São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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A arma do riso


Medicina desvendou desde o século 16 os mecanismos fisiológicos do riso, como a admiração e o espanto, e modificou a abordagem psicológica de pensadores como Descartes


por Quentin Skinner

Ao final de "Além do Bem e do Mal", Nietzsche nos diz: "Eu iria ao ponto de me aventurar a classificar os filósofos segundo o escalão de seu riso". Ele sente aversão violenta pelos filósofos que, em suas palavras, "procuraram atribuir má fama ao riso". Ele considera Thomas Hobbes (1588-1679) especialmente culpado dessa falha, acrescentando que a atitude puritana dele é exatamente o que se poderia esperar de um inglês. Na realidade, sua acusação se baseia num erro de citação daquilo que Hobbes diz sobre o riso na filosofia. Mas Nietzsche (1844-1900) tinha razão, sem dúvida, quando observou que Hobbes, em comum com a maioria dos pensadores de sua era, dava como certo e evidente que o riso é um tema pelo qual os filósofos devem se interessar seriamente.
A meu ver, esse interesse começa a tomar vulto nas primeiras décadas do século 16, em especial entre humanistas tão eminentes quanto Baldessare Castiglione (1478-1528), em seu "O Cortesão" (ed. Martins Fontes), de 1528, Rabelais, em seu "Pantagruel", de 1533, e Juan Luis Vives, em "De Anima & Vita", de 1539, sem falar em diversos textos de Erasmo.
Mais tarde no mesmo século, pela primeira vez desde a Antiguidade, começou a surgir uma literatura especializada não apenas nos aspectos psicológicos do fenômeno, mas também nos fisiológicos. O pioneiro, nessa área, foi o médico Laurent Joubert (1529-1582), de Montpellier, cujo "Tratado do Riso" foi lançado em Paris, em 1579. Pouco mais tarde, diversos tratados comparáveis apareceram na Itália, incluindo "De Risu, ac Ridiculis", de Celso Mancini, em 1598, "De Risu", de Antonio Lorenzini, em 1603, e "Phisici, et Philosophi Tractatus de Risu", de Elpidio Berrettario, no mesmo ano.
Pode parecer surpreendente que tantos médicos tenham se debruçado com tanto entusiasmo sobre um tema essencialmente humanista (entre eles, é evidente, figurava Rabelais), e esse é um enigma sobre o qual voltarei a falar mais tarde.
No momento, quero me limitar a falar dos filósofos e chamar a atenção para o grande destaque conferido ao tema por muitos dos maiores expoentes da nova filosofia na geração seguinte. Descartes analisa o lugar do riso entre as emoções em sua última obra, "As Paixões da Alma" (ed. Martins Fontes), de 1648. Hobbes trata de muitas das mesmas questões em "Os Elementos da Lei" e, novamente, em "Leviatã". Espinosa (1632-1977) defende o valor do riso no livro 6º de a "Ética", e diversos seguidores declarados de Descartes manifestam um interesse especial pelo fenômeno, sendo um exemplo notável deles Henry More, em seu "Account of Virtue" (Descrição da Virtude). A pergunta que quero formular com relação a tudo isso é simplesmente a seguinte: por que todos esses autores se consideram na obrigação de interessar-se seriamente pelo riso? Me parece que a resposta deve ser procurada no fato de que todos estão de acordo quanto a um ponto fundamental. Esse ponto é que a questão mais importante que se coloca com relação ao riso é o das emoções que o provocam. Uma das emoções envolvidas, concordam todos, deve necessariamente ser alguma forma de alegria ou felicidade. Entre os autores humanistas, Castiglione, em "O Cortesão", enfatiza que "o riso é observado apenas na humanidade, e é sempre sinal de uma certa jovialidade e um certo ânimo alegre que o homem sente no interior de sua mente". No prazo de uma geração, todos os que escreviam sobre o assunto já tinham passado a dar essa premissa como certa. Descartes observa simplesmente que "o riso parece ser um dos principais sinais da alegria", e Hobbes conclui, ainda mais vivamente, que "o riso sempre é alegria". Entretanto também era amplamente reconhecido que essa alegria devia ser de um tipo bastante particular, e com isso chegamos à constatação mais característica (e, talvez, a mais desconcertante também) da literatura humanista e médica da qual estamos falando: a de que essa alegria expressa pelo riso sempre está associada a sentimentos de desprezo, quando não de ódio -o ódio de Descartes. Entre os humanistas, um dos primeiros argumentos nesse sentido é apresentado por Castiglione, para quem, "a cada vez que rimos, sempre estamos zombando de alguém e desprezando alguém", estamos sempre "buscando zombar dos vícios". E os escritores médicos expõem a mesma teoria de maneira mais completa. Possivelmente a mais sutil análise feita sobre esse ponto é a de Joubert em seu "Tratado do Riso". Cito seu primeiro capítulo: "Qual é o tema do riso?". Ele responde que rimos de "tudo o que é ridículo, quer seja algo dito ou algo feito". Mas qualquer coisa que consideremos ridículo, ele explica no segundo capítulo, será sempre "algo que vemos como feio, deformado, desonesto, indecente, mal-intencionado e indecoroso. O estilo comum de nosso riso sempre é o escárnio ou a zombaria".


