São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A mitologia futurista elaborada por George Lucas está difundindo uma visão elitista e antidemocrática sob o disfarce de diversão escapista, em tudo diferente do universo em que navega a espaçonave Enterprise
... e o populismo de Star Trek

De fato, "Jornada nas Estrelas" vê a tecnologia como algo útil e, em essência, amigo do homem, apesar de por vezes ser também perigoso. A educação é o grande fator de emancipação dos humildes (exemplo: a Academia Starfleet). As instituições futuristas são basicamente benévolas (é o caso da Federação), se bem que, naturalmente, é preciso combater casos de incompetência e corrupção. O profissionalismo é respeitado, personagens menores têm um papel importante a cumprir e subordinados muitas vezes se transformam em líderes -como acontece nos EUA de hoje.
Em "Jornada nas Estrelas", quando as autoridades são desafiadas, isso é feito visando superar os erros delas ou expor vilões específicos, e não com o intuito de retratar todas as instituições como sendo, por natureza, casos perdidos. Bons policiais às vezes atendem um pedido de socorro. Ironicamente, essa imagem fomenta a crítica construtiva à autoridade, na medida em que sugere que qualquer um de nós pode ter acesso a nossas instituições falhas se tivermos vontade suficiente -e, talvez, até mesmo consertá-las, com as ferramentas da cidadania resoluta.
Contrastando com isso, os rebeldes oprimidos de "Guerra nas Estrelas" não podem recorrer à lei, aos mercados, à ciência ou à democracia. Podem apenas escolher que partido tomar numa guerra civil que opõe duas alas de uma mesma família real, geneticamente superior a eles. Não podem interferir nem criticar. Como os carregadores de lanças homéricos, esse não é seu papel.
Para nos ensinar como distinguir o bem do mal, Lucas dita que se deve avaliar pela aparência. Os vilões usam capacetes nazistas. Eles fazem cara feia ou têm olhos que brilham vermelhos. As histórias de "Jornada nas Estrelas", ao contrário, muitas vezes aconselham que não se julgue um livro por sua capa. Acima de tudo, "Jornada nas Estrelas", de modo geral, apresenta heróis que são apenas cerca de dez vezes mais brilhantes, nobres e heróicos que uma pessoa comum. Eles conseguem seu intento por meio da cooperação e da inteligência, e não por possuírem alguma grandeza transcendente e inerente que os aproxime da condição divina.
Sim, é verdade que "Jornada nas Estrelas" às vezes soa politicamente correto a ponto de ser cansativo, parecendo estar sempre pregando um sermão. Os episódios de "Jornada nas Estrelas" na TV em muitos casos acabaram por quase virar telenovelas. Muitos dos filmes foram muito mal escritos. Apesar disso, "Jornada" procura tratar de questões reais, conferindo vozes complexas até mesmo a seus vilões e formulando perguntas difíceis sobre as armadilhas que poderemos enfrentar na nossa busca do futuro.
Em todo caso, quando se trata de retratar o destino humano, onde você preferiria viver, supondo que fosse um cidadão comum e não um semideus? Na Federação de Roddenberry ou no Império de George Lucas?
Lucas defende sua visão elitista, tanto assim que declarou ao "The New York Times": "É mais ou menos por isso que afirmo que um déspota benévolo é o governante ideal. Ele consegue realizar coisas, de fato. A idéia de que o poder corrompe é muito verdadeira, e o ser humano que consegue superar essa armadilha é um ser humano verdadeiramente grandioso".
Ou seja: uma figura real ou um semideus, ungido pelo destino (como um cineasta bilionário, por exemplo?).
Lucas frequentemente diz que somos uma cultura triste, destituída da confiança ou da inspiração que podem ser conferidas pela presença de líderes fortes. Mas não é fato que somos a cultura que gerou George Lucas e lhe ofereceu tantas oportunidades? Não somos justamente a sociedade que gerou todos os especialistas brilhantes que ele contrata -pessoas ousadamente criativas que aplicam sua inspiração individual e sua habilidade cooperativa nos filmes do próprio Lucas? Uma cultura que desafia o velho impulso de homogeneização, ao reverenciar a excentricidade e demonstrar uma sede inusitada pelo diferente, o inovador e o estranho? De que modo se pode afirmar que falta confiança a essa civilização?
