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Ponto de fuga
Coisas e loisas
Pouco depois da morte de Van Gogh, um quadro seu foi descoberto tapando o buraco de um galinheiro de Saint-Rémy; aquilo, ali, não era arte
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Alguns leitores escreveram para esta coluna sobre a relação entre arte
e mercado, que foi lembrada,
aqui mesmo, no domingo passado. Um deles interessou-se
pela ideia de que a arte não produz objetos, mas produz sujeitos que pensam sem palavras.
Diz assim: "Ao mesmo tempo que concordo, discordo.
Acho que as "coisas físicas" produzidas, que costumamos chamar de arte, têm sua mágica,
seu fetiche enquanto coisas".
O leitor tem razão em sua reticência, porque faltou dizer
que objeto, naquele caso, não é
um sinônimo de coisa. Significa algo posto para, e pelo, sujeito. Seria, por assim dizer, uma
"coisa" submissa.
Ora, a obra de arte, como ele
diz, tem sua mágica. Por isso,
age como sujeito ao operar
seus milagres. O despacho numa encruzilhada é um agente.
Ele atua. Não é um ser passivo.
É um sujeito.
A proximidade com as crenças mágicas ou religiosas permite compreender bastante
"aquilo que costumamos chamar de arte". Arte, tal como a
concebemos hoje, é, exatamente, aquilo que costumamos
chamar de arte. Qualquer outro critério, além da própria denominação, é insuficiente. Beleza, sensibilidade, expressão e
mais o que se quiser, nada disso
oferece um campo vasto o suficiente para recobrir tudo o que
nossa cultura entende por arte.
Marcel Duchamp, nas primeiras décadas do século 20,
determinou isso por meio de
seus "ready-mades": se ficarmos convencidos de que uma
roda de bicicleta, exposta numa galeria ou num museu, é arte, ela passa a ser arte.
Condão
Não se trata de impostura. A
palavra "arte" adquiriu poderes
reais. É um abracadabra que
funciona. Metamorfoseia a caixa de sabão Brillo, ou a roda de
bicicleta. Elas passam a emitir
sinais, significações, intuições,
que antes não tinham. No mundo dos objetos comuns, eram
mudos. Depois que viraram arte, falam uma linguagem, silente e intensa.
A razão é que se sacralizaram
pela nossa crença: como acreditamos neles, eles nos respondem. São entes cheios de poderes invisíveis, mas laicos, desvinculados de qualquer religião
ou sobrenatural.
A mais prodigiosa das pinturas é apenas um pouco de tinta
sobre uma tela; Van Gogh escreveu alguma coisa assim.
Pouco depois de sua morte, um
quadro seu foi descoberto numa casa de Saint-Rémy [França], tapando o buraco de um galinheiro. As galinhas não sentiam frio e aquilo, ali, não era
arte, de modo algum.
Mandrake
Quem decide que uma pintura, uma escultura, um copo d'água é arte?
O artista, se tem algum reconhecimento, ou seja, se alguém
acreditar que ele possui esse
poder transformador.
O crítico, que celebra e convence, ou que despreza e condena (a fórmula negativa mais
forte, a única que de fato anula
o feitiço, se alguém acreditar
nela, está claro, é: "Isso não é
arte". Muito usada, em escritos
e em conversas, de preferência
num tom de superioridade, por
críticos seguros de si, contentes
de vestirem a casaca e a cartola
do mágico).
As galerias, os museus, que
aceitam tal ou qual obra e recusam outras.
O mercado, que gradua seus
valores segundo a intensidade
das crenças.
Cerne
Seria leviano duvidar dos poderes da arte. Comovem, fascinam, despertam desejo de posse: muitos colecionadores arruinaram-se por não resistirem
ao canto da sereia.
O roubo de grandes obras conhecidas, que não podem ser
vendidas, mostra que a arte pode causar desatinos. Mas, por
felicidade, ela também conduz
a grandes, elevados prazeres, a
formas sutis e profundas de inteligência.
jorgecoli@uol.com.br
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