O RISO, DE MODO GERAL, EXPRIME ESCÁRNIO, MAS O SORRISO É INTERPRETADO COMO UMA EXPRESSÃO NATURAL DE PRAZER E, ESPECIALMENTE, DE AFETO E ENCORAJAMENTO


Esse argumento é muito desenvolvido pela geração seguinte, sobretudo por aqueles que gostariam de ligar as observações dos humanistas às de uma literatura médica em plena eclosão. Talvez o mais importante escritor a ter se esforçado para forjar esses laços seja Robert Burton, num texto espantoso, "A Anatomia da Melancolia", de 1621. Ele começa por nos dizer, em seu prefácio, que, "quando rimos, condenamos aos outros, condenamos o mundo de fraquezas e desvarios", acrescentando que "o mundo nunca antes teve tantos desvarios a serem condenados, nunca antes esteve tão repleto de pessoas que são tolas e ridículas". Do mesmo modo, como destaca Descartes em "As Paixões da Alma", "embora o riso pareça ser um dos principais sinais da alegria, a alegria não pode ser causa de riso a não ser que seja apenas moderada e, ao mesmo tempo, misturada com alguma dose de ódio ou admiração". Hobbes, em "Os Elementos da Lei", tinha dito o mesmo vários anos antes: "A paixão do riso nada mais é do que uma glória repentina que surge de uma repentina concepção de alguma eminência em nós mesmos, quando nos comparamos com as fraquezas dos outros ou com as nossas fraquezas passadas. Esses sentimentos de glória são sempre desdenhosos, sempre uma questão de glorificar a nós mesmos em relação aos outros, de modo que, quando alguém ri de nós, triunfa sobre nós e zomba de nós". Assim, segundo essa análise, na visão de todos esses escritores, se você se vê gargalhando, duas coisas devem ter acontecido. Você deve ter se dado conta de algum vício ou fraqueza desprezível em seu eu anterior ou (melhor ainda) em outra pessoa. E deve ter tomado consciência disso de maneira a gerar um sentimento de superioridade que é repleto de alegria. Vale notar que, segundo essa tradição de pensamento, é preciso traçar um contraste marcante entre o riso e o sorriso. O riso, de modo geral, exprime escárnio, mas o sorriso é interpretado como uma expressão natural de prazer e, especialmente, de afeto e encorajamento. Por exemplo, sir Thomas Browne, outro médico impregnado de saber humanista, faz referência a essa distinção em seu trabalho "Pseudodoxia Epidêmica", de 1640, num trecho em que trata do enigma escolástico que indaga se Cristo alguma vez riu. Sua resposta é que, mesmo que concedamos que ele nunca o fez, não podemos imaginar que ele nunca tenha sorrido, pois seu sorriso teria sido a mais certeira prova de sua humanidade.

