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Kenzaburo Oe, o mais importante autor japonês vivo e ganhador do Prêmio Nobel em 1994, fala sobre
o novo romance, "Adeus, Meu Livro", explica por que voltou a escrever e diz que seu país é "ambíguo"
A última comunhão
DA REDAÇÃO
Prêmio Nobel de Literatura
em 1994, o escritor japonês
mais prestigiado fora de seu
país fala de seu processo de
criação, de "Adeus, Meu Livro", que
acaba de lançar, e discute o lugar do
Japão no mundo de hoje nesta entrevista concedida ao jornal "Le Monde" em sua casa em Seijo, um subúrbio de Tóquio.
Pergunta - Há cerca de dez anos o sr.
anunciou que renunciava ao romance. Por que recuou nessa decisão, escrevendo sucessivamente "Salto Perigoso" (1999) e uma trilogia cujo último volume, "Adeus, Meu Livro", acaba de ser publicado no Japão?
Kenzaburo Oe - Ao me aproximar
dos 60 anos, percebi que, desde a
época em que era estudante, eu havia escrito romances e que minha vida inteira havia se centralizado na
escrita. Pensei que, parando, poderia refletir sobre o que foi a essência
de minha existência e assim preparar o inverno de minha vida.
A morte de meu amigo, o compositor Toru Takemitsu, em 1996, me
instigou a me perguntar -se um dia
nos encontrássemos no além e ele
me indagasse sobre o que fiz na minha vida- o que eu lhe responderia.
E comecei a ler, da manhã à noite.
Depois, o desaparecimento de outros amigos queridos me trouxe de
volta ao romance.
Envelhecer é
aceitar a espera
da morte como
o ponto
extremo de um processo contínuo
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A escrita dessa trilogia ocupou os
cinco últimos anos dos meus 60. "A
Criança Trocada", o primeiro da trilogia, foi escrito depois do suicídio
de meu amigo de infância e cunhado, o cineasta Juzo Itami, em 1997.
No seguinte, "A Criança de Rosto
Triste", volto, por meio de um escritor que lê Cervantes, ao tema de "A
Criança Trocada". O último é inspirado no poeta e dramaturgo inglês
T.S. Eliot [1888-1965], mais particularmente nos "Quatro Quartetos",
poemas sobre a experiência no tempo e além do tempo. Eu sempre amei
essa obra, mas creio que pela primeira vez a compreendi.
Pergunta - O que fez durante os
anos em que não escreveu romances?
Oe - Li Espinosa. Fui fortemente influenciado pelo Sartre de "O Imaginário". E a leitura, um pouco por
acaso, do livro de Gilles Deleuze "Espinosa - Filosofia Prática" me fez
mergulhar novamente na "Ética".
Espinosa atribui o pensamento falso à força da imaginação. Uma idéia
que me obrigou a refletir sobre mim
mesmo, pois toda a minha vida foi
habitada pela imaginação. Foi quando eu estava mergulhado nessa atitude espinosista do homem -visto
como um ser menos de conhecimentos que de desejos, envolvido na
perpetuação de sua existência- que
Juzo Itami se suicidou.
O desaparecimento do amigo de
infância subitamente me fez sentir a
presença da morte, a possibilidade
de eu também pôr fim a meus dias.
Destruir a si mesmo é a antítese da
"perseverança em seu ser" de Espinosa. A alegria livre que encontrei
nesse filósofo me permitiu, entretanto, superar essa crise.
Mas, ao mesmo tempo, tomei
consciência de que, ao ler a "Ética"
da manhã à noite, acabava indo ao
encontro dessa "perseverança no
ser" e que me destruía aos poucos.
Então voltei a escrever...
Pergunta - Como o senhor trabalha?
Como o romance amadurece?
Oe - Lendo. Não levo muito tempo
para imaginar a intriga, os personagens. Mas o estilo é fruto de um lento
amadurecimento ao longo de passeios por leituras. É por meio desse
trabalho que começa a se forjar o estilo do romance em que eu penso.
Leio sobretudo poetas estrangeiros.
Às vezes, para me embeber, chego a
copiar os textos. Para "Adeus, Meu
Livro" foi Eliot. Esse autor acompanhou minha vida desde a universidade, mas foi preciso esperar 60
anos para que eu pudesse encontrar
nele uma emulação.
Pergunta - Outro autor teve um papel determinante na sua trajetória, o
francês Pierre Gascar.
Oe - Sim. Eu estava na universidade
quando o li na tradução de meu professor Kazuo Watanabe. Foi somente mais tarde que compreendi como
eu havia sido influenciado por sua
coletânea de contos "As Feras" e pela expressão "a imensa comunhão",
que ele utiliza.
As palavras que nos marcaram
quando éramos jovens ficam gravadas para sempre na memória. Hoje
eu avalio o cruzamento que existe
entre mim e o pensamento de Eliot e
o de Pierre Gascar. A comunhão, isto é, o ato de compartilhar, é sem dúvida o ato mais nobre do homem. Eu
tento refletir sobre isso na última
parte de "Adeus, Meu Livro".
Pergunta - O sr. falou em envelhecimento. O que significa envelhecer?
