São Paulo, domingo, 04 de outubro de 2009

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Identidade comprada

Reportagem da Folha consegue carteira de identificação com papel-moeda oficial, capaz de fazer qualquer pessoa "renascer" perante a lei, em um dos pontos de venda de documentos de São Paulo

ANDRÉ CARAMANTE
DA REPORTAGEM LOCAL

Armando Homem de Mello Faux nasceu há oito dias, nas ruas do entorno do largo 13 de Maio, uma cópia da praça da Sé em Santo Amaro, coração da zona sul de São Paulo. Faux já chegou neste mundo aos 24 anos e com carteira de motorista para dirigir carros e motos.
Apesar de constar na sua licença de motorista (documento capaz de substituir RG e CPF em uma blitz policial, na abertura de uma conta bancária ou para conseguir empréstimo, por exemplo) ser filho do casal Teresa Cristina e Geraldo, Faux é, na verdade, rebento da corrupção, e não nasceu em 1985, como estampa o documento.
Tudo em Faux, a começar pelo nome e pela imagem, é falso. Ele simplesmente não existe. Faux foi um personagem criado pela Folha para comprovar como o dinheiro move a corrupção e abre espaço para atos ilícitos.
Em tempo: nem tudo referente a Faux é falso. O papel da carteira dele é original, do tipo papel-moeda, exatamente como a de qualquer cidadão habilitado oficialmente. A categoria do documento é AB, a exigida para guiar carros e motos. O número do CPF no documento, segundo a Receita Federal, é ativo em nome de um homem.
A fotografia de Faux foi criada digitalmente, a partir da imagem de um banco de fotos. Pouco mais de uma hora à frente do computador deixou o homem, inicialmente careca, com cabelo e bigode. Mas quem vende documentos falsos também dá consultoria e chega a indicar páginas na internet nas quais a manipulação de fotos é livre e não deixa rastros.
São Paulo tem quatro pontos conhecidos pelas autoridades policiais onde qualquer pessoa pode renascer perante a lei, caso seja um procurado da Justiça ou queira criar identidade falsa: praça da Sé, ruas Barão de Itapetininga e 24 de Maio, no centro; e largo 13 de Maio.
Um quinto local, a rua Santa Ifigênia, pequeno paraíso de produtos contrabandeados e pirateados, praticamente ao lado da central da Polícia Civil no centro de São Paulo, é atualmente uma das fontes desse esquema de corrupção, onde dados pessoais de qualquer cidadão são vendidos fisicamente em CDs ou, mais ultimamente, no mundo virtual.

Cadastros virtuais
Em tempos de internet, estelionatários travestidos de comerciantes vendem na Santa Ifigênia senhas de acesso à base de dados de órgãos de segurança com atuação nacional e aos cadastros de empresas de telefonia fixa e móvel. As senhas têm validade de 15 dias e custam cerca de R$ 2.500. Ultrapassados, os CDs com os dados pessoais saem por R$ 500.
A partir da aquisição de uma senha ou um CD desses, qualquer um consegue os números dos documentos de outra pessoa, bastando que ela tenha um CPF ativo, e pode partir para a confecção de documentos falsos. Na Sé e no largo 13 de Maio, as portas de entrada dos postos do Poupatempo, espaço mantido pelo governo estadual, são os principais focos para a corrupção em torno da documentação falsificada.
Absolutamente tudo, da certidão de nascimento ao atestado de óbito, passando por RG, CPF, habilitação, passaporte, certificado de reservista militar, carteira de trabalho e até diploma de médico, por exemplo, está à venda por ali.
Os plaqueiros, normalmente jovens dispostos a intermediar a negociação entre falsários e interessados na compra de uma nova identidade, formam o primeiro elo da corrente desse esquema de corrupção. Eles são chamados assim porque passam o dia nas ruas, segurando placas nas quais oferecem fotografias 3x4 a quem passa.
Quando alguém diz não ter interesse nas fotos, mas, sim, em "papéis novos", como fez a reportagem na sexta-feira (25) no largo 13 de Maio, os plaqueiros viram "puxadores" e assumem a função de colocar frente a frente quem vende e quem quer comprar documentos.
"Mas quem deu um salve para você chegar na gente? O irmão aí não é polícia não, certo?", questionou um plaqueiro. Bastou a reportagem dizer ter sido indicada por "tio", maneira como vários criminosos se chamam nas ruas de São Paulo, e o esquema para comprar a habilitação falsa engrenou.
"Desculpa, rapaz, a gente tem perguntado porque os ratos cinza [policiais militares] e os paisanas [policiais civis] estão infiltrados aqui e o negócio está molhado [ruim]. A gente desconfia só para garantir o bom andamento da firma", argumentou o falsário indicado por um plaqueiro/puxador.
"A cena é a seguinte, irmão: metade das moedas na encomenda e o restante delas no fim, com o papel quente [original] na mão. É só entregar a foto e os dados e voltar na quarta. Se não der certo, em nome do respeito da gente pelo "tio" citado aí pelo irmão, o dinheiro volta. A gente não pode se queimar [ter a imagem prejudicada] no mercado, né?", disse o falsário.
Nesses locais, a tabela para criar uma identidade falsa flutua de acordo com a qualidade dos papéis usados nos documentos, as informações pessoais inseridas neles e o prazo de entrega. Quanto mais perfeito e mais rápido, mais alto será o valor cobrado.
Em setembro, durante a negociação da carteira de Faux, a polícia paulista realizou ações na praça da Sé para prender negociadores de atestados médicos falsos e isso inflacionou a falsificação em toda a cidade.
O documento de Faux custou R$ 1.500. Metade foi entregue no pedido da carteira, na sexta-feira (25); a outra parte foi na manhã de quarta (30), quando o documento estava pronto e foi entregue perto de uma faculdade na rua do Poupatempo do governo paulista, dentro de uma folha sulfite dobrada.
Como a encomenda veio errada, o falsário se desculpou, ofereceu compensação e cogitou refazer o documento. O pedido era para uma habilitação categoria E, a dos motoristas profissionais. A habilitação entregue é AB e permite dirigir apenas carros pequenos e também, "de brinde" e "em nome do respeito pelo "tio'", a licença para guiar moto.
A Secretaria da Segurança Pública da gestão José Serra (PSDB), órgão responsável pela emissão de documentos como a carteira de motorista adquirida para a produção desta reportagem, foi procurada quarta-feira, mas não se manifestou sobre o comércio criminoso de documentos em São Paulo.


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