São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2001

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Centenário de nascimento, que será comemorado na quarta-feira, resgata outras facetas da poeta, como o interesse por educação e política

Cecília Meireles: O impasse da eternidade

Luis Bueno
especial para a Folha

Quando, em 1939, Cecília Meireles publicou "Viagem", que havia sido premiado pela Academia Brasileira de Letras no ano anterior, Mário de Andrade, àquela altura crítico do "Diário de Notícias" do Rio de Janeiro, logo apontou um dos traços essenciais do livro: o que ele chamou de "ecletismo sábio" da poeta. Esse ecletismo, presente na variedade tanto dos temas tratados pela autora quanto no que diz respeito à técnica do verso, é mesmo a chave para entender por que "Viagem" é um ponto de virada na obra de Cecília Meireles, início em alto nível de sua poesia madura. Isso não significa, no entanto, que "Viagem" represente um total rompimento com o que Cecília Meireles produzira até ali. É verdade que em "Baladas para El-Rei" (1925), coletânea anterior ao livro de 1939, encontra-se uma poeta bem diferente, cheia de reminiscências do simbolismo -especialmente de Cruz e Sousa- em poemas como "Do Meu Outono". É nesse livro que se localiza com mais facilidade a ligação de Cecília com o grupo espiritualista de Tasso da Silveira (1895-1968), que lançou a importante revista "Festa", em 1927. Mas o livro anterior, "Nunca Mais... e Poema dos Poemas" (1923) tem um movimento bem diferente, muito mais próximo do que se vê em "Viagem". Essa diferença fica clara quando se compara "Poema dos Poemas" com um texto do próprio Tasso da Silveira, "Canto Absoluto" (1940). O que se vê nesse canto é um lirismo que vem de Deus ("Meu canto de plenitude,/ porque existes, Senhor") e se funda no desejo da imensidão, daquilo que, mesmo na natureza, pode remeter, pela grandeza, ao absoluto ("Meu canto universal e total/ como o das vastidões oceânicas/ em torno dos continentes"). Em "Poema dos Poemas" o que se tem é um lirismo que busca Deus. Essa busca se inicia, no "Poema da Ansiedade", pelo que de mais amplo e alto há: o firmamento. Mas o encontro efetivo só acontece depois da percepção de que é preciso curvar-se e atentar para as pequenas coisas. O final desse ciclo de poemas é a síntese desse encontro: "Eleito, Eleito, ó meu Eleito/ mas, então,/ era aqui embaixo que estavas?". Desde "Poema dos Poemas", portanto, Cecília Meireles dá mostras de perceber o grande conflito, também percebido por Jorge de Lima e Murilo Mendes, que é ser religioso e poeta em plena modernidade. Ou seja: ela já lidava, como eles lidariam, com o binômio tempo e eternidade. Sua solução, ou melhor, sua forma de incorporação do impasse que é ser alguém que se debruça sobre os problemas da eternidade num tempo em que é absolutamente impossível dar as costas para o que é temporal, seria bastante pessoal e seguiria o caminho que ela própria havia sugerido em "Poema dos Poemas": o interesse não pelo monumental, mas por absolutamente tudo que há no mundo, especialmente pelo que é pequeno e transitório. É isso que se vê no ecletismo de "Viagem": a convivência do banal com o grandioso na justaposição de diferentes poemas, o que chega a perturbar Mário de Andrade, por ver-se jogado para todos os lados.

Sutil dissonância
Como se vê, não é o ecletismo como forma de demonstrar virtuosismo. O que ocorre com a poeta é bem o contrário disso, o seu é um ecletismo que nasce da variedade de interesses pelo mundo e pela poesia. Seu virtuosismo possibilita o ecletismo: é meio, não é fim. Há quem diga, nesse campo, que a poesia de Cecília Meireles apela para uma musicalidade fácil, calcada nas formas versificatórias mais tradicionais e populares da língua. É claro que seu canto não é "a palo seco" como o de João Cabral, mas um exame detalhado de sua técnica revela uma poeta que trabalha com frequência na linha de uma sutil dissonância, obtida basicamente de duas formas. A primeira, mais perceptível, se dá pelo contraste entre o ritmo regular de uma poesia potencialmente comunicativa e a disforia de um eu que se encontra naquele impasse sem saída, impossibilitado, portanto, de partilhar qualquer tipo de experiência comunicativa. A segunda, mais técnica, é ir provocando "tropeços rítmicos" no leitor. Cecília Meireles é mestre em estabelecer um ritmo quase encantatório para, estrategicamente, deslocando os acentos internos do verso, criar uma estranheza no interior do que parecia tão pacificamente regular. Também nesse sentido, da variedade e da convivência do absoluto com o terreno, do ínfimo com o grandioso, vão se constituir dois dos símbolos centrais na poesia de Cecília Meireles: o mar e o instante. O mar é a um só tempo a vastidão, que remete ao que é eterno, e o efêmero das suas formas em constante mudança. É o azul de sua superfície e a infinidade de coisas que estão nele afundadas: o passado familiar, os sonhos, o próprio tempo. O instante contém em si o efêmero e, por contraste, por seus próprios limites, o que escapa à desagregação do tempo. É bem conhecida a abertura de "Motivo": "Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta". Mas essa importância dada ao instante, na qualidade de presente que possibilita o canto e, ao mesmo tempo, viabiliza a permanência do próprio instante, já que, obviamente, o que jamais existiu não pode permanecer, revela ainda o interesse de Cecília Meireles pela filosofia oriental -em especial pela cultura indiana-, que percebe com tanta agudeza a importância do aqui e do agora. Aliás, somente na proximidade do centenário de seu nascimento é que se tem firmado a multiplicidade de interesses de Cecília Meireles não apenas como poeta mas também como intelectual atuante. Já há algum tempo se conhecia algo da Cecília Meireles estudiosa do folclore -por meio de "Artes Populares" (1968) e "Panorama Folclórico dos Açores" (1958)- e da literatura infantil -por meio de "Problemas da Literatura Infantil" (1951), além da sua prática poética, exemplar nesse campo. Mas seus textos sobre educação, suas crônicas de viagem assim como o interesse pela política de seu tempo só têm podido romper a fama de poeta do etéreo com a publicação de alguns estudos recentes e, principalmente, com a reunião em livro, por Leodegário A. de Azevedo Filho, de sua enorme colaboração em jornais.

Imaginário popular
A preocupação com o chão concreto da realidade brasileira, aliás, Cecília Meireles já deixara inscrita naquele que alguns críticos consideram sua obra máxima, o "Romanceiro da Inconfidência" (1953). É certo que, também aqui, estará presente aquela duplicidade entre o grandioso e o pequeno, e não é surpreendente então que, no livro em que ela mais diretamente tratou da história do país, seu interesse recaísse exatamente num de seus episódios mais fluidos, a Inconfidência Mineira. E que, dentro dele, ao lado da pesquisa histórica propriamente dita, assuma importância capital o imaginário popular, resgatado na figura lendária de Marília ou, de maneira lapidar, na misteriosa morte de Cláudio Manuel da Costa, uma história toda contada não pelo que se sabe, mas pelo que se diz: "Isto é o que conta o vizinho/ que ouviu falar do soldado./ Mas do corpo ninguém sabe:/ anda escondido ou enterrado?/ Dizem que o viram ferido,/ ferido, e não sufocado" ("Romance 49").
Afinal, como o mar e o instante, a história também pode ensinar que, "pelos caminhos do mundo,/ nenhum destino se perde:/ Há os grandes sonhos dos homens,/ e a surda força dos vermes" ("Romance 34").


Luis Bueno é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Paraná.



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