O sublime e o ridículo
Essa visão do sorriso como expressão de alegria e amor o liga ao sublime e, especialmente, às imagens cristãs do Paraíso como estado de alegria eterna. Encontramos muitas expressões semelhantes de êxtase na arte do Renascimento, nas quais geralmente nos é informado -por gestos das mãos ou pelos olhares repletos de sentimento lançados para o alto- que o objeto da alegria é, de fato, celestial. Entretanto, no caso mais célebre de todos, o de "La Gioconda" (1503-1506), de Leonardo da Vinci, a fonte da alegria interior que leva a Mona Lisa a sorrir permanece um mistério, que confere à tela seu caráter eternamente enigmático.
Creio que, nesse ponto, a estética romântica obliterou um contraste importante, se bem que o tenhamos conservado na linguagem do dia-a-dia. Teóricos românticos da estética como, por exemplo, Edmund Burke, gostam de vincular o sublime ao belo, como no título de famoso ensaio de Burke ("Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Idéias do Sublime e do Belo", ed. Papirus). Mas, na teoria da época clássica e do Renascimento que examino aqui, sempre existe o contraste entre o sublime, que nos faz sorrir, e o ridículo, pelo qual demonstramos nosso desprezo, rindo. E continuamos a dizer que apenas um passo separa o sublime do ridículo.
A idéia de que o sorriso expressa amor, enquanto o riso reflete escárnio, estava destinada a durar muito tempo. Se, por exemplo, formos olhar o ensaio de Baudelaire "Da Essência do Riso", de 1855, nós o veremos ainda declarando que o riso é diabólico e, a título de explicação, citando o fato de que ele tem suas raízes no orgulho e no desdém, os mais mortais dos pecados capitais. Apesar de sua influência considerável, porém, essa explicação está longe de ser auto-evidente, e me parece natural começar por indagar sobre sua origem. Quando e onde surgiu essa visão do riso e como ela chegou a exercer uma influência tão poderosa sobre a filosofia do Renascimento e do início da época moderna?
A mais frequentemente citada observação de Aristóteles sobre o riso vem do texto conhecido na Antiguidade romana como "De Partibus Animalium", no qual o autor nota que os seres humanos são as únicas criaturas que riem. Para minha finalidade atual, porém, suas observações mais relevantes podem ser encontradas em sua "A Arte da Retórica", especialmente no trecho do livro 2º no qual Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) discute os modos da juventude. Chama a atenção o fato de que a primeira tradução desse livro para o inglês tenha sido obra de Thomas Hobbes, que o publicou por volta de 1637. Nessa tradução, segundo Hobbes, Aristóteles (livro 2º, capítulo 12) diz que "o gracejo é uma injúria repleta de ânimo, e essa injúria consiste em desonrar a outro para nosso próprio divertimento, de modo que o riso é sempre expressão de nosso desprezo". A isso devemos acrescentar o que diz Aristóteles em sua "Poética" (em "A Poética Clássica - Longino, Aristóteles, Horácio", ed. Cultrix), especialmente no trecho curto que dedica ao tipo de mimese manifesto na comédia. A comédia, ele escreve, trata do que é risível, e aquilo que é risível é um aspecto do que é vergonhoso, feio ou vil. Se nos vemos rindo de alguém, é porque essa pessoa manifesta um defeito ou uma marca de vergonha que, mesmo que não sejam dolorosos, o tornam ridícula. Assim, os mais risíveis são aqueles que nos são, de alguma maneira, inferiores, embora de caráter não inteiramente viciado. Mas a principal tradição do pensamento da Antiguidade dentro do qual adotamos esse conceito do riso como expressão do desprezo não é médica, e sim retórica, e emana diretamente da análise aristotélica tirada de "A Retórica". Nós a encontramos desenvolvida sobretudo por Cícero (106 a.C.-43 a.C.), cujo grande tratado sobre a arte da eloquência, "De Oratore", inclui, em seu livro 2º, o longo discurso "Di Ridiculis". Cito: "O campo apropriado do riso é restrito a questões que sejam, de alguma maneira, indignas ou deformadas. Pois a causa principal da hilaridade, senão a única, é o tipo de observação que distingue e chama a atenção, de maneira que não é em si indecorosa, para alguma coisa que é de alguma maneira indecorosa ou inconveniente". Assim, continua Cícero, o verdadeiro tema da comédia é sempre a desproporção, uma desproporção entre o que é dito e feito ou entre as verdades da natureza. Um século mais tarde, essa questão é levada adiante por Quintiliano (c. 35-95) em seu "Institutio Oratoria", de longe o mais completo dos tratados sobre a arte da eloquência escritos na Antiguidade. Para Quintiliano, o riso ("ridere") é irrisão ("deridere"). Assim, diz ele, "quando rimos, estamos nos glorificando com relação ao outro, porque nos demos conta de que, comparado a nós, ele sofre de uma fraqueza ou debilidade desprezível". Assim, desde o ponto onde estamos, parece claro que a contribuição dos autores da Renascença para a teoria do risível foi bem menos original do que eles quiseram admitir. Os humanistas tinham uma dívida considerável para com a literatura retórica da Antiguidade, sobretudo com a análise de Cícero em "De Oratore". Apesar disso, seria engano deixar entender que os autores do início da época moderna apenas repetiram passivamente as idéias de suas autoridades clássicas. Devo destacar agora que, aos argumentos que herdaram, eles acrescentaram duas análises importantes.

