São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ CULTURA

A atriz e dramaturga, que estréia em maio peça baseada no filósofo Matias Aires, explica seu "teatro essencial" e rebate as críticas feitas a sua última montagem

Desdobramentos cruéis do ego

Que são os homens do que aparências de teatro. A vaidade e a fortuna governam a farsa dessa vida." A sentença é de Matias Aires, filósofo brasileiro cujas "Reflexões sobre a Vaidade dos Homens" (ed. Martins Fontes), de 1752, são base da nova peça de Denise Stoklos, 52, prevista para maio. Expoente do "teatro essencial" _que advoga o "mínimo possível de efeitos" e a "força da presença viva do ator"_, ela fala também, a seguir, da esperança de que o país possa enfim estar deixando de ser mera "aparência de teatro".

Como surgiu a idéia do espetáculo?
Deparei com este texto em 1999, quando seguia a bibliografia sugerida pelo embaixador Lauro Moreira, então presidente da comissão do Quinto Centenário [do Descobrimento], para a feitura do solo "Vozes Dissonantes". Não resolvi o texto a ponto de incluí-lo no espetáculo. Mas ficou o desejo, pois ele é fantástico, tem inúmeras leituras e significados, mexe com a questão do ego a princípio, mas se desenvolve em vários desdobramentos muito imanentes à nossa sociedade. Tenho desde então estudado o livro de Aires. Nesse ínterim, motivada pelo projeto sobre Artaud no Festival de São José do Rio Preto (SP) de 2002, retornei à idéia, mas agora penso em colocar o texto em cena sob uma perspectiva da "crueldade", isto é, a perspectiva "crua" com que Artaud lida com o real. Como em todos os trabalhos em processo, não sei ainda no que vai dar. O percurso que se traça até aqui é esse.

No seu início, você trabalhou com Antunes Filho. Qual o legado dele em seus trabalhos? Como comparar a "Medéia" de Antunes à sua "Des-Medéia" (1994)?
Não vi ainda esta "Medéia", então nada posso divagar sobre isso. O legado de Antunes Filho e de tantos criadores da maior importância com quem tive o privilégio de trabalhar, como Fauzi Arap, Luis Antonio Martinez Correa, Hugo Rodas e, principalmente, Antonio Abujamra, é inquestionável. São figuras que pressionaram seus meios, demoliram estruturas, revolucionaram a cena.

Uma de suas artistas de referência, Louise Bourgeois, diz que "é um privilégio fantástico ter acesso ao inconsciente". Para você o que é o inconsciente?
Viajando com intuição, arriscaria afirmar que inconsciente é o que produz as pulsões para as obras de arte, e, consciente, o que as finaliza. Por inconsciente entendo sempre o que está obscuramente se movimentando e movimentando-nos e que vai sendo fisgado pelas antenas de recepção do artista, que, aliás, tem como função essa pescaria. Nesse obscuro diria que enxergamos e armazenamos como conhecimento o que é ancestral, arquétipo, carga dos genomas, memória, etc. Por consciente, o molde que se dá a essa matéria, o ritmo, a expansão para exterior em texto, em coreografia. A visitação, que é o momento da apresentação organizada em espetáculo ao público, é o momento em que o embate do público com seus temas primordiais se ritualiza.

Você é formada em sociologia e em jornalismo. A opção pelo teatro derivou, em alguma medida, da percepção de uma insuficiência naquelas áreas?
A opção pelo teatro foi anterior. Os cursos foram complementares de atividades que me interessam, grosso modo, o estudo da sociedade e as ferramentas de comunicação. Continuo com estes pilares. Por isso me interesso e questiono tanto a mídia. Indago-me por que, num país como o nosso, onde há tudo para ser feito, e aliás no qual só teremos identidade própria justamente se fizermos de nosso jeito, a imprensa nacional ainda se pauta por reproduzir modelos já viciados, estrangeiros.
Exemplificando: com originalidade, poderíamos ter sempre ao lado da publicação do crítico de teatro, uma autocrítica do criador da peça. Assim o público poderia de fato analisar, comparar, quem está com o enfoque que mais aproxime o seu olhar de uma absorção de sumo, do insumo do trabalho. Assim se pode pensar num desenvolvimento educativo do olhar do público, dando-lhe mais dados, e de fontes envolvidas em diferentes etapas: o do autor ao fazer e do crítico profissional ao dialogar ou não com a visão do próprio espectador. Nas agendas das peças em cartaz, a descrição dos espetáculos deveria ser realizada por filósofos, estetas, artistas ou, quando acontecer, quando o espetáculo for polêmico, como resultado do encontro de idéias sobre a obra entre crítico, autor e público. Assim, nunca mais se induziria o público ao raso, ao aparente de uma obra. Mas sempre apontado o fundo, as camadas, a metáfora.
O espectador apreciaria ou não. Mas não se depararia com a deterioração das descrições em tudo neutralizantes dos efeitos mobilizadores. Anunciam-se ali peças como se fossem um pedaço de carne, grudada no osso, pesando não sei quanto, para tal preparo de prato. A dimensão seria a experiência poética, não o chamado entretenimento, há muito mesclado com o conceito de rebaixamento do espírito.

Você considera que a vitória de Lula significa o restabelecimento de uma utopia política?
Há uma atmosfera única. Nunca presenciei antes. É que entendo que o espaço foi aberto e tem que ser ocupado. Nós, os que sempre reclamamos, independente de filiação partidária, temos a tarefa de ocupar os lugares. E trazer à tona os projetos imaginados.
Neste momento histórico há que se recobrar ou gerir, em todas as áreas protocolares, palavras em desuso ou de uso demagógico. Há que conjugar as ações que essas palavras determinam. Ocupar os espaços dos conceitos com a prática. Um vocabulário prático, penso, vai se tornar nosso idioma. Onde palavras poéticas passaram ao poder. Amor é uma delas. Comunicação é outra palavra na ordem do dia.
Mas no sentido que [o geógrafo] Milton Santos [1926-2001] apontava: "Comunicação é troca de emoção", já que "informação" é palavra duvidosa, tem seus donos, seus jogos de interesse, seus filtros e seus prévios comprometimentos.

O que separa hoje o teatro comercial do artístico? Sua iniciativa de dirigir Carolina Ferraz em "Selvagem como o Vento" foi criticada como uma "concessão ao sistema".
Parece-me adequado classificar um teatro de "comercial" quando ele vende a idéia de continuísmo de um sistema depredador. Um teatro que navegasse no reforço de parâmetros sociais enquadradores.
Que tivesse como significado reforçar as superestruturas do esquema vigente. Repetisse padrões que engessam a metáfora, promovesse o gosto duvidoso como popular, raso, que não quisesse libertação pela reflexão, pela estética, mas, pelo contrário, sugerisse acomodação. Nunca me interessou isso.
Qualquer tentativa de trabalhar com atores da televisão me instigou pela possibilidade de retirá-los daquele padrão e trazê-los ao palco. Que usufruíssem de sua visibilidade para realizar teatro e entregá-lo subversivamente àquele público angariado nas suas carreiras mormente por meio da imagem. Se falhei nessa ou em outra empreitada, como diz a canção, os erros foram todos meus.



Texto Anterior: ET + Cetera
Próximo Texto: Capa 05.01
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.