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+ ensaio
Centenário de nascimento, que será comemorado na quarta-feira, resgata
outras facetas da poeta, como o interesse por educação e política
Cecília Meireles: O impasse da eternidade
Luis Bueno
especial para a Folha
Quando, em 1939, Cecília Meireles publicou "Viagem", que
havia sido premiado pela Academia Brasileira de Letras no
ano anterior, Mário de Andrade, àquela
altura crítico do "Diário de Notícias" do
Rio de Janeiro, logo apontou um dos traços essenciais do livro: o que ele chamou
de "ecletismo sábio" da poeta. Esse ecletismo, presente na variedade tanto dos
temas tratados pela autora quanto no
que diz respeito à técnica do verso, é
mesmo a chave para entender por que
"Viagem" é um ponto de virada na obra
de Cecília Meireles, início em alto nível
de sua poesia madura.
Isso não significa, no entanto, que
"Viagem" represente um total rompimento com o que Cecília Meireles produzira até ali. É verdade que em "Baladas
para El-Rei" (1925), coletânea anterior
ao livro de 1939, encontra-se uma poeta
bem diferente, cheia de reminiscências
do simbolismo -especialmente de Cruz
e Sousa- em poemas como "Do Meu
Outono". É nesse livro que se localiza
com mais facilidade a ligação de Cecília
com o grupo espiritualista de Tasso da
Silveira (1895-1968), que lançou a importante revista "Festa", em 1927. Mas o livro anterior, "Nunca Mais... e Poema dos
Poemas" (1923) tem um movimento
bem diferente, muito mais próximo do
que se vê em "Viagem".
Essa diferença fica clara quando se
compara "Poema dos Poemas" com um
texto do próprio Tasso da Silveira, "Canto Absoluto" (1940). O que se vê nesse
canto é um lirismo que vem de Deus
("Meu canto de plenitude,/ porque existes, Senhor") e se funda no desejo da
imensidão, daquilo que, mesmo na natureza, pode remeter, pela grandeza, ao absoluto ("Meu canto universal e total/ como o das vastidões oceânicas/ em torno
dos continentes"). Em "Poema dos Poemas" o que se tem é um lirismo que busca Deus.
Essa busca se inicia, no "Poema da Ansiedade", pelo que de mais amplo e alto
há: o firmamento. Mas o encontro efetivo só acontece depois da percepção de
que é preciso curvar-se e atentar para as
pequenas coisas. O final desse ciclo de
poemas é a síntese desse encontro: "Eleito, Eleito, ó meu Eleito/ mas, então,/ era
aqui embaixo que estavas?".
Desde "Poema dos Poemas", portanto,
Cecília Meireles dá mostras de perceber
o grande conflito, também percebido
por Jorge de Lima e Murilo Mendes, que
é ser religioso e poeta em plena modernidade. Ou seja: ela já lidava, como eles lidariam, com o binômio tempo e eternidade. Sua solução, ou melhor, sua forma
de incorporação do impasse que é ser alguém que se debruça sobre os problemas
da eternidade num tempo em que é absolutamente impossível dar as costas para o que é temporal, seria bastante pessoal e seguiria o caminho que ela própria
havia sugerido em "Poema dos Poemas":
o interesse não pelo monumental, mas
por absolutamente tudo que há no mundo, especialmente pelo que é pequeno e
transitório. É isso que se vê no ecletismo
de "Viagem": a convivência do banal
com o grandioso na justaposição de diferentes poemas, o que chega a perturbar
Mário de Andrade, por ver-se jogado para todos os lados.
Sutil dissonância
Como se vê, não
é o ecletismo como forma de demonstrar
virtuosismo. O que ocorre com a poeta é
bem o contrário disso, o seu é um ecletismo que nasce da variedade de interesses
pelo mundo e pela poesia. Seu virtuosismo possibilita o ecletismo: é meio, não é
fim. Há quem diga, nesse campo, que a
poesia de Cecília Meireles apela para
uma musicalidade fácil, calcada nas formas versificatórias mais tradicionais e
populares da língua. É claro que seu canto não é "a palo seco" como o de João Cabral, mas um exame detalhado de sua
técnica revela uma poeta que trabalha
com frequência na linha de uma sutil dissonância, obtida basicamente de duas
formas.
