São Paulo, domingo, 05 de fevereiro de 2006

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O VELHO

QUANTO VALE O SHOW?

PRINCIPAL NOME DA POLÊMICA "SENSATION" (1997) E HOJE UM DOS NOMES MAIS BEM PAGOS DO MERCADO, DAMIEN HIRST DIZ QUE AS PESSOAS PRECISAM DOS ARTISTAS

LUCRECIA ZAPPI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Damien Hirst pode estar morto. Mas enterrado, não. Desde o Tártaro, o artista inglês perpetua a fórmula de animais crucificados e conservados em formol, com títulos barrocos e apelo religioso crescente.
Número um no ranking de 2005 dos "Cem mais poderosos da arte" da revista "ArtReview", Hirst é um gigante em ascensão desde que fez a curadoria da lendária mostra londrina "Freeze", em 1988.
O "young british artist" de 40 anos é hoje a marca mais cara no universo das artes. Seu ritmo industrial e sua precisão clínica abrigam 50 assistentes em quatro ateliês e um quinto em construção, mais o sonho de ter uma galeria de arte na Inglaterra.
Sua obra exala ironia e frieza antisséptica e vende temas universais como a fascinação pela carne e morte em escalas monumentais. Com esses elementos, Hirst faz uma crítica da corrupção do espírito, como o materialismo e a indiferença ao mundo natural.
Sua peça mais famosa, "A Impossibilidade Física da Morte na Mente de uma Pessoa Viva" (1991), que consiste em um tubarão em um aquário de formol, projeta isso. Pescado por um colecionador nova-iorquino no ano passado por US$ 12 milhões (R$ 26,7 milhões), o tubarão só inflou como objeto de desejo. Explorar com cinismo a alta rotatividade do mercado é parte do discurso do artista.
De sua casa em Devon, na Inglaterra, Hirst falou à Folha, por telefone, sobre morte, arte, dinheiro, celebridades e outros fetiches.
 

Folha - Por que você escolheu o nome "Love Lies Bleeding" para sua mostra individual, que está sendo inaugurada na galeria Hilario Galguera, na Cidade do México?
Damien Hirst -
É o nome da planta que eu tenho à beira da piscina na minha casa de férias no México. Lá ela é conhecida como "El Cordón de Cristo".

Folha - A exposição tem um aspecto religioso?
Hirst-
É mais religiosa que científica. É sobre a contradição entre o amor carnal e o amor divino. Também sobre o fracasso. O fracasso de Deus por não nos livrar do mal. Do amor por não conseguir conquistar tudo. Da ciência por não conseguir explicar a religião.

Folha - E quais peças estão relacionadas à morte nessa exposição?
Hirst -
Todas elas, mas a vida está inextricavelmente ligada à morte e às suas semânticas. Eu argumentaria que o tema da morte é uma celebração da vida.
Fiz uma peça chamada "Adão e Eva sob a Mesa"", com dois esqueletos vestidos de noivos sob uma mesa coberta com drinques, drogas, cinzeiros e toda a parafernália que sobrou de uma noite muito, muito pesada. E sob a mesa é para onde todos vamos, acho.

Folha - De que forma você relaciona sua obra à morte? Pelo excesso do material e sua banalização?
Hirst -
A gente diz "vida é morte" e "morte é vida". No final das contas, a vida é para viver, é muito excitante, mas eu acho que é difícil de entender o que é a morte. É algo com o que se tem que lidar a cada dia.

Folha - Falar da morte está dentro de uma tradição inglesa?
Hirst -
Os ingleses não merecem tanto! Minha obra não se aproxima de uma visão Monty Phyton da morte, vai mais para o caminho de Goya. Bacon é também muito bom, com sua visão meio obscura da morte.
Eu li um livro ótimo do filósofo Thomas Hobbes [1588-1679] que dizia mais ou menos assim: "Como moscas varridas em uma parede, nós caímos... E a vida do homem é solitária, pobre, asquerosa, bruta e curta". Eu acho que quanto mais longe se vai, mais se volta ao mesmo ponto. Entre o bem e o mal, não vai ser fácil para o bem ganhar a batalha, então você começa a ter visões mais obscuras sobre tudo.

Folha - Mas sua obra tem um pouco de Hobbes e de Monty Python ao mesmo tempo.
Hirst -
Pois é, não dá para ter um sem o outro.

Folha - E Bacon?
Hirst -
E ovos e salsichas?

Folha - Você se sente diretamente influenciado por Duchamp, ao subverter a visão idealizada da obra, dando a ela uma aura de esterilidade clínica, com títulos irônicos?
Hirst -
É, eu acho que sim. Minha obra sempre termina em contradição. Sem contradições, o mundo acaba. Eu não faço ciência, mas o aspecto científico da minha obra busca o humor. O tipo de humor que leva a depressão embora.

Folha - Essas contradições em sua obra são um reflexo da vida contemporânea?
Hirst -
Eu acho que todos os artistas têm uma mão no futuro e assim acabam definindo o próprio tempo. Os velhos saem e os novos entram, e aí você morre.

