São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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JOGO DE CLASSES

Deshakalyan Chowdury - 1º.jul.2002/France Presse
Torcedores carregam bandeira brasileira pelas ruas de Calcutá (Índia) para comemorar a conquista do pentacampeonato de futebol pelo Brasil, em 2002


INSTRUMENTALIZADO PELO CAPITAL TRANSNACIONAL E PONTA-DE-LANÇA DA SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, FUTEBOL SE CONSOLIDA COMO METÁFORA PARA ENTENDER OS PROBLEMAS DA SOCIEDADE

DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

Hoje chega ao fim um dos campeonatos mais conturbados da história do futebol brasileiro, e, uma vez mais, o esporte mais popular do planeta parece refletir as mazelas e também os sucessos do país. Suspeitas de corrupção, escândalos na arbitragem, intervenção do Superior Tribunal de Justiça Desportiva -que anulou e remarcou 11 jogos-, realização de partidas sem público e confrontos fatais entre torcidas.
O Corinthians, equipe que mais investiu na temporada e que hoje pode conquistar seu quarto título nacional desde a criação do torneio, em 1971, tem questionada sua parceria com a MSI (Media Sport Investment), presidida pelo iraniano Kia Joorabchian. Segundo relatório do braço paulista do Ministério Público Federal, o principal interesse do MSI no Brasil é a lavagem de dinheiro.
Por outro lado, a agônica batalha de equipes tradicionais para escapar do rebaixamento à Série B -no campo, e não nos bastidores- exibe um lado mais positivo da sociedade brasileira nos últimos anos. Isso é "comparável à alternância de governos num regime democrático", defende em entrevista à Folha o professor de história da USP Flávio de Campos, 42, especialista na evolução dos jogos e das práticas esportivas desde a Idade Média.
Esse espelhamento multifacetado da sociedade brasileira que o futebol propicia não é casual, já que ele é, diz Campos, um "jogo da luta de classes". Para ele, a intervenção do STJD, dando novos contornos ao torneio, é um reflexo da "concentração de poderes e os resquícios de posturas arbitrárias e autoritárias" no país.
O historiador lança no ano que vem [título e editora não-definidos], em parceria com o também medievalista Hilário Franco Jr., um estudo sobre o futebol e seus elementos simbólicos, antropológicos e psicológicos. Ele afirma que a sociologia do esporte vem crescendo vertiginosamente nos últimos anos -e não só no Brasil. "É um espaço acadêmico crescente, sendo desenvolvido cada vez mais. Aqui na França a pesquisa sobre futebol é intensa, em diferentes áreas, tentando explicar o fenômeno cultural e esportivo."
Palmeirense apaixonado, Campos afirma que, se o Corinthians for campeão hoje, seus adversários projetarão suas frustrações nas polêmicas que teriam favorecido o clube, afirmando que o torneio apresentou "vícios de execução".
Com três pontos e saldo de cinco gols a mais que o segundo colocado, o Internacional (RS), o clube paulista só não será campeão se perder do Goiás, em Goiânia, e o Inter vencer o Coritiba, que joga em casa contra o rebaixamento à Série B. A diferença de gols nos dois jogos também precisa ser grande para descontar o saldo do time paulista.
Campos está agora em Paris, onde realiza pesquisas na prestigiada Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais sobre os esportes que antecederam o futebol durante a Idade Média. Foi de lá, por e-mail e telefone, que terminou de conceder a entrevista abaixo, às 4h da gélida madrugada parisiense. "Só o futebol e a história são capazes de provocar esse entusiasmo em mim..."
 

Folha - As polêmicas ocorridas ao longo deste Campeonato Brasileiro são apenas uma repetição da velha metáfora de que o futebol explica a sociedade brasileira?
Flávio de Campos -
Não acho que seja apenas uma velha metáfora. Sem dúvida o futebol é a principal manifestação cultural da sociedade brasileira. Não creio ser possível estabelecer uma análise sobre as características do Brasil contemporâneo descartando o futebol ou relegando-o a um papel secundário. Pelo contrário, acredito que seja uma das janelas privilegiadas para tal compreensão.
A intervenção do STJD revela a concentração de poderes e os resquícios de posturas arbitrárias e autoritárias disseminadas em diversos campos da sociedade, e não só no campo futebolístico. Isso é visível nas universidades, nos clubes, nas Redações de jornais e outros órgãos da imprensa, nos partidos políticos, nas empresas. Enfim, em inúmeras instituições públicas e privadas.
Além da manipulação de resultados, a decisão do árbitro Márcio Rezende de Freitas no lance do pênalti que teria sido cometido pelo goleiro Fábio Costa sobre o volante Tinga, do Internacional [no último dia 20, quando os dois times empataram em 1 a 1], é semelhante à atitude do presidente do STJD, Luiz Zveiter.
O árbitro, num lance, estava tão ofuscado pelo -em seu entender- excelente desempenho na partida que não mediu o alcance da sua decisão: não apenas deixou de apontar a penalidade máxima, prejudicando o Internacional, como expulsou o jogador (ao dar-lhe o segundo cartão amarelo).
A decisão foi tomada de maneira implacável, e o apito foi soado pelo sopro da arrogância e da soberba.
É uma tentação relacionar essas motivações à maneira como nossos dirigentes políticos (não só do governo Lula) se deixam levar pela vertigem do poder e pela vã glória de mandar. Há articulações inequívocas entre as diversas práticas de poder em nossa sociedade. Seja do baixo ou do alto clero.