A verdade histórica é que todos os déspotas da história, juntos, não conseguiram "realizar coisas" tão bem quanto esta civilização desordenada e autocrítica composta de cidadãos livres e soberanos, que finalmente se libertaram da adoração à classe governante e começaram a pensar por si mesmos. A democracia pode, às vezes, parecer frustrante e bagunçada -mas funciona.
Isso dito, quero reconhecer novamente que "Guerra nas Estrelas" remete a um arquétipo antigo e muito profundamente humano. Quem ouviu Homero recitar a "Ilíada" ao lado de uma fogueira de acampamento conheceu o drama em toda sua grandiosidade. Aquiles podia matar mil homens com um toque de sua mão -assim como Darth Vader assassina bilhões de pessoas apertando um botão-, mas nenhuma dessas baixas tem importância quando comparada à saga pessoal do grandioso herói.
Em "A Ameaça Fantasma", Lucas quer que gostemos de um garotinho loiro e bonitinho que, mais tarde, vai crescer e assassinar a população da Terra multiplicada várias vezes. Já que o estamos fazendo, por que não tiramos da gaveta o álbum de fotos da família Hitler, para podermos achar lindas as fotos do pequeno Adolf, tão fofinho e adorável, e nos maravilharmos com suas proezas infantis? Também ele foi inocente até o momento em que optou pelo "lado escuro" -logo, vamos adorá-lo!
É verdade que Lucas não tenta desculpar essa piada macabra, dizendo "é apenas um filme". Em lugar disso, nos apresenta sua saga como se fosse uma tragédia grega repleta de angústia e digna de "Édipo". Mas, se fosse verdade, será que "Guerra nas Estrelas" já não nos teria oferecido uma visão do Lado Escuro que fosse além de uma simples caricatura? Heróis e vilões não seriam diferenciados simplesmente por sua beleza. Os dilemas morais não pareceriam saídos de um livro de histórias em quadrinhos.
Não entre nessa! A apoteose de um assassinato em massa é exatamente o que parece ser. Deveríamos achá-la assustadora.
Alguém se lembra da cena final de "O Retorno de Jedi", na qual Luke olha para dentro do fogo e vê Obi-Wan, Yoda e Vader sorrindo nas chamas? Eu me vi esperando que fosse o inferno dos Jedi, pela quantidade de dor que esses três provocaram em sua galáxia e por todas as mentiras que contaram. Mas esse sou eu, alguém que se rebela contra Homero, Aquiles e toda essa tradição. No íntimo, alguns de vocês também são assim.
Não se trata de uma distinção que se apresenta apenas uma vez. Ela marca a principal linha divisória entre a ficção científica real, letrada e humanista, a ficção especulativa, e a maior parte da suposta "ficção científica" que se vê nos cinemas hoje.
A diferença não é questão, realmente, de complexidade, infantilidade, ingenuidade científica ou estilização literária.
A diferença subjacente é que uma tradição se compraz na existência de elites, enquanto a outra se rebela contra elas. Na visão de mundo da ficção científica genuína, os semideuses não são facilmente perdoados quando mentem e matam. O desprezo pelas massas já saiu de moda. Pode haver heróis, até mesmo heróis grandiosos, mas, a longo prazo, ou vamos avançar juntos ou, simplesmente, não vamos avançar.
É verdade que esse tipo de mito vende bem. Sim, mesmo depois de gerações inteiras se rebelarem contra o arquétipo homérico, nós, os filhos de Péricles, Benjamin Franklin e H.G. Wells ainda somos uma minoria. Tanto isso é fato que Lucas consegue tomar posse dos termos e dos símbolos que criamos à mão -nossos amados robôs e naves espaciais- para promover suas próprias finalidades -e ainda ser elogiado por sua "originalidade".
O maior defeito moral do universo de "Guerra nas Estrelas" consiste num ponto que Lucas pisa e repisa, na voz de seu personagem-guru sábio, Yoda.
Vamos ver se acerto. O medo deixa você bravo, e a ira torna você mau, é isso?
