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Sai nova tradução de "Enquanto Agonizo", de William Faulkner, um dos
romances mais célebres do século 20
Enquanto Agonizo
230 págs., R$ 30,00
de William Faulkner. Trad. de
Wladir Dupont. Ed. Mandarim
(av. Raimundo Pereira de Magalhães, 3.305, CEP 05145-200,
SP, tel. 0/xx/11/3649-4600).
Alumbramento brutal
por Silviano Santiago
Enquanto Agonizo", romance de William Faulkner
(1897-1962) publicado em 1930, é uma jóia de rara
beleza. Apesar de ter sido escrito em seis semanas,
logo depois de "O Som e a Fúria", comentá-lo em
poucas linhas de jornal é cometer pecado mortal contra a
literatura. Cometamos o pecado, esperando a remissão pela leitura imaginativa e inteligente do romance pelo jovem
e atento leitor brasileiro.
Da imaginação e da inteligência do leitor, da sua capacidade reflexiva, depende a sobrevivência de romancistas
como Faulkner e Guimarães Rosa na cena cultural mercadológica deste início de milênio. Há grandes ficcionistas
modernos que são paradoxalmente palatáveis aos mercadores do templo literário, como Franz Kafka ou Graciliano
Ramos. O estilo deste, por exemplo, antes de ser franqueado ao público, é oprimido pela sintaxe e preso pelo Dops,
como ele mesmo nos informa em "Memórias do Cárcere".
O estilo de Faulkner e Rosa testemunha a favor da liberdade que era concedida aos escritores pela língua latina.
Nesta, os vocábulos eram declináveis e, por isso, se acomodavam em qualquer canto da frase, perturbando a linearidade que acopla sujeito a verbo, e este a predicado.
Se o estilo de Kafka e de Graciliano é mel para as gramáticas normativas e para os leitores menos atentos às perfídias
da retórica literária, já o de Faulkner e de Rosa é colméia
que não confia mel ao bom senso disciplinar e às regras
constitutivas da sintaxe normativa. Faulkner e Rosa têm
um estilo que incentiva a anarquia na gramática e o pavor
no leitor. Só no pavor é que pode brotar a planta invulgar
do alumbramento. O leitor que crê na educação pelo livro
tem medo de si diante do espelho que a prosa dos dois romancistas lhe mostra. "Como aprender, como me aprimorar lendo isso?" -pergunta o leitor acuado. E abandona o
livro. Conrad Aiken, em ensaio intitulado "O Romance como Forma", é quem reabilitou o estilo de Faulkner depois
das severíssimas críticas feitas por, entre outros,
Wyndham Lewis.
Faulkner e Rosa são escritores pré-iluministas. Ou melhor, antiiluministas, já
que são eles dois grandes pilares da modernidade ocidental. As luzes que seus
personagens, sensíveis e truculentos,
lançam sobre o indivíduo, a sociedade e
o mundo não vêm do "esclarecimento".
Sua fonte é antes a ignorância sabichona,
autoritária e violenta dos excluídos pela
formação educacional modernizante.
Em cada ignorantão de Faulkner existe
um Aleijadinho em busca de expressão
fonética.
Os personagens de Faulkner são semelhantes a artistas autodidatas, para usar a
expressão dos críticos de artes plásticas
norte-americanos. "Autodidata" é uma
categoria descritiva bastante feliz. Substitui a desastrada etiqueta de artista "primitivo" ou a tradicional de artista "popular". Nada está mais próximo de
Faulkner do que a frase de um artista
operário e autodidata texano, Isaac
Smith: "Trabalho a partir de Deus. Para
que fazer alguma coisa baseada na idéia
de um outro homem?". No universo de
"Enquanto Agonizo" o autodidata desaltera fome e sede nos versículos bíblicos.
Os personagens se alimentam diretamente do Velho e do Novo Testamentos,
sem nenhuma intermediação interpretativa institucional (igreja) ou humana (sacerdote). No meio pobre descrito pelo
romancista, são tão fundamentalistas
quanto qualquer taleban diante das páginas abertas do Alcorão.
A beleza do estilo de Faulkner e de Rosa na modernidade tem tudo a ver com o
papel que as máscaras africanas desempenharam na transformação do cânone
do belo nas artes plásticas de vanguarda.