Folha - Quais os reflexos sociais dessas polêmicas?
Campos -
De imediato, podemos identificar as manifestações dos torcedores nos estádios de futebol e a potencialização da violência das torcidas [em 15/10, um palmeirense morreu baleado nas costas antes do jogo Palmeiras x Corinthians, em SP, e um torcedor corintiano foi morto baleado na cabeça; dois dias depois, um torcedor da Ponte Preta seria morto a pauladas por são-paulinos, em Campinas (SP)].
A violência social, sob os seus mais diversos aspectos, é contida e ritualizada por meio do futebol. Isso vale também para outras modalidades lúdicas, mas, diante do papel que o futebol assumiu no Brasil e no mundo nos últimos cem anos, ele se tornou o principal catalisador esportivo dessas tensões sociais.
Falo de ritualização da violência porque o futebol expressa uma contenda entre duas equipes no campo e uma luta simbólica entre os torcedores nas arquibancadas, ruas e espaços públicos. Muitas vezes, tais lutas simbólicas (e mesmo as disputas esportivas) descambam para um conflito efetivo.
Há uma idéia de justiça, de aplicação de normas e de condições mínimas de igualdade na disputa que são aceitas por jogadores e torcedores. A aceitação da derrota e a própria banalização do sucesso ou do insucesso, fundamentais para a efetivação do "fair play" esportivo, estão em causa nesse momento devido às polêmicas em torno da manipulação de arbitragens e da repetição de jogos que modificaram diversos resultados originais.
Há uma quebra da "ordem" sobre a qual se fundamentam as disputas futebolísticas. E isso gera um clima de descrédito com respeito às instituições e autoridades que administram o futebol.
Significativamente, isso ocorre num momento em que o país também vive um clima de profundo descrédito com relação ao PT, ao governo Lula e à representação parlamentar. Não posso afirmar até que ponto tais elementos serão articulados e explorados política e eleitoralmente. Mas há, sem dúvida, uma coincidência significativa e perigosa.

Folha - Pode-se dizer, por outro lado, que há uma maior moralização pelo fato de times grandes terem sido rebaixados à Série B?
Campos -
Acho extremamente salutar em dois níveis. Para o futebol, porque permite questionar, no campo do jogo -quando não há viradas de mesa-, a atuação de dirigentes, comissões técnicas, patrocinadores, jogadores e até mesmo torcedores e setores da imprensa esportiva.
Não vejo moralização porque prefiro pensar em democratização e divisão de responsabilidades, sem paternalismos de nenhum tipo, que altere as estruturas de poder dos clubes com respeito a seus associados e torcedores, e das comissões técnicas e jogadores.
Confesso que, da mesma maneira que não me agrada ver meu time ganhar devido a uma ou mais falhas de arbitragem, também não me agrada a vitória atribuída e comandada por técnicos "linha-dura", "de pulso forte", "xerifes" ou qualquer outra designação, que estabeleçam o comando autoritário como qualidade, mesmo quando isso possa ter alguma eficácia.
Por outro lado, o rebaixamento de grandes clubes (ou de médios e pequenos) é comparável à alternância de governos num regime democrático. A eleição de um grupo que nos afete diretamente (desde que resguardadas as regras democráticas) e a derrota dos grupos com os quais simpatizamos não representam o fim do mundo. O amadurecimento e aperfeiçoamento da democracia tem nessa alternância o seu fundamento.
Não foi por acaso que o sociólogo alemão Norbert Elias [1897-1990] associou o jogo político aos jogos praticados entre parlamentares ingleses no século 18, sendo a associação entre ambos um dos elementos que proporcionaram estabilidade política ao mesmo tempo em que impulsionaram o esporte na Inglaterra.

