|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A mitologia futurista elaborada por George Lucas está difundindo uma visão elitista e antidemocrática sob o disfarce de diversão escapista, em tudo diferente do universo em que navega a espaçonave Enterprise
... e o populismo de Star Trek
De fato, "Jornada nas Estrelas"
vê a tecnologia como algo útil e, em
essência, amigo do homem, apesar
de por vezes ser também perigoso.
A educação é o grande fator de
emancipação dos humildes
(exemplo: a Academia Starfleet).
As instituições futuristas são basicamente benévolas (é o caso da Federação), se bem que, naturalmente, é preciso combater casos de incompetência e corrupção. O profissionalismo é respeitado, personagens menores têm um papel importante a cumprir e subordinados muitas vezes se transformam
em líderes -como acontece nos
EUA de hoje.
Em "Jornada nas Estrelas",
quando as autoridades são desafiadas, isso é feito visando superar
os erros delas ou expor vilões específicos, e não com o intuito de retratar todas as instituições como
sendo, por natureza, casos perdidos. Bons policiais às vezes atendem um pedido de socorro. Ironicamente, essa imagem fomenta a
crítica construtiva à autoridade, na
medida em que sugere que qualquer um de nós pode ter acesso a
nossas instituições falhas se tivermos vontade suficiente -e, talvez,
até mesmo consertá-las, com as
ferramentas da cidadania resoluta.
Contrastando com isso, os rebeldes oprimidos de "Guerra nas Estrelas" não podem recorrer à lei,
aos mercados, à ciência ou à democracia. Podem apenas escolher que
partido tomar numa guerra civil
que opõe duas alas de uma mesma
família real, geneticamente superior a eles. Não podem interferir
nem criticar. Como os carregadores de lanças homéricos, esse não é
seu papel.
Para nos ensinar como distinguir
o bem do mal, Lucas dita que se deve avaliar pela aparência. Os vilões
usam capacetes nazistas. Eles fazem cara feia ou têm olhos que brilham vermelhos. As histórias de
"Jornada nas Estrelas", ao contrário, muitas vezes aconselham que
não se julgue um livro por sua capa. Acima de tudo, "Jornada nas
Estrelas", de modo geral, apresenta heróis que são apenas cerca de
dez vezes mais brilhantes, nobres e
heróicos que uma pessoa comum.
Eles conseguem seu intento por
meio da cooperação e da inteligência, e não por possuírem alguma
grandeza transcendente e inerente
que os aproxime da condição divina.
Sim, é verdade que "Jornada nas
Estrelas" às vezes soa politicamente correto a ponto de ser cansativo,
parecendo estar sempre pregando
um sermão. Os episódios de "Jornada nas Estrelas" na TV em muitos casos acabaram por quase virar
telenovelas. Muitos dos filmes foram muito mal escritos. Apesar
disso, "Jornada" procura tratar de
questões reais, conferindo vozes
complexas até mesmo a seus vilões
e formulando perguntas difíceis
sobre as armadilhas que poderemos enfrentar na nossa busca do
futuro.
Em todo caso, quando se trata de
retratar o destino humano, onde
você preferiria viver, supondo que
fosse um cidadão comum e não
um semideus? Na Federação de
Roddenberry ou no Império de
George Lucas?
Lucas defende sua visão elitista,
tanto assim que declarou ao "The
New York Times": "É mais ou menos por isso que afirmo que um
déspota benévolo é o governante
ideal. Ele consegue realizar coisas,
de fato. A idéia de que o poder corrompe é muito verdadeira, e o ser
humano que consegue superar essa armadilha é um ser humano
verdadeiramente grandioso".
Ou seja: uma figura real ou um
semideus, ungido pelo destino
(como um cineasta bilionário, por
exemplo?).
Lucas frequentemente diz que
somos uma cultura triste, destituída da confiança ou da inspiração
que podem ser conferidas pela
presença de líderes fortes. Mas não
é fato que somos a cultura que gerou George Lucas e lhe ofereceu
tantas oportunidades? Não somos
justamente a sociedade que gerou
todos os especialistas brilhantes
que ele contrata -pessoas ousadamente criativas que aplicam sua
inspiração individual e sua habilidade cooperativa nos filmes do
próprio Lucas? Uma cultura que
desafia o velho impulso de homogeneização, ao reverenciar a excentricidade e demonstrar uma sede inusitada pelo diferente, o inovador e o estranho? De que modo
se pode afirmar que falta confiança
a essa civilização?