Oe - Sem dúvida, no entardecer da
vida, a "perseverança em seu ser" de
que fala Espinosa enfraquece. Pelo
menos é o que sinto. Se tomarmos o
exemplo de Yukio Mishima, que é
um pouco minha antítese pelas
idéias que ele defendia (o dogma do
imperador como símbolo da perenidade cultural) e que pôs fim a sua vida (ele se suicidou em 1970, com 45
anos), penso que houve um duplo
motivo para seu ato.
Primeiro, os limites de um estilo
que nunca evoluiu acompanhando
as etapas de sua vida. Ainda que tivesse vivido mais, ele nunca teria sido um Junichiro Tanizaki, que soube fazer sua escrita evoluir ao longo
do tempo. Além disso, Mishima era
assombrado pelo fim de Thomas
Mann, ferido, mortificado. Um destino que lhe parecia insuportável.
Para mim, envelhecer é aceitar a
espera da morte como o ponto extremo de um processo contínuo. Essa aceitação não significa passividade. Como Eliot em um de seus poemas, penso que não se deve esperar
sabedoria do homem velho, mas, ao
contrário, a "loucura" em relação ao
senso comum, uma espécie de irreverência diante da ordem estabelecida. A definição de obra última ("later work") de Edward Said me atrai
muito. Um intelectual ou artista conhecido deve se revoltar até o fim
contra a sociedade. Ibsen ou Beethoven se inclinam para a catástrofe.
Quanto a mim, tomaria sobretudo
o exemplo dos últimos textos de
Louis-Ferdinand Céline, notadamente a admirável caricatura que é
"De Castelo em Castelo" (Companhia das Letras).
Pergunta - Em "Adeus, Meu Livro", o
herói é um velho escritor hospitalizado, chamado Kogito (do "cogito" cartesiano), que é visitado por um arquiteto que sonha com uma máquina infernal para se opor à violência do Estado. Kogito tem um prenome, Choko, que significa "rio longo", enquanto seu sobrenome, Oe, significa
"grande rio". Quem é Kogito?
Oe - Um escritor que sobreviveu a
uma catástrofe e não consegue mais
escrever. Ele está à procura da atitude que adotará diante da morte. Como eu, é um homem que nunca se
sentiu sereno, tranqüilo no coração.
Ele é um idoso, mas no fundo de si
mesmo continua um adolescente, isto é, um ser "imaturo", que estará
"em formação" até o fim.
Pergunta - O senhor já descreveu o
intelectual como o canário que é colocado em uma mina de carvão para detectar um risco de vazamento de gás e
cujo grito anuncia a morte. Qual pode
ser seu lugar no Japão contemporâneo, onde se confirma um consenso
apático caracterizado pela falta de
questionamento?
Oe - Para mim, um intelectual é
aquele que pode e deve falar "como
amador", fora do seu campo de especialidade, para lembrar que existem outras maneiras de ver, de conceber o real, além das veiculadas pelo discurso dominante. Continuo escrevendo opiniões críticas todo mês
em jornais e fazendo conferências.
Continuo sendo "perturbador". Alguns me denigrem ou me consideram com condescendência. Mas é
preciso constatar que no Japão existem cada vez menos intelectuais
contestadores.
A consciência democrática desse
país não fez surgir nenhuma personalidade capaz de exprimir com vigor o sentimento de cólera e de traição de nossos ideais que constitui a
guerra no Iraque.
Eu sou sem dúvida esse canário na
mina, já prestes a morrer, mas pretendo continuar "cantando" até o último sopro, para me esforçar, simplesmente, a viver com dignidade.
Pergunta - O senhor intitulou seu
discurso de recebimento do Prêmio
Nobel, em 1994, de "Eu, de um Japão
Ambíguo". O Japão ainda é ambíguo,
apesar de ser mais do que nunca pró-americano?
Oe - Pela primeira e única vez, o ex-primeiro-ministro Yasuhiro Nakasone [entre 1982 e 87], considerado
um "falcão", citou meu discurso em
Estocolmo: se o Japão é ambíguo, é
preciso reformá-lo, a começar por
sua Constituição pacífica. É evidentemente o contrário do que eu dizia,
pois acredito que é preciso preservar
essa Constituição a qualquer preço.
Somos muitos a animar uma Associação de Defesa do Artigo 9º da Lei
Fundamental (de renúncia à guerra). Mas hoje o Japão tem menos espírito crítico. O Japão não é mais
uma potência independente e, enquanto sua Constituição lhe permitiria tomar iniciativas independentes do uso da força, ele caminha na
direção contrária.
Tenho muito poucas esperanças
de que as coisas mudem. Sou pessimista sobre o futuro de um mundo
dominado hoje pelas "guerras de
vingança" dos EUA, apresentadas
como "guerras justas". Mas, quando
o homem está encurralado, perseguido, às vezes aparece uma saída...
Escrever um romance é apostar nessa esperança, dar crédito à vida.
Pergunta - O sr. acaba de criar um
prêmio literário cujo júri é formado
apenas por si mesmo [o Oe Prize, criado pela editora Kodansha para premiar novos talentos, cujo primeiro
premiado será divulgado em 2007]...
Oe - A literatura japonesa carece de
crítica sólida. Quero dar a conhecer
o que considero um "dizer autêntico" de autores cujas obras não são
obrigatoriamente sucessos de venda. Eu gostaria assim de ajudar jovens escritores a tomarem consciência de que a literatura é um verdadeiro trabalho... Uma idéia absurda de
velho, não é?
Esta entrevista foi publicada no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
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