"Certa novidade"
Em primeiro lugar, os autores médicos conferem uma importância de natureza fisiológica inteiramente nova ao papel do repentino e, por conseguinte, da surpresa, na provocação do riso, introduzindo na discussão, pela primeira vez, a concepção-chave do "admiratio" -ou admiração, espanto. Aqui, a análise pioneira, segundo pude determinar, foi a de Girolamo Fracastoro, em seu "De Sympathia", de 1546. Cito: "As coisas que geralmente nos levam a rir devem ser dotadas de certa novidade e devem aparecer diante de nós de maneira repentina e inesperada.

OS BEBÊS RIEM, MAS SERÁ QUE PODEMOS REALMENTE ENXERGAR SEU RISO COMO EXPRESSÃO DE DESPREZO PELAS FALHAS DE CARÁTER? É POUCO PROVÁVEL
Quando isso acontece, temos um sentimento de admiração que, por sua vez, gera em nós um sentimento de alegria e prazer. O inesperado gera a admiração, a admiração gera a alegria e é a alegria que nos faz rir". Essa descoberta é imediatamente retomada pelos filósofos. É especialmente o caso de Descartes, para quem a admiração é uma paixão fundamental. Resumo sua análise intensamente mecanicista: quando o sangue é impelido "para o coração por qualquer leve sentimento de ódio, ajudado pela surpresa da admiração", os pulmões se dilatam subitamente, "empurram os músculos do diafragma, do peito e da garganta, por meio dos quais fazem mexer-se os do rosto, e é apenas essa ação do rosto, com essa voz inarticulada e descontrolada, à qual chamamos o riso". Mas são exatamente os mesmos aspectos que encontramos na análise anterior de Hobbes em "Os Elementos da Lei". Também ele insiste no papel da surpresa, argumentando que "à medida que uma mesma coisa deixa de ser ridícula quando se torna velha ou usual, a causa do riso, seja ela qual for, deve ser nova e inesperada". Ele também destaca que a causa do riso deve ser "alguma coisa que provoca a admiração". A outra contribuição importante à teoria do riso feita pelos teóricos do início da época moderna se origina de uma lacuna que eles observaram na análise original de Aristóteles. Como já vimos, a tese de Aristóteles em "A Poética" é que o riso reprova a falha de caráter, à medida que exprime e pede sentimentos de desprezo para com aqueles que se comportam de maneira ridícula. Mas, como observam nossos autores, Aristóteles, de maneira pouco habitual para ele, deixou de oferecer uma definição do ridículo e, por conseguinte, de indicar quais falhas de caráter específicas são as mais suscetíveis de provocar o riso de desdém. É possível, é claro, que Aristóteles tenha analisado essas questões no livro 2º da "Poética", que, como é sabido, tratava da comédia. Mas esse texto se perdeu no final da Antiguidade, e nada se sabe sobre o assunto.