A verdade histórica é que todos
os déspotas da história, juntos, não
conseguiram "realizar coisas" tão
bem quanto esta civilização desordenada e autocrítica composta de
cidadãos livres e soberanos, que finalmente se libertaram da adoração à classe governante e começaram a pensar por si mesmos. A democracia pode, às vezes, parecer
frustrante e bagunçada -mas
funciona.
Isso dito, quero reconhecer novamente que "Guerra nas Estrelas"
remete a um arquétipo antigo e
muito profundamente humano.
Quem ouviu Homero recitar a
"Ilíada" ao lado de uma fogueira
de acampamento conheceu o drama em toda sua grandiosidade.
Aquiles podia matar mil homens
com um toque de sua mão -assim
como Darth Vader assassina bilhões de pessoas apertando um botão-, mas nenhuma dessas baixas
tem importância quando comparada à saga pessoal do grandioso
herói.
Em "A Ameaça Fantasma", Lucas quer que gostemos de um garotinho loiro e bonitinho que, mais
tarde, vai crescer e assassinar a população da Terra multiplicada várias vezes. Já que o estamos fazendo, por que não tiramos da gaveta
o álbum de fotos da família Hitler,
para podermos achar lindas as fotos do pequeno Adolf, tão fofinho e
adorável, e nos maravilharmos
com suas proezas infantis? Também ele foi inocente até o momento em que optou pelo "lado escuro" -logo, vamos adorá-lo!
É verdade que Lucas não tenta
desculpar essa piada macabra, dizendo "é apenas um filme". Em lugar disso, nos apresenta sua saga
como se fosse uma tragédia grega
repleta de angústia e digna de
"Édipo". Mas, se fosse verdade, será que "Guerra nas Estrelas" já não
nos teria oferecido uma visão do
Lado Escuro que fosse além de
uma simples caricatura? Heróis e
vilões não seriam diferenciados
simplesmente por sua beleza. Os
dilemas morais não pareceriam
saídos de um livro de histórias em
quadrinhos.
Não entre nessa! A apoteose de
um assassinato em massa é exatamente o que parece ser. Deveríamos achá-la assustadora.
Alguém se lembra da cena final
de "O Retorno de Jedi", na qual
Luke olha para dentro do fogo e vê
Obi-Wan, Yoda e Vader sorrindo
nas chamas? Eu me vi esperando
que fosse o inferno dos Jedi, pela
quantidade de dor que esses três
provocaram em sua galáxia e por
todas as mentiras que contaram.
Mas esse sou eu, alguém que se rebela contra Homero, Aquiles e toda essa tradição. No íntimo, alguns
de vocês também são assim.
Não se trata de uma distinção
que se apresenta apenas uma vez.
Ela marca a principal linha divisória entre a ficção científica real, letrada e humanista, a ficção especulativa, e a maior parte da suposta
"ficção científica" que se vê nos cinemas hoje.
A diferença não é questão, realmente, de complexidade, infantilidade, ingenuidade científica ou estilização literária.
A diferença subjacente é que
uma tradição se compraz na existência de elites, enquanto a outra
se rebela contra elas. Na visão de
mundo da ficção científica genuína, os semideuses não são facilmente perdoados quando mentem
e matam. O desprezo pelas massas
já saiu de moda. Pode haver heróis,
até mesmo heróis grandiosos, mas,
a longo prazo, ou vamos avançar
juntos ou, simplesmente, não vamos avançar.
É verdade que esse tipo de mito
vende bem. Sim, mesmo depois de
gerações inteiras se rebelarem
contra o arquétipo homérico, nós,
os filhos de Péricles, Benjamin
Franklin e H.G. Wells ainda somos
uma minoria. Tanto isso é fato que
Lucas consegue tomar posse dos
termos e dos símbolos que criamos
à mão -nossos amados robôs e
naves espaciais- para promover
suas próprias finalidades -e ainda ser elogiado por sua "originalidade".
O maior defeito moral do universo de "Guerra nas Estrelas" consiste num ponto que Lucas pisa e repisa, na voz de seu personagem-guru sábio, Yoda.
Vamos ver se acerto. O medo deixa você bravo, e a ira torna você
mau, é isso?