Faulkner está para os seus caipiras de
"Enquanto Agonizo" assim como Picasso está para as raparigas em flor de Avignon, a que ele deu forma e cor em célebre
quadro. O romancista não teve receio de
emprestar voz a um débil
mental em "O Som e a Fúria" ou a um estuprador
que se vale de um sabugo,
como Popeye no romance
"Santuário".
Se o estilo de Faulkner
merece mais do que a inegável competência linguística do seu atual tradutor, já o romance exige do jovem leitor
que suspenda o clima de estripulias narcísicas a que convida a literatura atual.
"Enquanto Agonizo" pode introduzir
o leitor a um dos mais densos e originais
universos humanos criados pelo homem-deus no século 20, o condado de
Yoknapatawpha, no sul dos Estados
Unidos. À linearidade temporal da narrativa, proposta pela pouco sinuosa e nada barroca literatura atual, o romance
contrapõe o intrincado vaivém circular
da engenharia da roda, a engenharia da
roda de carroça que leva o caixão da mãe
e mulher para ser enterrado em Jefferson. Tudo vem escrito numa prosa que é
"estranhamente fluida e escorregadia e,
ao mesmo tempo, exageradamente afetada" (Conrad Aiken).
O eixo da roda
O eixo da roda narrativa dramatiza a agonia e morte de Addie Bundren, mulher e mãe, responsável
por um único e solitário capítulo no
meio do romance. Do eixo central saem e
a ele retornam os raios da roda, ou seja,
os 59 curtos capítulos do romance. Cada
capítulo é um monólogo. Os monólogos
são de responsabilidade do marido e dos
cinco filhos de Addie, bem como dos vizinhos com quem mantêm laços de amizade. O todo da narrativa constitui o aro
externo da roda. Eis o resumo do romance que Faulkner escreveu com a ajuda da
água e do fogo. Da água que desce dos
céus em chuva, fazendo transbordar o
rio, derrubando pontes, isolando ainda
mais o grupo social. Do incêndio com
que o mais ardiloso dos filhos pretende
dar por encerrado o périplo tragicômico,
às vezes grotesco, do caixão até o cemitério de uma cidade vizinha.
Os raios da roda se articulam ao eixo fixo central no tempo do enquanto -para
se valer de palavra tomada de empréstimo ao título da obra. Tentemos descrever essa forma do tempo mítico, circular,
com a ajuda da mecânica da roda. Enquanto a mulher e mãe agoniza, morre e
é enterrada, cada um dos membros da
família repassa experiências que foram
definitivas na sua configuração de seres
humanos e por elas se deixa obsedar.
No tempo do enquanto, o que é tido
como superficial no calendário das pequenas ações e conversas do cotidiano
passa a calar fundo graças
às reminiscências. O monólogo que constitui um
personagem leva água para o monjolo do outro. Na
família, cada um é diferente do outro e são todos
iguais. Como montar o
quebra-cabeça da esquizofrenia familiar faulkneriana? Não há progresso nos 59 micromonólogos que compõem "Enquanto
Agonizo". O tempo da narrativa gira sobre si mesmo como a roda na areia.
Com a ajuda de Nathalie Sarraute, digamos que a mulher e mãe, semelhante
ao sol, afeta a todos da família e da comunidade pelo efeito de tropismo. Tal qual
plantas numa paisagem inóspita, todos
os personagens reagem a ela. Dela se
aproximam em busca de vida, dela se
afastam em busca de autonomia e a ela
retornam reconciliados com o destino. A
mulher e mãe irradia uma luz feiticeira.
Ao atrair, sua claridade espetaculariza
vontades, desejos e devaneios. Ao refluir,
revela a sordidez, a imundície e a miséria
em que vivem esses camponeses do Mississippi. Addie é a força amorosa e traiçoeira que deixa à vista essa família de
"white trash" (lixo branco), para usar a
expressão que os negros usam para designar os brancos que se igualam a eles
na pobreza. Como na novela "A Morte
de Ivan Ilitch", de Tolstói, o romance
exala o cheiro (catinga e perfume) da
morte. Um cheiro forte, como teria dito o
camponês Guerasim, alçado à condição
de ajudante de mordomo, diante do urinol usado pelo patrão.
Faulkner, é sabido, teve primeiro sucesso junto aos intelectuais franceses.