Avareza, hipocrisia, vaidade
Para os autores médicos, a questão do que Montaigne iria chamar de "os vícios ordinários" não apresentava nenhum interesse. Para os humanistas, porém, ela frequentemente parecia ser a mais importante de todas, e é a análise de Castiglione que parece ter exercido a influência maior. A idéia fundamental de Castiglione, tirada diretamente de Cícero, é que os vícios ou defeitos de caráter que podemos esperar ridicularizar com maior êxito são aqueles que apresentam alguma desproporção em relação às verdades da natureza, e, em especial, aqueles que traem o que ele chama de uma visão "afetada" de nosso próprio valor. E ele nos diz que existem três vícios principais dessa natureza: a avareza, a hipocrisia e a vaidade ou soberba. Vale observar até que ponto esse argumento sempre foi reconhecido pelos autores cômicos do início do período moderno. As comédias de Ben Johnson, por exemplo, são repletas de puritanos hipócritas, e o "Tartufo" de Molière oferece o retrato acabado do intrigante maquiavélico que se faz passar por devoto. Entretanto, entre os teóricos do Renascimento, é à soberba ou vaidade que se atribui a importância maior. No ponto em que estamos, você certamente imagina -como imaginavam muitos pensadores na época- que a teoria da época clássica e do Renascimento que acabo de expor certamente contém um erro. Afinal, certamente é falso que rimos apenas quando vemos que alguém tem uma opinião desproporcional a seu próprio respeito, de tal modo que nosso riso sempre expressa nosso desprezo? É verdade que o riso às vezes exprime não sentimentos alegres de superioridade, mas simplesmente a alegria -como dizem os ingleses, a alegria de viver. Está aí, exemplo mais célebre, a objeção que faz Espinosa à teoria clássica, no livro 4º de sua "Ética". E Spinoza utiliza esse argumento para introduzir sua defesa do teatro e, de maneira mais geral, do lado mais leve da vida, que ele considera não apenas compatíveis com a vida virtuosa que "Ética" procura nos apresentar, mas parte integrante dessa vida. Já tínhamos encontrado essa objeção em alguns autores médicos do Renascimento, sem dúvida preocupados em tomar uma distância em relação a Aristóteles e à escolástica. Mas, seguindo a objeção feita por diversos desses autores, notadamente Fracastoro, o que dizer dos bebês? Os bebês riem, mas será que podemos realmente enxergar seu riso como expressão de desprezo pelas falhas de caráter? É pouco provável. Mais tarde, especialmente no iluminismo inglês, vemos surgir o mesmo argumento anti-aristotélico também como resposta a Hobbes, além de servir como defesa geral da idéia de que pode existir um riso puramente benevolente. É esse o teor dos artigos de Addison sobre o riso publicado na "Spectator" em 1711. E também o de "Reflexões sobre a Risada", de 1725, em que Francis Hutcheson discorda especificamente das idéias de Hobbes. Talvez o mais interessante de todos seja o prefácio a "Joseph Andrews", do escritor Henry Fielding, no qual este traça uma distinção marcada entre o cômico e o que ele descreve como burlesco. A comédia reprova as falhas de caráter, diz ele, "mas o burlesco, que contribui mais do que qualquer outra coisa ao riso prazeroso, nunca o faz por meio do desprezo". Trata-se, mais do que isso, de inverter nossas expectativas, criando justaposições surpreendentes ou outras formas de incongruidade. O efeito, se der certo, nos fará rir, mas, diz Fielding, em tais ocasiões nosso riso será "repleto de bom humor e benevolência". Essa observação assinala toda uma teoria rival sobre o que nos leva a rir. Apesar disso, é muito importante reconhecer que essa categoria do riso benevolente, e, por conseguinte, do gênero da comédia não satírica, não foi, por assim dizer, ignorada pelos autores médicos e retóricos dos quais falei. Eles reconheciam que se, por comédia, entendemos simplesmente qualquer tipo de narrativa que termina bem, certamente podem existir comédias não-satíricas.

