São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2001

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Sai nova tradução de "Enquanto Agonizo", de William Faulkner, um dos romances mais célebres do século 20

Enquanto Agonizo

230 págs., R$ 30,00
de William Faulkner. Trad. de Wladir Dupont. Ed. Mandarim (av. Raimundo Pereira de Magalhães, 3.305, CEP 05145-200, SP, tel. 0/xx/11/3649-4600).

Alumbramento brutal

por Silviano Santiago

Enquanto Agonizo", romance de William Faulkner (1897-1962) publicado em 1930, é uma jóia de rara beleza. Apesar de ter sido escrito em seis semanas, logo depois de "O Som e a Fúria", comentá-lo em poucas linhas de jornal é cometer pecado mortal contra a literatura. Cometamos o pecado, esperando a remissão pela leitura imaginativa e inteligente do romance pelo jovem e atento leitor brasileiro.
Da imaginação e da inteligência do leitor, da sua capacidade reflexiva, depende a sobrevivência de romancistas como Faulkner e Guimarães Rosa na cena cultural mercadológica deste início de milênio. Há grandes ficcionistas modernos que são paradoxalmente palatáveis aos mercadores do templo literário, como Franz Kafka ou Graciliano Ramos. O estilo deste, por exemplo, antes de ser franqueado ao público, é oprimido pela sintaxe e preso pelo Dops, como ele mesmo nos informa em "Memórias do Cárcere".
O estilo de Faulkner e Rosa testemunha a favor da liberdade que era concedida aos escritores pela língua latina. Nesta, os vocábulos eram declináveis e, por isso, se acomodavam em qualquer canto da frase, perturbando a linearidade que acopla sujeito a verbo, e este a predicado.
Se o estilo de Kafka e de Graciliano é mel para as gramáticas normativas e para os leitores menos atentos às perfídias da retórica literária, já o de Faulkner e de Rosa é colméia que não confia mel ao bom senso disciplinar e às regras constitutivas da sintaxe normativa. Faulkner e Rosa têm um estilo que incentiva a anarquia na gramática e o pavor no leitor. Só no pavor é que pode brotar a planta invulgar do alumbramento. O leitor que crê na educação pelo livro tem medo de si diante do espelho que a prosa dos dois romancistas lhe mostra. "Como aprender, como me aprimorar lendo isso?" -pergunta o leitor acuado. E abandona o livro. Conrad Aiken, em ensaio intitulado "O Romance como Forma", é quem reabilitou o estilo de Faulkner depois das severíssimas críticas feitas por, entre outros, Wyndham Lewis.
Faulkner e Rosa são escritores pré-iluministas. Ou melhor, antiiluministas, já que são eles dois grandes pilares da modernidade ocidental. As luzes que seus personagens, sensíveis e truculentos, lançam sobre o indivíduo, a sociedade e o mundo não vêm do "esclarecimento". Sua fonte é antes a ignorância sabichona, autoritária e violenta dos excluídos pela formação educacional modernizante. Em cada ignorantão de Faulkner existe um Aleijadinho em busca de expressão fonética. Os personagens de Faulkner são semelhantes a artistas autodidatas, para usar a expressão dos críticos de artes plásticas norte-americanos. "Autodidata" é uma categoria descritiva bastante feliz. Substitui a desastrada etiqueta de artista "primitivo" ou a tradicional de artista "popular". Nada está mais próximo de Faulkner do que a frase de um artista operário e autodidata texano, Isaac Smith: "Trabalho a partir de Deus. Para que fazer alguma coisa baseada na idéia de um outro homem?". No universo de "Enquanto Agonizo" o autodidata desaltera fome e sede nos versículos bíblicos. Os personagens se alimentam diretamente do Velho e do Novo Testamentos, sem nenhuma intermediação interpretativa institucional (igreja) ou humana (sacerdote). No meio pobre descrito pelo romancista, são tão fundamentalistas quanto qualquer taleban diante das páginas abertas do Alcorão. A beleza do estilo de Faulkner e de Rosa na modernidade tem tudo a ver com o papel que as máscaras africanas desempenharam na transformação do cânone do belo nas artes plásticas de vanguarda. Faulkner está para os seus caipiras de "Enquanto Agonizo" assim como Picasso está para as raparigas em flor de Avignon, a que ele deu forma e cor em célebre quadro. O romancista não teve receio de emprestar voz a um débil mental em "O Som e a Fúria" ou a um estuprador que se vale de um sabugo, como Popeye no romance "Santuário". Se o estilo de Faulkner merece mais do que a inegável competência linguística do seu atual tradutor, já o romance exige do jovem leitor que suspenda o clima de estripulias narcísicas a que convida a literatura atual. "Enquanto Agonizo" pode introduzir o leitor a um dos mais densos e originais universos humanos criados pelo homem-deus no século 20, o condado de Yoknapatawpha, no sul dos Estados Unidos. À linearidade temporal da narrativa, proposta pela pouco sinuosa e nada barroca literatura atual, o romance contrapõe o intrincado vaivém circular da engenharia da roda, a engenharia da roda de carroça que leva o caixão da mãe e mulher para ser enterrado em Jefferson. Tudo vem escrito numa prosa que é "estranhamente fluida e escorregadia e, ao mesmo tempo, exageradamente afetada" (Conrad Aiken).