A primeira, mais perceptível, se dá pelo
contraste entre o ritmo regular de uma
poesia potencialmente comunicativa e a
disforia de um eu que se encontra naquele impasse sem saída, impossibilitado,
portanto, de partilhar qualquer tipo de
experiência comunicativa. A segunda,
mais técnica, é ir provocando "tropeços
rítmicos" no leitor. Cecília Meireles é
mestre em estabelecer um ritmo quase
encantatório para, estrategicamente,
deslocando os acentos internos do verso,
criar uma estranheza no interior do que
parecia tão pacificamente regular.
Também nesse sentido, da variedade e
da convivência do absoluto com o terreno, do ínfimo com o grandioso, vão se
constituir dois dos símbolos centrais na
poesia de Cecília Meireles: o mar e o instante. O mar é a um só tempo a vastidão,
que remete ao que é eterno, e o efêmero
das suas formas em constante mudança.
É o azul de sua superfície e a infinidade
de coisas que estão nele afundadas: o
passado familiar, os sonhos, o próprio
tempo. O instante contém em si o efêmero e, por contraste, por seus próprios limites, o que escapa à desagregação do
tempo. É bem conhecida a abertura de
"Motivo": "Eu canto porque o instante
existe/ e a minha vida está completa./
Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta". Mas essa importância dada ao instante, na qualidade de presente que possibilita o canto e, ao mesmo tempo, viabiliza a permanência do próprio instante, já que, obviamente, o que jamais existiu não pode permanecer, revela ainda o
interesse de Cecília Meireles pela filosofia oriental -em especial pela cultura indiana-, que percebe com tanta agudeza
a importância do aqui e do agora.
Aliás, somente na proximidade do centenário de seu nascimento é que se tem
firmado a multiplicidade de interesses de
Cecília Meireles não apenas como poeta
mas também como intelectual atuante.
Já há algum tempo se conhecia algo da
Cecília Meireles estudiosa do folclore
-por meio de "Artes Populares" (1968)
e "Panorama Folclórico dos Açores"
(1958)- e da literatura infantil -por
meio de "Problemas da Literatura Infantil" (1951), além da sua prática poética,
exemplar nesse campo.
Mas seus textos sobre educação, suas
crônicas de viagem assim como o interesse pela política de seu tempo só têm
podido romper a fama de poeta do etéreo com a publicação de alguns estudos
recentes e, principalmente, com a reunião em livro, por Leodegário A. de Azevedo Filho, de sua enorme colaboração
em jornais.
Imaginário popular
A preocupação com o chão concreto da realidade
brasileira, aliás, Cecília Meireles já deixara inscrita naquele que alguns críticos
consideram sua obra máxima, o "Romanceiro da Inconfidência" (1953). É
certo que, também aqui, estará presente
aquela duplicidade entre o grandioso e o
pequeno, e não é surpreendente então
que, no livro em que ela mais diretamente tratou da história do país, seu interesse
recaísse exatamente num de seus episódios mais fluidos, a Inconfidência Mineira. E que, dentro dele, ao lado da pesquisa histórica propriamente dita, assuma
importância capital o imaginário popular, resgatado na figura lendária de Marília ou, de maneira lapidar, na misteriosa
morte de Cláudio Manuel da Costa, uma
história toda contada não pelo que se sabe, mas pelo que se diz: "Isto é o que conta o vizinho/ que ouviu falar do soldado./
Mas do corpo ninguém sabe:/ anda escondido ou enterrado?/ Dizem que o viram ferido,/ ferido, e não sufocado"
("Romance 49").
Afinal, como o mar e o instante, a história também pode ensinar que, "pelos
caminhos do mundo,/ nenhum destino
se perde:/ Há os grandes sonhos dos homens,/ e a surda força dos vermes" ("Romance 34").
Luis Bueno é professor de literatura brasileira na
Universidade Federal do Paraná.
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