Desprezo e desgosto
Mas, se entendemos por comédia uma forma literária na qual a intenção é de provocar o riso, então toda comédia é e deve ser satírica. A razão, dizem eles, é que não é verdade, de maneira alguma, que o riso às vezes seja suscitado por sentimentos de alegria pura. O contra-argumento deles, extremamente interessante, é que, se você acredita no contrário, engana a si mesmo. Não somos levados a rir exceto pelo tipo de sentimento de desprezo que uma sátira bem-sucedida consegue suscitar. A reação quase unânime dos autores humanistas e médicos dos quais falo, e isso desde o tratado pioneiro de Laurent Joubert, é que, como diz o próprio Joubert em seu capítulo introdutório, o riso nunca expressa a alegria, mas apenas o desprezo ou desgosto.
Publicado alguns anos mais tarde, o exemplo mais célebre dessa réplica é "Defesa da Poesia", de sir Philip Sidney, no final do qual ele critica os autores de comédias pelo que considera ser sua opinião errônea de que o riso às vezes é causado pela felicidade ou o prazer. O riso, responde Sidney, nunca é provocado senão por sentimentos de desprezo. Assim, o que ele faz é uma exposição da teoria clássica do riso como expressão de alegria misturada com ódio e desprezo.
Mas a questão que devemos nos fazer sobre os autores dos quais falei é, me parece, o do porquê de essa teoria ser tão importante, aos olhos deles. Por que eles consideraram o riso um tema de importância filosófica, até mesmo médica? Quero me voltar a essa questão agora, e, portanto, ao que há de essencial nessas observações.
Para os médicos, a importância da teoria clássica está no fato de que ela confere ao riso um lugar na promoção da boa saúde. Como explica Joubert com detalhes, é especialmente benéfico incentivar a alegria nos indivíduos de temperamento frio e seco e, portanto, dotados de coração pequeno e duro.


CONSEGUIR PROVOCAR O RISO TEM POR EFEITO DIRETO, COMO SE DIZ, DIMINUIR NOSSOS ADVERSÁRIOS; E, DE MODO INDIRETO, COMO JÁ DISSE CÍCERO, ISSO TEM POR EFEITO ENGRANDECER NOSSO LADO NO ARGUMENTO