Reconheço sem pestanejar que o
medo tem sido um dos maiores fatores motivadores da intolerância
na história humana. Posso visualizar os candidatos a cavaleiros
aprendendo a controlar seu medo
e sua ira, como vimos, de maneira
digna de crédito, em "O Império
Contra-ataca". A calma faz de você
um guerreiro melhor e previne erros. A ira constante pode prejudicar o bom julgamento. Essa parte é
totalmente digna de crédito.
Mas, a seguir, em "O Retorno de
Jedi", Lucas pega essa sabedoria
básica e a perverte, dizendo: "Se
você ficar irado -mesmo que o
que provoque sua ira sejam a injustiça e o assassinato-, então sua
ira vai, automática e imediatamente, transformar você numa pessoa
totalmente má. Todas suas opiniões e posturas políticas serão invertidas de uma hora para outra.
Até mesmo a lealdade será abandonada, e seus amigos não vão
conseguir trazer você de volta ao
bom caminho. Você vai juntar-se
imediatamente a seu inimigo jurado, tornando-se o amigo ou aprendiz dele. E tudo isso porque você se
permitiu sentir ira diante dos crimes dele".
Como é, mesmo? Daria para repetir tudo outra vez, bem devagar?
Quer dizer que, em outras palavras, sentir ira diante de Adolf Hitler vai levar você a sair correndo e
filiar-se ao partido nazista? Peraí,
George. Você poderia me dar um
único exemplo em que isso já
aconteceu? Um só?
Essa afirmação já é uma coisa
bastante má de defender. E, sobretudo, é burrice pura e simples.
Ela levanta uma pergunta que alguém deveria haver formulado já
há muito tempo. Quem foi que encarregou George Lucas de pregar
essa moralidade superficial e
doentia a nossas crianças? Se é
"apenas um filme", por que ele está se esforçando tanto para encher
seus filmes com esse lixo todo?
Acho que está na hora de optar,
pessoal. Esta saga não é apenas
mais uma expressão do arquétipo
homérico, exaltando as velhas hierarquias de príncipes, magos e semideuses. Ao erguer como sua peça chave a romantização de um assassino em massa, "Guerra nas Estrelas" já foi muito além disso. A
saga é indigna de nossa atenção, de
nosso entusiasmo -e de nossa civilização.
O próprio Lucas nos dá uma pista quando diz "muito tempo atrás,
numa galáxia muito distante".
É isso mesmo. "Guerra nas Estrelas" pertence a nosso passado
sombrio. Faz parte de uma longa e
tirânica era de medo, ausência de
lógica, despotismo e demagogia
que nossos antepassados se esforçaram tremendamente para superar e da qual estamos, finalmente,
começando a sair, assistidos pelo
espírito científico e igualitário ao
qual Lucas dedica um desprezo tão
evidente -espírito esse que devemos encorajar em nossos filhos, se
quisermos que eles tenham alguma chance de progredir.
Não prevejo ganhar essa discussão em qualquer momento do futuro próximo. Como observou Joseph Campbell, com razão, os costumes de nossos ancestrais mexem
com nossa alma de maneiras que
muitas pessoas acham romanticamente atraentes, até irresistíveis.
Algumas pessoas não conseguem
deixar o conto de fadas de lado e
passar para leituras mais maduras.
Por enquanto, pelo menos, não
conseguem.
A longo prazo, porém, a história
está do meu lado. Está, porque o
rumo do destino humano não será
definido no passado. Será decidido
em nosso futuro.
E o futuro é meu campo de ação
-se bem que, na verdade, ele pertença a todos vocês. A todos nós.
O futuro é o lugar onde nossa
posteridade vai florescer.
David Brin é escritor, autor de "The Postman"
(O Carteiro) e "The Uplift War" (A Guerra da Elevação) e "The Transparent Society: Will Technology Force Us to Choose Between Freedom and
Privacy?" (A Sociedade Transparente - A Tecnologia Vai Nos Forçar a Optar entre Liberdade e
Privacidade?).
O artigo acima apareceu pela primeira vez em
"Salon.com", em http://www.Salon.com. Uma
versão online encontra-se nos arquivos da revista. Publicado com a autorização da "Salon.com".
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Política - David Brin: O despotismo de Star Wars Próximo Texto: Alvaro Machado: Saga interestelar gera frenesi interpretativo Índice
|