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"Sob a Invocação de São Jerônimo", de Valery Larbaud, discute a teoria e a prática da tradução literária
Sob a Invocação
de São Jerônimo
310 págs., R$ 40,00
de Valery Larbaud. Trad. Joana
Angélica d'Ávila Melo. Mandarim (av. Raimundo Pereira de
Magalhães, 3.305, CEP 05145-200, SP, tel. 0/xx/11/ 3649-4600).
Hoje não lemos mais o autor, cujo estilo é manipulado pelo tradutor para
atender aos cânones da divulgação
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Santo forte
Ivo Barroso
especial para a Folha
Publicado pela editora francesa
Gallimard em 1946, chega ao Brasil, na competente tradução de
Joana Angélica d'Ávila Melo, este
livro que desde muito tem sido, se não a
bíblia dos tradutores, pelo menos um de
seus mais frequentados breviários ou altares de culto. Invocando a figura de são
Jerônimo, que institucionalizou em latim vulgar os antigos textos do Velho e
do Novo Testamentos, Valery Larbaud
-que por sua vez funcionou como uma
espécie de são Jerônimo para a tradução
francesa de qualidade- aproveita aqui
para teorizar sobre os deveres e liberdades daqueles que se dedicam à arte nem
sempre aleatória da tradução literária.
A primeira parte de "Sob a Invocação
de São Jerônimo" é consagrada a comentários sobre a vida e a obra do santo, mas
Larbaud, preocupado em valorizar a
produção original de Jerônimo, passa de
leve sobre a história que, para os tradutores, teria sido mais didática, ou seja, de
como foi feita por este a -digamos-
"copidescagem" dos textos latinos antigos, hebreus e aramaicos que vieram a
constituir a "Vulgata", recriados numa
linguagem que se tornaria a versão definitiva da Bíblia em latim.
"Bico" circunstancial
Larbaud
justifica o en passant de sua atitude com
a referência de que a enfatização do trabalho de tradutor de Jerônimo em detrimento de sua obra autônoma equivaleria
a tratar Baudelaire tão somente como
tradutor de Poe, e não como o criador
inigualável de "As Flores do Mal" -objurgatória improcedente, pois Jerônimo
sem a "Vulgata" seria apenas um escritor
menor, ao passo que a tradução para
Baudelaire não passou de um "bico" circunstancial em momentos de penúria.
A história se repete em relação ao próprio Larbaud: embora sua obra original
tenha certo interesse, mesmo vista do alto de nossa época, seu nome permanece
referencial graças ao seu trabalho de tradutor, e sua obra magna nesse campo, à
semelhança do mestre patronal Jerônimo, também foi mais um trabalho de
"copidescagem" do que mesmo de tradução, pois embora muitos pensem que
ele tenha traduzido o "Ulisses", Larbaud
na verdade foi o autor da apresentação
do livro e incansável revisor do texto de
Auguste Morel e Stuart Gilbert, de sua
equipe, assessorado pelo próprio Joyce,
que conhecia tão bem o francês quanto
Larbaud o idioma inglês.
A presença decisiva de James Joyce certamente concorreu para que o texto francês adquirisse a "souplesse" que as condições tradutórias da época não teriam
permitido, como ficou evidente no caso
das traduções de Italo Svevo, que chega a
soar "flaubertiano" em francês e é totalmente "stiff" na pseudomelhorada que
lhe emprestou o tradutor
inglês Beryl de Zoete (esclareça-se que Larbaud
traduziu apenas alguns
capítulos de "A Consciência de Zeno"; a edição integral, embora com sua
orientação, foi feita por
Paul-Henry Michel).
Não deixam de ser
exemplares, no entanto,
suas traduções de Samuel
Butler, principalmente "The Way of All
Flesh" (em francês, "Ainsi Va Toute
Chair") e alguns poemas de Walt Whitman, cujo estilo e vitalidade Larbaud
conseguiu preservar em sua língua.