Reconheço sem pestanejar que o medo tem sido um dos maiores fatores motivadores da intolerância na história humana. Posso visualizar os candidatos a cavaleiros aprendendo a controlar seu medo e sua ira, como vimos, de maneira digna de crédito, em "O Império Contra-ataca". A calma faz de você um guerreiro melhor e previne erros. A ira constante pode prejudicar o bom julgamento. Essa parte é totalmente digna de crédito.
Mas, a seguir, em "O Retorno de Jedi", Lucas pega essa sabedoria básica e a perverte, dizendo: "Se você ficar irado -mesmo que o que provoque sua ira sejam a injustiça e o assassinato-, então sua ira vai, automática e imediatamente, transformar você numa pessoa totalmente má. Todas suas opiniões e posturas políticas serão invertidas de uma hora para outra. Até mesmo a lealdade será abandonada, e seus amigos não vão conseguir trazer você de volta ao bom caminho. Você vai juntar-se imediatamente a seu inimigo jurado, tornando-se o amigo ou aprendiz dele. E tudo isso porque você se permitiu sentir ira diante dos crimes dele".
Como é, mesmo? Daria para repetir tudo outra vez, bem devagar?
Quer dizer que, em outras palavras, sentir ira diante de Adolf Hitler vai levar você a sair correndo e filiar-se ao partido nazista? Peraí, George. Você poderia me dar um único exemplo em que isso já aconteceu? Um só?
Essa afirmação já é uma coisa bastante má de defender. E, sobretudo, é burrice pura e simples.
Ela levanta uma pergunta que alguém deveria haver formulado já há muito tempo. Quem foi que encarregou George Lucas de pregar essa moralidade superficial e doentia a nossas crianças? Se é "apenas um filme", por que ele está se esforçando tanto para encher seus filmes com esse lixo todo?
Acho que está na hora de optar, pessoal. Esta saga não é apenas mais uma expressão do arquétipo homérico, exaltando as velhas hierarquias de príncipes, magos e semideuses. Ao erguer como sua peça chave a romantização de um assassino em massa, "Guerra nas Estrelas" já foi muito além disso. A saga é indigna de nossa atenção, de nosso entusiasmo -e de nossa civilização.
O próprio Lucas nos dá uma pista quando diz "muito tempo atrás, numa galáxia muito distante".
É isso mesmo. "Guerra nas Estrelas" pertence a nosso passado sombrio. Faz parte de uma longa e tirânica era de medo, ausência de lógica, despotismo e demagogia que nossos antepassados se esforçaram tremendamente para superar e da qual estamos, finalmente, começando a sair, assistidos pelo espírito científico e igualitário ao qual Lucas dedica um desprezo tão evidente -espírito esse que devemos encorajar em nossos filhos, se quisermos que eles tenham alguma chance de progredir.
Não prevejo ganhar essa discussão em qualquer momento do futuro próximo. Como observou Joseph Campbell, com razão, os costumes de nossos ancestrais mexem com nossa alma de maneiras que muitas pessoas acham romanticamente atraentes, até irresistíveis. Algumas pessoas não conseguem deixar o conto de fadas de lado e passar para leituras mais maduras. Por enquanto, pelo menos, não conseguem.
A longo prazo, porém, a história está do meu lado. Está, porque o rumo do destino humano não será definido no passado. Será decidido em nosso futuro.
E o futuro é meu campo de ação -se bem que, na verdade, ele pertença a todos vocês. A todos nós.
O futuro é o lugar onde nossa posteridade vai florescer.


David Brin é escritor, autor de "The Postman" (O Carteiro) e "The Uplift War" (A Guerra da Elevação) e "The Transparent Society: Will Technology Force Us to Choose Between Freedom and Privacy?" (A Sociedade Transparente - A Tecnologia Vai Nos Forçar a Optar entre Liberdade e Privacidade?).
O artigo acima apareceu pela primeira vez em "Salon.com", em http://www.Salon.com. Uma versão online encontra-se nos arquivos da revista. Publicado com a autorização da "Salon.com".
Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Política - David Brin: O despotismo de Star Wars
Próximo Texto: Alvaro Machado: Saga interestelar gera frenesi interpretativo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.