Folha - Essa relação entre o esporte e a sociedade é histórica e internacional ou é mais evidente apenas em países como o Brasil?
Campos -
No Brasil, como já mencionei, ela é fundamental. Mas, hoje em dia, em graus variados, ela é identificável em diversos outros países. Como hipótese de pesquisa sobre a qual tenho trabalhado, o futebol se constituiu num conjunto de símbolos, gestos e ritos que se tornou compreensível em quase todas as partes do mundo. É quase a realização da universalização tão almejada pelo cristianismo. Laurence Kitchin chega a afirmar que o futebol é o único idioma comum da humanidade além da ciência.


O futebol quase corresponde à universalização tão almejada pelo cristianismo


Evidentemente, cada formação social -e em seu interior, os diversos grupos sociais- estabelece uma relação específica. Mas, de forma geral, há uma articulação inequívoca entre futebol e sociedade, que vai desde sua administração e até mesmo o estilo de jogo, dentro de um padrão tático que tende a se tornar cada vez mais uniforme.

Folha -De que forma a vitória do Corinthians, que mantém parceria com a MSI, pode refletir uma vitória do capitalismo globalizado?
Campos -
O futebol é um espetáculo rentável, que movimenta um enorme volume de capitais no mundo todo. É o principal esporte subordinado às regras de uma sociedade do espetáculo, num contexto de globalização cada vez mais intensa.
O futebol tem uma história que é anterior à própria sociedade capitalista. Os jogos de bola medievais, como o "hurling", o "calcio", a "shoule" e a "pelota", foram duramente reprimidos pelas autoridades municipais e monárquicas na Europa desde o século 14. Tratava-se de jogos violentos praticados também por grupos subalternos. Nos séculos 16 e 18, tenderam a tornar-se modalidades lúdicas confinadas a espaços e tempos definidos e quase restritos aos setores sociais dominantes.
Não é por acaso que o futebol moderno "nasce" no século 19 a nas escolas inglesas. Ao final do século 19, a despeito do amadorismo que tentava impor uma barreira social e vedar a prática do futebol à classe operária, o futebol é retomado pelos grupos subalternos.
O historiador Eric Hobsbawm, diante da sua disseminação na Inglaterra e na Europa, o definiu como a religião laica da classe operária. Recuperando uma expressão desgastada, pode-se dizer que a história do futebol é também a história da luta de classes nas praças esportivas.
Nos dias de hoje, caracterizados não só pela circunstancial vitória do capitalismo globalizado mas pela redução dos outrora ruidosos sindicalistas a síndicos medíocres dos condomínios do capital transnacional, é óbvio que isso também iria se refletir no futebol.


A história do futebol é também a história da luta de classes


E a eventual vitória do Corinthians não é só fruto do investimento de capitais. É também decorrente da evasão dos grandes jogadores brasileiros para a Europa, da gestão criminosa dos clubes nacionais e da ausência de projetos consistentes de inclusão social nas chamadas categorias de base.

Folha - Os atuais escândalos da arbitragem são uma prerrogativa do esporte ou da ética do país? O risco de manipulação é maior no Brasil?
Campos -
Claro que não. Nos campeonatos europeus há denúncias freqüentes de manipulação de resultados. Como a corrupção, que também não é apanágio dos países do Terceiro Mundo. A diferença repousa na forma como as sociedades toleram, condenam e punem tais práticas e na privatização ou não de espaços públicos.
Em um país em que as instituições democráticas são ainda muito recentes e no qual a ética da malandragem se expressa também pela ostentação da autoridade, há dificuldade em estruturar o futebol com o objetivo de coibir tais procedimentos e punir os responsáveis.
Mais uma vez, é possível uma comparação com a crise do Congresso Nacional. Caixa dois para campanhas eleitorais, compra de votos de parlamentares, aluguel de partidos políticos, licitações fraudulentas, nepotismo e outras tantas práticas são recorrentes no Brasil. E CPIs de fachada e ocasião ou coberturas meramente sensacionalistas não avançam para além dos interesses eleitorais.
O mesmo se pode afirmar com respeito à questão das arbitragens. Elas formam as ondas do mar cujo movimento profundo é provocado pelas estruturas das federações, dos clubes e da CBF.