Folha - Você acha que quebra tabus com esse tipo de arte?
Hirst -
Acho que a gente quebra alguns tabus resmungando alguns truísmos, contando algumas mentiras, brigando pelo que acredita. E, se você tiver sorte, algumas pessoas irão se interessar pelo que você tem a dizer. No final das contas, eu acho que artistas fazem arte para pessoas que ainda vão nascer, então é difícil ter as pessoas sempre ao seu lado. A melhor coisa é fazer boa arte.

Folha - Você se considera uma celebridade das artes, estigmatizado pela famosa exposição "Sensation"?
Hirst -
Eu não dou a mínima para isso, estou interessado em arte. Celebridade não é nada, é uma parte pequena da vida, é basicamente um medo intenso da morte. E a idéia da "Sensation" trazendo um estigma é uma maluquice. Quando alguém me diz que minha obra é sensacional, eu tomo como um elogio, como se me dissessem que estou com uma aparência sensacional.

Folha - Você acha que é visto mais como um símbolo social do que como um artista interessante?
Hirst -
Há alguns anos talvez, mas não mais. As pessoas precisam de artistas, mas acham difícil entender a arte ou o raciocínio atrás de uma criação. Elas entendem melhor o dinheiro porque ele é o motivo para fazer coisas, e qualquer outro tipo de motivo se torna suspeito no mundo de hoje, infelizmente.
Uma vez eu disse a uma pessoa que me pedia um autógrafo na rua: "Não diga a ninguém, mas eu não sou realmente um artista".
Eu só estava brincando e pensei que a pessoa fosse rir, mas ela ficou chocada e disse: "Não, eu preciso que você seja um artista". Então, antes de qualquer coisa, eu tenho que ser um artista ou eu não sou nada. Enquanto eu avanço no meu caminho, esse tipo de reação vai se aderindo a mim. Mas estou ficando bom em ignorar esse tipo de coisa.

Folha - Suas obras são muito sedutoras. O que significa o belo para você? E como você as constrói?
Hirst -
A obra tem que ser desejável. Você tem que fazer com que as pessoas ouçam você antes de mudar as idéias delas. Se as pessoas olham e vão embora, então esquece.


Se as pessoas olham e vão embora, então esquece; como artista você tem que penetrar na cabeça delas


Como artista você tem que penetrar na cabeça delas. Da mesma forma como flores atraem abelhas. Você tenta de tudo.

Folha - As pessoas esperam que você siga sendo um artista da "Sensation"?
Hirst -
Não sei, tento pensar a respeito, mas acho que só tenho que agradar a mim mesmo.
Se você faz algo que as pessoas não gostam, há muitas críticas, sobretudo em Nova York.

Folha - Por quê?
Hirst -
Eles gostam de pinturas factuais. Na minha última mostra, na galeria Gagosian, em Nova York, elas eram mais ligadas à morte. Mas prefiro ter uma crítica negativa e vender toda a exposição do que ter uma crítica positiva e não vender nada -se eu tiver essa possibilidade de escolha.

Folha - E você vendeu tudo?
Hirst -
Quase tudo.

Folha - A morte vende?
Hirst -
Sempre vendeu, não? Em todos os níveis.

Folha - E isso não te incomoda, quando as pessoas, em vez de olharem para sua obra, dizem de cara "Nossa, quanto custa esse Damien"?
Hirst -
É algo que não dá para controlar. Eu acredito que a arte é mais lucrativa que dinheiro. E às vezes eu acho que as pessoas se aproximam dela porque o dinheiro é uma coisa muito poderosa, muito difícil de entender. Minhas obras ficaram muito caras agora. Estão no MoMA, nas grandes galerias.

Folha - Você considera importante ter suas peças em um museu?
Hirst -
Todos esses colecionadores ricos, quando morrem, não vão deixam arte para seus filhos e, se deixam, elas, em um certo momento, acabam do mesmo modo no museu. É ótimo estar nos museus, mas acho mais saudável não estar lá enquanto você está vivo. Para mim, tem mais a ver com a própria vida fazer exposições em galerias. No museu a obra está fixa, não vai a lugar nenhum.

Folha - É onde, de certa forma, a arte se torna segura?
Hirst -
De certa forma, e os artistas mortos sempre ficam melhor lá que nas salas das pessoas.

Folha - Quem é seu artista favorito?
Hirst -
Um dos meus favoritos é [o americano] Bruce Nauman [1941]. Acho que ele passa mensagens muito fortes com o mínimo. Funciona bem em todos os níveis da compreensão, e a gente se envolve na hora e diretamente com sua obra.

Folha - A curadora da próxima Bienal de SP, Lisette Lagnado, anunciou que quer fazer uma bienal política. O que você acha de arte política?
Hirst -
A arte se torna política quando a situação geral fica ruim. É a chance de se colocar politicamente por meio da arte. Não sei, talvez eu devesse fazer uma peça sobre o Tony Blair. Para meu gosto, ele tem contado muitas mentiras.


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