O eixo da roda
O eixo da roda narrativa dramatiza a agonia e morte de Addie Bundren, mulher e mãe, responsável por um único e solitário capítulo no meio do romance. Do eixo central saem e a ele retornam os raios da roda, ou seja, os 59 curtos capítulos do romance. Cada capítulo é um monólogo. Os monólogos são de responsabilidade do marido e dos cinco filhos de Addie, bem como dos vizinhos com quem mantêm laços de amizade. O todo da narrativa constitui o aro externo da roda. Eis o resumo do romance que Faulkner escreveu com a ajuda da água e do fogo. Da água que desce dos céus em chuva, fazendo transbordar o rio, derrubando pontes, isolando ainda mais o grupo social. Do incêndio com que o mais ardiloso dos filhos pretende dar por encerrado o périplo tragicômico, às vezes grotesco, do caixão até o cemitério de uma cidade vizinha. Os raios da roda se articulam ao eixo fixo central no tempo do enquanto -para se valer de palavra tomada de empréstimo ao título da obra. Tentemos descrever essa forma do tempo mítico, circular, com a ajuda da mecânica da roda. Enquanto a mulher e mãe agoniza, morre e é enterrada, cada um dos membros da família repassa experiências que foram definitivas na sua configuração de seres humanos e por elas se deixa obsedar. No tempo do enquanto, o que é tido como superficial no calendário das pequenas ações e conversas do cotidiano passa a calar fundo graças às reminiscências. O monólogo que constitui um personagem leva água para o monjolo do outro. Na família, cada um é diferente do outro e são todos iguais. Como montar o quebra-cabeça da esquizofrenia familiar faulkneriana? Não há progresso nos 59 micromonólogos que compõem "Enquanto Agonizo". O tempo da narrativa gira sobre si mesmo como a roda na areia. Com a ajuda de Nathalie Sarraute, digamos que a mulher e mãe, semelhante ao sol, afeta a todos da família e da comunidade pelo efeito de tropismo. Tal qual plantas numa paisagem inóspita, todos os personagens reagem a ela. Dela se aproximam em busca de vida, dela se afastam em busca de autonomia e a ela retornam reconciliados com o destino. A mulher e mãe irradia uma luz feiticeira. Ao atrair, sua claridade espetaculariza vontades, desejos e devaneios. Ao refluir, revela a sordidez, a imundície e a miséria em que vivem esses camponeses do Mississippi. Addie é a força amorosa e traiçoeira que deixa à vista essa família de "white trash" (lixo branco), para usar a expressão que os negros usam para designar os brancos que se igualam a eles na pobreza. Como na novela "A Morte de Ivan Ilitch", de Tolstói, o romance exala o cheiro (catinga e perfume) da morte. Um cheiro forte, como teria dito o camponês Guerasim, alçado à condição de ajudante de mordomo, diante do urinol usado pelo patrão. Faulkner, é sabido, teve primeiro sucesso junto aos intelectuais franceses. Anos depois será reconhecido pelos compatriotas e ingleses. Tenho uma hipótese. A literatura francesa, na sua forma mais tradicional, que é a do "récit", sempre se interessou pelo monólogo longo, que no fundo nada mais é do que suporte para a prosa introspectiva (observações sobre a vida íntima pelo próprio sujeito).