Toda pessoa que tiver o azar de nascer com esse temperamento, ou, como diz Joubert, com esses humores, sofre de um excesso de bílis negra no baço, o que suscita sentimentos de ira, que, se não forem tratados, conduzem à perda de ânimo e finalmente à melancolia. Mas vale notar que esse raciocínio não é válido a não ser que o riso seja efetivamente uma expressão natural do desprezo. E acredito que é esse tipo de raciocínio que explica porque os médicos se entusiasmaram tanto com a idéia essencialmente retórica de que o riso é, de fato, uma expressão natural do desprezo. Se, agora, retornarmos aos filósofos, e mais especialmente aos retóricos, encontraremos um tipo de raciocínio inteiramente diferente. Para esses autores, o fato de o riso exprimir desprezo interessa essencialmente à esfera do discurso público. Como o riso é uma manifestação exterior dessas emoções particulares, dizem eles, podemos esperar fazer dele uma arma de potência incomparável para o debate moral e político. É uma afirmação de peso, e é com a explicação dela que quero concluir. Talvez eu deva começar pelo postulado mais fundamental herdado pelos filósofos do Renascimento da cultura retórica da Antiguidade romana. Para apresentar esse postulado nos termos que acabariam ganhando forma de provérbio, sempre existem dois lados opostos de qualquer questão nas ciências morais e públicas. Como explica Quintiliano, em toda questão que diz respeito às ciências humanas, em oposição às ciências naturais, sempre será possível "empregar as armas do discurso poderoso "in umtraque partem", ou seja, para dar razão a uma das partes", de modo que nunca será possível demonstrar sem sombra de dúvida que apenas uma das partes tem razão. Isso implica (e esse argumento foi em grande parte recuperado pela filosofia pós-moderna em seu tempo) que não pode haver conclusão (de uma discussão) nas ciências morais, de modo que a única maneira de conduzir tais discussões deve ser pela forma de diálogo. Considerava-se, na época, que existiam duas ciências morais principais. Uma delas era o direito, foro de exercício da retórica judiciária, onde procuramos chegar a um veredicto em conformidade com a Justiça. A outra era a política, foro do exercício da retórica deliberativa, onde procuramos convencer o povo a agir de maneira benéfica para o Estado. Na realidade, operamos com esses postulados retóricos ainda hoje. No tribunal, os integrantes do júri ainda precisam chegar ao veredicto ouvindo os argumentos apresentados pelas duas partes em cada julgamento, desde lados opostos do recinto do tribunal. E as assembléias representativas do Renascimento normalmente tinham dois lados, um de frente para o outro, como ainda é o caso hoje na Câmara dos Comuns (é por isso que, na Grã-Bretanha, não podemos ter mais de dois partidos políticos). A questão tem dois lados, e o objetivo deve ser de defender seus argumentos de tal maneira que, como vamos continuar a dizer, você consiga convencer seu público a decidir a seu favor ou colocar-se a seu lado, de modo que, como também continuaremos a dizer, ele adote a mesma posição que você quanto à questão em pauta. Essa imagem sobrevive à época moderna com a opinião segundo a qual a maior façanha de um orador em um parlamento sempre será a de fazer seu adversário trocar de partido, ou seja, levá-lo a "atravessar a sala". Seu objetivo essencial, portanto (apelando para outro trocadilho que sobrevive no inglês) será de falar "winningly", ou seja, de modo a conquistar o outro para a defesa de sua própria causa. Mas eis a questão essencial: como fazê-lo? Não se chegará a isso com o raciocínio, já que reconhecemos que será possível encontrar razões igualmente boas para defender um argumento ou o outro. Como, então? Não sem alguma hesitação, os teóricos da retórica da época clássica e do Renascimento respondem que o orador deve aprender a reforçar seu raciocínio com a energia apaixonada de seu discurso. Em outras palavras, ele terá que aprender como suscitar em seu público um envolvimento puramente emocional em favor da parte que ele defende.