Folha - A intervenção do STJD representou uma defesa dos interesses da sociedade ou beneficiou apenas alguns clubes?
Campos -
Os interesses da sociedade, como os dos clubes, são conflitantes. Não há possibilidade de estabelecer um único interesse. A questão é: qual seria o fórum mais apropriado e não-ideal para tomar as decisões? Acredito que uma única pessoa chamar para si o direito a decidir tal questão provoca um vício de origem. Diante da situação, acompanho aqueles que defenderam a análise de cada partida e a anulação dos jogos em que houve inequivocamente o favorecimento de um clube.
Mas, volto a insistir, o encaminhamento é, nesse caso, tão importante quanto a decisão a ser tomada.

Folha - De que forma se pode comparar esse tipo de intervenção com a instrumentalização do esporte mais popular do país feita nos anos JK, na era Vargas ou no regime militar?
Campos -
A instrumentalização do futebol foi usada por Vargas, Juscelino, Jango, Médici, Fernando Henrique Cardoso. Em diversos países, os dirigentes políticos pegam carona nos sucessos esportivos. Não há como impedir. Há como identificar e criticar. Faz parte do jogo político.

Folha - É possível analisar a história do país a partir dos grandes times de massa, como o Corinthians, Flamengo ou Palmeiras?
Campos -
Não só a partir dos times de massa, mas a partir de outros times e de outras práticas de futebol reveladores de formas de sociabilização, contestação e resistência. Por exemplo, times que, na sua origem, estiveram vinculados a grupos de imigrantes italianos em São Paulo -anarquistas e socialistas- e que foram importantes nas décadas de 1910 e 1920, cujas torcidas acabaram disputadas pelo Corinthians e pelo Palestra Itália [atual Palmeiras].
Grupos subalternos, que não se identificavam com nenhum desses times e que acabaram atraídos pelo São Paulo na década de 1940. Brasileiros de diversas regiões que passaram a se identificar com o Flamengo motivados pelas transmissões de Ari Barroso. A aceitação de jogadores negros no Vasco da Gama e a resistência dos dirigentes e torcedores do Fluminense à sua aceitação.
Enfim, a história do Brasil está articulada à história do futebol brasileiro. E essa história ainda está por ser escrita.

Folha - O que aumenta o interesse das pessoas, mesmo as que não acompanham futebol, pelo desfecho deste campeonato?
Campos -
A final sempre é uma festa. Os jogos esportivos têm momentos que se destacam do ritmo cotidiano e se assemelham aos festejos. E, nesse clima de decisão, a festa extrapola o estádio e toma as ruas, no momento em que se quebram os elementos simbólicos na comemoração. O templo que é o campo de futebol, onde o torcedor nunca pode entrar, é o palco dessa comemoração, após a final do campeonato, quando a torcida invade o gramado para festejar, chegando mais próxima do lugar que é sacralizado. Além disso, a festa transborda pela cidade, como normalmente acontecia na avenida Paulista [em SP].
Nesse momento, as pessoas estão contagiadas pela eminência da festa, que está para acontecer a qualquer momento. Além dos corintianos, que aguardam o tetracampeonato, há os torcedores do Internacional, ainda esperançosos, e os torcedores dos outros times, projetando suas frustrações e querendo que o maior rival não saia vitorioso.
Evidentemente, este campeonato tem uma questão própria. Um argumento vai tentar quebrar o discurso da comemoração do melhor time do campeonato: os adversários vão falar que o campeonato foi "melado", tem vícios em sua execução.

Folha - O Brasil é favorito na Copa do Mundo de 2006, na Alemanha? A vitória do Brasil e a consolidação de sua hegemonia podem ser prejudiciais ao futebol internacional?
Campos -
Não concordo. O Brasil tem os melhores jogadores e está realmente indo como favorito, mas meu sentimento pessoal, quase num prognóstico de um torcedor, é de que o Brasil não ganhará a Copa.
Tudo depende muito de uma série de fatores, detalhes. A Copa é um torneio que não privilegia o planejamento e a campanha no médio prazo; muitas vezes é o acaso que resolve, como a derrota do Brasil em 1982 -ano exemplar, já que foi uma das melhores seleções que o país já teve, e ela aconteceu pouco antes da derrota das Diretas-Já.
E, mesmo que o Brasil seja campeão, não significa que haverá consolidação de uma hegemonia que faça do Brasil um vitorioso antecipado. O Brasil sempre vai ser uma grande potência no futebol, mas o nível de outras seleções também é muito alto, especialmente na questão técnica de estratégia, planejamento, área em que o Brasil não tem domínio total. E a derrota, caso ocorra, também não trará uma grande tristeza ou depressão nacional. Não é o fim do mundo.


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