São Paulo, domingo, 04 de outubro de 2009

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Ponto de fuga

Coisas e loisas


Pouco depois da morte de Van Gogh, um quadro seu foi descoberto tapando o buraco de um galinheiro de Saint-Rémy; aquilo, ali, não era arte


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Alguns leitores escreveram para esta coluna sobre a relação entre arte e mercado, que foi lembrada, aqui mesmo, no domingo passado. Um deles interessou-se pela ideia de que a arte não produz objetos, mas produz sujeitos que pensam sem palavras. Diz assim: "Ao mesmo tempo que concordo, discordo. Acho que as "coisas físicas" produzidas, que costumamos chamar de arte, têm sua mágica, seu fetiche enquanto coisas".
O leitor tem razão em sua reticência, porque faltou dizer que objeto, naquele caso, não é um sinônimo de coisa. Significa algo posto para, e pelo, sujeito. Seria, por assim dizer, uma "coisa" submissa.
Ora, a obra de arte, como ele diz, tem sua mágica. Por isso, age como sujeito ao operar seus milagres. O despacho numa encruzilhada é um agente.
Ele atua. Não é um ser passivo. É um sujeito.
A proximidade com as crenças mágicas ou religiosas permite compreender bastante "aquilo que costumamos chamar de arte". Arte, tal como a concebemos hoje, é, exatamente, aquilo que costumamos chamar de arte. Qualquer outro critério, além da própria denominação, é insuficiente. Beleza, sensibilidade, expressão e mais o que se quiser, nada disso oferece um campo vasto o suficiente para recobrir tudo o que nossa cultura entende por arte.
Marcel Duchamp, nas primeiras décadas do século 20, determinou isso por meio de seus "ready-mades": se ficarmos convencidos de que uma roda de bicicleta, exposta numa galeria ou num museu, é arte, ela passa a ser arte.

Condão
Não se trata de impostura. A palavra "arte" adquiriu poderes reais. É um abracadabra que funciona. Metamorfoseia a caixa de sabão Brillo, ou a roda de bicicleta. Elas passam a emitir sinais, significações, intuições, que antes não tinham. No mundo dos objetos comuns, eram mudos. Depois que viraram arte, falam uma linguagem, silente e intensa.
A razão é que se sacralizaram pela nossa crença: como acreditamos neles, eles nos respondem. São entes cheios de poderes invisíveis, mas laicos, desvinculados de qualquer religião ou sobrenatural.
A mais prodigiosa das pinturas é apenas um pouco de tinta sobre uma tela; Van Gogh escreveu alguma coisa assim.
Pouco depois de sua morte, um quadro seu foi descoberto numa casa de Saint-Rémy [França], tapando o buraco de um galinheiro. As galinhas não sentiam frio e aquilo, ali, não era arte, de modo algum.

Mandrake
Quem decide que uma pintura, uma escultura, um copo d'água é arte? O artista, se tem algum reconhecimento, ou seja, se alguém acreditar que ele possui esse poder transformador.
O crítico, que celebra e convence, ou que despreza e condena (a fórmula negativa mais forte, a única que de fato anula o feitiço, se alguém acreditar nela, está claro, é: "Isso não é arte". Muito usada, em escritos e em conversas, de preferência num tom de superioridade, por críticos seguros de si, contentes de vestirem a casaca e a cartola do mágico).
As galerias, os museus, que aceitam tal ou qual obra e recusam outras.
O mercado, que gradua seus valores segundo a intensidade das crenças.

Cerne
Seria leviano duvidar dos poderes da arte. Comovem, fascinam, despertam desejo de posse: muitos colecionadores arruinaram-se por não resistirem ao canto da sereia. O roubo de grandes obras conhecidas, que não podem ser vendidas, mostra que a arte pode causar desatinos. Mas, por felicidade, ela também conduz a grandes, elevados prazeres, a formas sutis e profundas de inteligência.

jorgecoli@uol.com.br

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