Quanto à sua produção pessoal, são hoje
poucos os leitores de seu romance "Fermina Marquez" ou dos contos juvenis de
"Amants, Heureux Amants", mas resiste
ao tempo, a figura de seu personagem alter ego Barnabooth, homem riquíssimo,
cujas viagens são narradas com graça e
sabedoria, reflexo da dedicação do autor
pelo aprendizado de línguas e sua prática
in loco, numa tentativa de não apenas falá-las mas também vivê-las.
Não seria exagero, no entanto, dizer
que Barnabooth é ainda hoje lembrado
graças ao fato de o genial Georges Perec
ter em "Vida, Modo de Usar" fundido essa personificação do delírio ambulatório
com o Bartleby, de Melville, o expoente
máximo do maníaco-depressivo, daí resultando o excêntrico terminal Bartlebooth, a encarnação do desprezo absoluto pelo poder aquisitivo do dinheiro, que
para este se justifica apenas como a possibilidade de realizar um projeto de vida
inteiramente gratuito.
Bartlebooth dedica dez anos de vida a
dominar a arte da aquarela; 15 anos a viajar pelo
mundo pintando uma
aquarela em cada um dos
portos principais do planeta; aquarelas que são
enviadas a Paris para serem transformadas em
peças de quebra-cabeças,
que ele armaria em sua
volta das viagens.
Finalmente, depois de armados, os
quebra-cabeças, revertidos à condição
de aquarelas, seriam reenviados aos
portos de onde se originaram e ali
submetidos a um tratamento químico para apagar a tinta, voltando ao estado de simples folhas
brancas de papel Whatman de
grão fino, para serem finalmente incineradas. A própria
exacerbação da inutilidade do
processo.
Direitos e deveres
Contudo, além do excêntrico Barnabooth, com suas poesias elitistas, gastronômicas e ferroviárias, Valery Larbaud tem a seu
crédito outro grande livro que é
"Ce Vice Impuni, la Lecture", cujo
título exprime a mesma qualidade
requintada dos comentários eruditíssimos com que analisa seus livros
prediletos, lidos nos originais de várias
literaturas.
A segunda parte deste "Sob a Invocação de São Jerônimo" argúi sobre os direitos e deveres dos tradutores, seus instrumentos de trabalho, as várias "filosofias" do ato tradutório. Seria assim a parte "prática" do compêndio. Mas ainda
aqui os assuntos são tratados de maneira
um tanto empírica, encaminhando-se
para uma "filosofia da tradução", e não
para o seu exercício efetivo. Larbaud escreve numa época em que o tradutor não
era "reconhecido, sentando-se no último
lugar, vivendo por assim dizer apenas de
esmolas, aceitando preencher as mais ínfimas funções, os papéis mais apagados,
quando servir era a sua divisa, fiel ao aniquilamento de sua própria personalidade intelectual".
Em que essa figura do amanuense na
sombra se distingue do profissional de
hoje, ansioso das evidências da mídia?
Nos dias de agora a tradução, além de ser
mais que nunca necessária, tem ainda
um caráter "imediatista" e "nivelador".
Os grandes sucessos literários são às vezes lançados simultaneamente em várias
línguas e a pressa em traduzir conduz
com frequência à contrafação. Não lemos mais o autor, cujo estilo é manipulado pelo tradutor para atender aos cânones da divulgação.
Por azar, essa prática não está circunscrita à televisão e ao livro de bolso, mas
invade até mesmo as grandes editoras,
quando se generaliza a tendência de
"modernizar" os textos, de fazê-los "falar" a linguagem de nossa
época.
Recentemente num livro de Natalia
Ginzburg podia-se encontrar, na versão
brasileira, expressões como "paquerava", "bituca", "corneia", "pegando no
pé", "um cara", "encher o saco", "não esquenta", "estar gamada", "briga de foice" -que, por sua gritante impropriedade numa narrativa dos anos 40, surgiam como borrões na cristalina superfície das frases, depuradas no original de
todo artificialismo, porém nunca indulgentes com a vulgaridade.