Intimidade caipira
De Madame de la Fayette, no século 17, a André Gide, Albert Camus e Patrick Modiano, nos nossos dias, criou-se a tradição do monólogo ficcional francês. Na literatura francesa, cartesiana por definição, o narrador/ personagem da prosa introspectiva tem de ser inteligente, capaz de destrinchar sentimentos e emoções que constituem o sujeito no mundo, ao lado de pares cujo maior prazer é se exercitarem na perversidade e sutileza dos jogos sociais aristocratizantes.
Faulkner não tem medo de usar o monólogo quando o personagem é destituído de raciocínio lógico. Seus colegas de ofício, como Hemingway ou Steinbeck, preferem imitar a técnica do romance policial. Ambos se valem dos recursos da psicologia comportamental (behaviorista) que lhes é proposta por William James e seus seguidores. Nada de vida íntima nos romances dos expoentes da geração perdida europeizada, tudo é ação e gesto. Faulkner trata a brutalidade de outra forma. Ele é o detetive da intimidade caipira. Devassa-a para descobrir (e mostrar) seres tão complexos na sua fúria de viver quanto os citadinos.
Calculem a bomba que explode nos arraiais artísticos franceses quando figuras como Valery Larbaud, tradutor de James Joyce, são levadas a defrontar com um, com vários narradores/personagens de Faulkner. Estão diante de seres ignorantes, violentos e brutos, mas ao mesmo tempo extremamente sensíveis, capazes duma fala profética e poética modelar, como é o caso, respectivamente, de Darl e Vardaman. Uma baforada de ar do campo abre as janelas e varre os salões cosmopolitas.
Como não admirar Faulkner por ter dado ao caçula dos Bundren, Vardaman, um capítulo com uma única e curta frase que, na sua verdade poética, exprime a riqueza simbólica tanto do romance imerso na chuva quanto do caixão submerso nas águas furiosas do rio. Pensa Vardaman: "Minha mãe é um peixe". É o mesmo Vardaman que faz furos no caixão para que a mãe defunta possa respirar. Como não admirar Faulkner por ter emprestado a Cash, o mestre carapina da família, uma lógica construtiva que faria inveja a muitos arquitetos diplomados. Ele idealiza e fabrica o caixão da mãe, imaginando que ele teria de ser feito "de esguelha": "O magnetismo animal de um corpo morto faz com que a pressão funcione obliquamente, de forma que as junturas e as ligações de um caixão devem ser feitas de esguelha".

Faca de dois gumes
A ignorância no universo dos personagens faulknerianos é uma faca de dois gumes. Tanto aponta para a iluminação poética de raiz mítico-religiosa como pode ainda apontar para formas inaceitáveis de violência contra o indivíduo e a sociedade.
Ao tentar salvar o caixão da mãe das águas revoltosas do rio, Cash quebra uma vez mais a perna. Não recorre a médico ou farmacêutico. Deseja acompanhar o féretro da mãe até a cidade vizinha. Custe o que custar. O pai não titubeia. Compra um saco de cimento. Mistura o pó com água. Encana a perna do filho com a mistura, sem antes untá-la com gordura. Lá vai ele montado no caixão da mãe. No dia seguinte a perna de Cash parece a de um crioulo, como diz o texto. Na profundidade do equívoco assassino do pai não está a evidência da barbárie humana. Antes a vontade de curar pelos meios que estão a bordo da navegação pobre pela vida. Na vítima filial, no seu rosto e palavras resplandece a dor sem sofrimento, tema de que será arauto entre nós o cristão Mário de Andrade. À pergunta do médico: "Está doendo?", Cash responde: "Nada que não seja suportável".


Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de "Stella Manhattan" (ed. Rocco) e "Nas Malhas da Letra" (Companhia das Letras), entre outros.



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