Jogo de palavras
Assim, o cerne do argumento é, por assim dizer, um jogo de palavras deliberado envolvendo as palavras "mover" e "comover". Um dos objetivos do debate moral ou político sempre deve ser de mover ou comover o público para levá-lo a aderir a seu ponto de vista. Mas a única maneira de alcançar esse objetivo será falar ou escrever, de modo que as pessoas não apenas fiquem convencidas, mas "fortemente comovidas". É esse poder que leva um adversário a mudar de partido, a passar para o seu lado. Ele só será movido se sentir-se comovido.
Essas discussões deixam os retóricos diante de uma questão de importância prática considerável. Existem técnicas específicas que poderíamos aprender e aplicar para conseguir despertar as emoções profundas de uma platéia?
Sim, existem, segundo Cícero e Quintiliano, e a técnica que é preciso cultivar antes de mais nada é aquela que permite manipular as figuras e os tropos do discurso. Como diz a figura de Crasso em "De Oratore", é sobretudo nisso que consiste o meio graças ao qual você pode esperar falar "winningly", ou seja, de maneira a conquistar seu público para a defesa de sua causa.
Mas parece natural responder que a manipulação das figuras e dos tropos parece exercer efeito retórico bastante modesto. Como pode ter resultados tão espetaculares? Os retóricos clássicos têm diversas respostas para essa questão, mas a principal é que podemos recorrer a uma categoria específica do que eles chamam de tropos zombeteiros, com a finalidade de suscitar o riso.
Quando Quintiliano primeiro introduz essa sugestão, reconhece que "ela certamente parecerá trivial, mas não o é, pois esse uso do humor aliado à capacidade de inspirar pena é, de fato, o meio de suscitar as emoções que exercem o maior efeito".
Agora fica claro porque esses autores vêem esse dom como tão importante na área do discurso público. Basta recordar as análises desses autores sobre o tipo de emoção suscitada pelo riso e, em seguida, sobre o tipo de emoções que serão efetivamente suscitadas se se conseguir provocar o riso numa platéia.
Como já vimos, a teoria clássica -para dizê-lo da maneira mais simples possível- afirma que rir sempre significa rir de alguém. Mas isso quer dizer que, se conseguíssemos provocar o riso contra nossos inimigos dialéticos, teríamos conseguido fazer com que fossem desprezados.
Eis porque a capacidade de suscitar o riso é vista como uma arma tão fatal para o debate, e eis porque, portanto, lhe é dada uma importância tão grande na argumentação. Conseguir provocar o riso tem por efeito direto, como se diz, diminuir nossos adversários. E, de maneira mais indireta, como já disse Cícero, isso tem por efeito engrandecer nosso lado no argumento, já que, em comparação com o do adversário, ele parecerá preferível. Mesmo assim, os retóricos ainda acham necessário explicar como podemos esperar suscitar emoções tão profundas por meios exclusivamente linguísticos, com o uso de tropos zombeteiros. Eles pensam, evidentemente, que o êxito da empreitada, a produção de um sentimento de desprezo pelo absurdo humano, depende em parte do que se vai dizer.
Mas recordemos as idéias deles sobre o efeito específico e devastador que produz o riso se, e apenas se, formos repentinamente levados a ver que alguma coisa ou pessoa é absurda. É aqui, dizem eles, que se torna muito útil conhecer certos segredos retóricos. Pois os tropos zombeteiros são vistos como exatamente os meios linguísticos que, corretamente empregados, possuem o poder de provocar exatamente o gênero de surpresa que vai gerar a reação do riso.
Nossa história chega ao fim dentro do contexto do que o sociólogo Norbert Elias (1897-1991) chamou de o processo da civilização, do qual um aspecto maior foi, na cultura européia moderna, a exigência crescente do controle, pela vontade, de diversas funções corporais até então vistas como involuntárias.
Ao que tudo indica, o riso faz parte da classe das ações aparentemente involuntárias que as pessoas de temperamento refinado se preocupam especialmente em controlar.
Já tínhamos encontrado essa idéia no final do século 17, mas a análise que faz referência a ela (pelo menos na cultura inglesa) aparece nos anos 1740, numa das cartas do conde de Chesterfield a seu filho, em que ele trata do comportamento ideal do cavalheiro. Em sua carta, o conde declara que "nada é tão grosseiro ou indecoroso quanto o riso audível, de modo que o riso é algo acima do qual as pessoas sensatas e bem nascidas devem se erguer". A razão disso é que o riso revela, de maneira vergonhosa, a perda do controle sobre o próprio corpo.
Como diz Chesterfield, rir é "baixo e indecoroso, sobretudo em virtude do som desagradável que provoca e da chocante deformação do rosto que suscita quando a ele sucumbimos". Assim, começou-se a pensar, na Inglaterra da época do Iluminismo, que, mesmo que continue a ser verdade que o riso exprime sobretudo a emoção do desprezo e mesmo que se deseje sempre, ao mesmo tempo, exprimir e suscitar essa mesma emoção, não queremos nos deixar ser flagrados no ato de exprimir essa emoção dessa maneira. Precisamos de algo mais controlado e, como acrescenta Chesterfield explicitamente, essa necessidade pode ser satisfeita, já que, na realidade, o riso não é nada involuntário. Em lugar disso, como ele diz, "o riso pode facilmente ser restrito com um pouco de reflexão e educação". O que, então, substitui o riso quando este é suprimido? A resposta, e concluirei com ela, é aquilo que, em inglês, foi chamado, sem grande elegância, de "sub-laugh".
Mas o que é esse "sub-laugh"? A idéia se exprime bem melhor em francês, já que o que nos pedem que façamos, quando temos vontade de rir, é "sous rire" -sorrir. Assim, minha história termina com a supressão do riso em nome do decoro e com sua substituição pelo sorriso desdenhoso. E Chesterfield conclui esse conselho a seu filho, dizendo: "Desejo profundamente que você seja visto sorrindo com frequência, mas que nunca seja ouvido rindo durante toda sua vida".

A íntegra deste texto foi publicada no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.


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