Anos depois será reconhecido pelos
compatriotas e ingleses. Tenho uma hipótese. A literatura francesa, na sua forma mais tradicional, que é a do "récit",
sempre se interessou pelo monólogo
longo, que no fundo nada mais é do que
suporte para a prosa introspectiva (observações sobre a vida íntima pelo próprio sujeito).
Intimidade caipira
De Madame de
la Fayette, no século 17, a André Gide, Albert Camus e Patrick Modiano, nos nossos dias, criou-se a tradição do monólogo ficcional francês. Na literatura francesa, cartesiana por definição, o narrador/
personagem da prosa introspectiva tem
de ser inteligente, capaz de destrinchar
sentimentos e emoções que constituem
o sujeito no mundo, ao lado de pares cujo maior prazer é se exercitarem na perversidade e sutileza dos jogos sociais
aristocratizantes.
Faulkner não tem medo de usar o monólogo quando o personagem é destituído de raciocínio lógico. Seus colegas de
ofício, como Hemingway ou Steinbeck,
preferem imitar a técnica do romance
policial. Ambos se valem dos recursos da
psicologia comportamental (behaviorista) que lhes é proposta por William James e seus seguidores. Nada de vida íntima nos romances dos expoentes da geração perdida europeizada, tudo é ação e
gesto. Faulkner trata a brutalidade de outra forma. Ele é o detetive da intimidade
caipira. Devassa-a para descobrir (e
mostrar) seres tão complexos na sua fúria de viver quanto os citadinos.
Calculem a bomba que explode nos arraiais artísticos franceses quando figuras
como Valery Larbaud, tradutor de James
Joyce, são levadas a defrontar com um,
com vários narradores/personagens de
Faulkner. Estão diante de seres ignorantes, violentos e brutos, mas ao mesmo
tempo extremamente sensíveis, capazes
duma fala profética e poética modelar,
como é o caso, respectivamente, de Darl
e Vardaman. Uma baforada de ar do
campo abre as janelas e varre os salões
cosmopolitas.
Como não admirar Faulkner por
ter dado ao caçula dos Bundren, Vardaman, um capítulo com uma única
e curta frase que, na sua verdade poética, exprime a riqueza simbólica
tanto do romance imerso na chuva
quanto do caixão submerso nas
águas furiosas do rio. Pensa Vardaman: "Minha mãe é um peixe". É o
mesmo Vardaman que faz furos no
caixão para que a mãe defunta possa
respirar.
Como não admirar Faulkner por
ter emprestado a Cash, o mestre carapina da família, uma lógica construtiva que faria inveja a muitos arquitetos diplomados. Ele idealiza e
fabrica o caixão da mãe, imaginando
que ele teria de ser feito "de esguelha": "O magnetismo animal de um
corpo morto faz com que a pressão
funcione obliquamente, de forma
que as junturas e as ligações de um
caixão devem ser feitas de esguelha".
Faca de dois gumes
A ignorância no universo dos personagens
faulknerianos é uma faca de dois gumes. Tanto aponta para a iluminação
poética de raiz mítico-religiosa como
pode ainda apontar para formas inaceitáveis de violência contra o indivíduo e a sociedade.
Ao tentar salvar o caixão da mãe
das águas revoltosas do rio, Cash
quebra uma vez mais a perna. Não
recorre a médico ou farmacêutico.
Deseja acompanhar o féretro da mãe
até a cidade vizinha. Custe o que custar. O pai não titubeia. Compra um
saco de cimento. Mistura o pó com
água. Encana a perna do filho com a
mistura, sem antes untá-la com gordura. Lá vai ele montado no caixão
da mãe. No dia seguinte a perna de
Cash parece a de um crioulo, como
diz o texto. Na profundidade do
equívoco assassino do pai não está a
evidência da barbárie humana. Antes a vontade de curar pelos meios
que estão a bordo da navegação pobre pela vida. Na vítima filial, no seu
rosto e palavras resplandece a dor
sem sofrimento, tema de que será
arauto entre nós o cristão Mário de
Andrade. À pergunta do médico:
"Está doendo?", Cash responde:
"Nada que não seja suportável".
Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico
de literatura, autor de "Stella Manhattan"
(ed. Rocco) e "Nas Malhas da Letra" (Companhia das Letras), entre outros.
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