Esse vezo de "agilizar" e "nivelar" a frase mediante a transferência das falas e situações para o tempo presente do tradutor, de colocá-las sempre ao alcance de
um leitor hipotético e ignorante, só pode
ser influência da massificante profissionalização da categoria. Totalmente inútil
indicar o livro de Larbaud a essa casta de
tradutores. Ele se destina, como em geral
se destinam os livros de teoria da tradução,
àqueles que
ainda encaram o
ato tradutório como um
exercício de amor, para aqueles que fazem da tradução uma "paixão" genuína,
uma auto-realização, até mesmo uma
co-autoria.
Esclarecer ou confundir
Nos 55
anos que decorreram da publicação desta suma de Larbaud, cheia das mais criteriosas considerações, que continuam válidas para a maioria dos que se dedicam
seriamente ao ofício de traduzir, muitos
foram os teorizadores que surgiram, nos
especializados mercados acadêmicos,
analisando a psicologia, a deontologia, a
hermenêutica etc. etc. da tradução. Desde o clássico Georges Mounin, com "Os
Problemas Teóricos da Tradução", aos
aspectos linguísticos do "After Babel", de
George Steiner, e os ensaios de Todorov,
Walter Benjamin e Hans-Georg Gadamer -uma vasta literatura teórica está à
disposição dos tradutores para esclarecê-los ou confundi-los ainda mais.
O mais recente trabalho do gênero
parece ser a "Poétique du Traduire"
(Verdier, 1999), de Henri Meschonnic, professor de literatura comparada da Universidade de Paris 8,
tradutor ele próprio, além de autor de numerosos livros sobre os
problemas da tradução. Meschonnic é dos que não se contentam apenas em teorizar e
dedica boa parte do livro à prática da tradução. E aí não sobra
para ninguém: até mesmo
aquelas consideradas exemplares, como a da Bíblia, de Chouraqui, são por ele "fritadas" como ineptas.
Como a crítica à tradução poética só é honesta quando o crítico é
capaz de apresentar algo melhor em
defesa de sua tese, Meschonnic analisa nove traduções francesas do soneto
27 de Shakespeare ("Weary with toil, I
haste me to my bed"), feitas em datas
distintas, compreendendo um período
de 115 anos (François-Victor Hugo, 1857;
Charles-Marie Garnier, 1906; Pierre Jean
Jouve, 1955; Jean Fuzier, 1959; Henri
Thomas, 1961; Armel Guerne, 1964; Jean
Rousselot, 1975; Jean-François Peyret,
1990; Jean Malaplate, 1992) e liquida inapelavelmente com todas essas "tentativas" (segundo ele) canhestras de reproduzir a riqueza semântica do original.
E, para mostrar o "bâton" com que castigou esses "tradutores ineptos", apresenta a sua versão, que, depois de tudo isso, teria que ser perfeita. Mas onde está
em inglês, por exemplo, "To work my
mind, when body's work's expired", onde rebrilha o jogo de palavras com o verbo "to work" e o substantivo "work", a
solução de Meschonnic-tradutor é um
anódino "Que le corps épuisé, l'esprit ravage". Basta isso para acabar com a contenda crítico versus praticante, pelo menos no presente caso.
Se nos estendemos acima na análise de
outra obra sobre os problemas da tradução, foi para deixar claro ao leitor que a
leitura deste Larbaud, apesar de mais de
meio século decorrido, ainda é um proveitoso e despretensioso passeio pelas
questões fundamentais do gênero, sem a
prosápia irritante dos teorizadores de
hoje.
Ivo Barroso é poeta e tradutor de, entre outros,
"Arthur Rimbaud - Poesia Completa" (Topbooks).
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