem alemão. Na verdade, Thomas Mann é um pensador confuso, é o maior dos escritores de segunda ordem, e a alemanidade não é a essência de seu ser, mas o amor infeliz dum bastante fraco herói de tragédia.

GRACILIANO RAMOS (1892-1953)
Todos os romances de Graciliano Ramos (foto) são tentativas de destruição; tentativas de "acabar com a minha memória", tentativas de dissolver as recordações pelos "estranhos hiatos" dum sonho angustiado. Trata-se de saber que mundo de recordações se dissolve assim (...).
Uma lenda budista conta dum homem que correu, ao sol do meio-dia, para fugir à sua sombra, que o angustiava; correu, correu, sempre perseguido pelo companheiro sinistro, até que encontrou o grande Sábio, que lhe disse: "Não continues a fugir! Assenta-te sob esta árvore!". E, como ele parou, a sombra desapareceu. A sombra sobre o mundo de Graciliano Ramos não é a sombra da árvore da salvação, mas a do edifício da nossa civilização artificial -cultura e analfabetismo letrados, sociedade, Estado, todas as autoridades temporais e espirituais, que ele convida ironicamente, no começo de "São Bernardo", a colaborar em sua obra de destruição.


Trechos extraídos de "Ensaios Reunidos 1"


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