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Identidade comprada
Reportagem da Folha consegue carteira de identificação com papel-moeda oficial, capaz de fazer qualquer pessoa "renascer" perante a lei, em um dos pontos de venda de documentos de São Paulo
ANDRÉ CARAMANTE
DA REPORTAGEM LOCAL
Armando Homem de
Mello Faux nasceu
há oito dias, nas
ruas do entorno do
largo 13 de Maio,
uma cópia da praça da Sé em
Santo Amaro, coração da zona
sul de São Paulo. Faux já chegou neste mundo aos 24 anos e
com carteira de motorista para
dirigir carros e motos.
Apesar de constar na sua licença de motorista (documento capaz de substituir RG e
CPF em uma blitz policial, na
abertura de uma conta bancária ou para conseguir empréstimo, por exemplo) ser filho do
casal Teresa Cristina e Geraldo, Faux é, na verdade, rebento
da corrupção, e não nasceu em
1985, como estampa o documento.
Tudo em Faux, a começar
pelo nome e pela imagem, é falso. Ele simplesmente não existe. Faux foi um personagem
criado pela Folha para comprovar como o dinheiro move a
corrupção e abre espaço para
atos ilícitos.
Em tempo: nem tudo referente a Faux é falso. O papel da
carteira dele é original, do tipo
papel-moeda, exatamente como a de qualquer cidadão habilitado oficialmente. A categoria
do documento é AB, a exigida
para guiar carros e motos. O
número do CPF no documento, segundo a Receita Federal, é
ativo em nome de um homem.
A fotografia de Faux foi criada digitalmente, a partir da
imagem de um banco de fotos.
Pouco mais de uma hora à frente do computador deixou o homem, inicialmente careca, com
cabelo e bigode. Mas quem
vende documentos falsos também dá consultoria e chega a
indicar páginas na internet nas
quais a manipulação de fotos é
livre e não deixa rastros.
São Paulo tem quatro pontos
conhecidos pelas autoridades
policiais onde qualquer pessoa
pode renascer perante a lei, caso seja um procurado da Justiça ou queira criar identidade
falsa: praça da Sé, ruas Barão de
Itapetininga e 24 de Maio, no
centro; e largo 13 de Maio.
Um quinto local, a rua Santa
Ifigênia, pequeno paraíso de
produtos contrabandeados e
pirateados, praticamente ao lado da central da Polícia Civil no
centro de São Paulo, é atualmente uma das fontes desse esquema de corrupção, onde dados pessoais de qualquer cidadão são vendidos fisicamente
em CDs ou, mais ultimamente,
no mundo virtual.
Cadastros virtuais
Em tempos de internet, estelionatários travestidos de comerciantes vendem na Santa
Ifigênia senhas de acesso à base
de dados de órgãos de segurança com atuação nacional e aos
cadastros de empresas de telefonia fixa e móvel. As senhas
têm validade de 15 dias e custam cerca de R$ 2.500. Ultrapassados, os CDs com os dados
pessoais saem por R$ 500.
A partir da aquisição de uma
senha ou um CD desses, qualquer um consegue os números
dos documentos de outra pessoa, bastando que ela tenha um
CPF ativo, e pode partir para a
confecção de documentos falsos. Na Sé e no largo 13 de Maio,
as portas de entrada dos postos
do Poupatempo, espaço mantido pelo governo estadual, são
os principais focos para a corrupção em torno da documentação falsificada.
Absolutamente tudo, da certidão de nascimento ao atestado de óbito, passando por RG,
CPF, habilitação, passaporte,
certificado de reservista militar, carteira de trabalho e até
diploma de médico, por exemplo, está à venda por ali.
Os plaqueiros, normalmente
jovens dispostos a intermediar
a negociação entre falsários e
interessados na compra de uma
nova identidade, formam o primeiro elo da corrente desse esquema de corrupção. Eles são
chamados assim porque passam o dia nas ruas, segurando
placas nas quais oferecem fotografias 3x4 a quem passa.
Quando alguém diz não ter
interesse nas fotos, mas, sim,
em "papéis novos", como fez a
reportagem na sexta-feira (25)
no largo 13 de Maio, os plaqueiros viram "puxadores" e assumem a função de colocar frente
a frente quem vende e quem
quer comprar documentos.
"Mas quem deu um salve para você chegar na gente? O irmão aí não é polícia não, certo?", questionou um plaqueiro.
Bastou a reportagem dizer ter
sido indicada por "tio", maneira como vários criminosos se
chamam nas ruas de São Paulo,
e o esquema para comprar a habilitação falsa engrenou.
"Desculpa, rapaz, a gente tem
perguntado porque os ratos
cinza [policiais militares] e os
paisanas [policiais civis] estão
infiltrados aqui e o negócio está
molhado [ruim]. A gente desconfia só para garantir o bom
andamento da firma", argumentou o falsário indicado por
um plaqueiro/puxador.
"A cena é a seguinte, irmão:
metade das moedas na encomenda e o restante delas no
fim, com o papel quente [original] na mão. É só entregar a foto e os dados e voltar na quarta.
Se não der certo, em nome do
respeito da gente pelo "tio" citado aí pelo irmão, o dinheiro volta. A gente não pode se queimar
[ter a imagem prejudicada] no
mercado, né?", disse o falsário.
Nesses locais, a tabela para
criar uma identidade falsa flutua de acordo com a qualidade
dos papéis usados nos documentos, as informações pessoais inseridas neles e o prazo
de entrega. Quanto mais perfeito e mais rápido, mais alto será
o valor cobrado.
Em setembro, durante a negociação da carteira de Faux, a
polícia paulista realizou ações
na praça da Sé para prender negociadores de atestados médicos falsos e isso inflacionou a
falsificação em toda a cidade.
O documento de Faux custou
R$ 1.500. Metade foi entregue
no pedido da carteira, na sexta-feira (25); a outra parte foi na
manhã de quarta (30), quando
o documento estava pronto e
foi entregue perto de uma faculdade na rua do Poupatempo
do governo paulista, dentro de
uma folha sulfite dobrada.
Como a encomenda veio errada, o falsário se desculpou,
ofereceu compensação e cogitou refazer o documento. O pedido era para uma habilitação
categoria E, a dos motoristas
profissionais. A habilitação entregue é AB e permite dirigir
apenas carros pequenos e também, "de brinde" e "em nome
do respeito pelo "tio'", a licença
para guiar moto.
A Secretaria da Segurança
Pública da gestão José Serra
(PSDB), órgão responsável pela
emissão de documentos como a
carteira de motorista adquirida
para a produção desta reportagem, foi procurada quarta-feira, mas não se manifestou sobre o comércio criminoso de
documentos em São Paulo.
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