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CLARK INTERATIVA
UM DOS PRINCIPAIS CRÍTICOS DA ATUALIDADE, YVE-ALAIN BOIS
FALA DE SUA RELAÇÃO COM A BRASILEIRA LYGIA CLARK,
QUE CONHECEU EM PARIS EM 68, DISCUTE SEUS TRABALHOS
"PARTICIPATIVOS" E LEMBRA SEU MAL-ESTAR COM O MERCADO DE ARTE
Folha Imagem
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Lygia Clark em foto de 1963 |
JANE DE ALMEIDA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
crítico de arte Yve-Alain
Bois agora faz parte do
corpo de pesquisadores do
"Institute", instituição onde trabalharam estrelas como Albert
Einstein, Kurt Gödel, Von Neumann e, no campo das artes, Erwin
Panofsky. Depois de 15 anos no departamento de história da arte e arquitetura da Universidade Harvard,
Bois terá o tempo que quiser para
pesquisar o que bem entender no
"Institute".
Conhecido pela exposição "L'Inform - Mode d'Emploi", realizada
em Paris em 1996 em co-autoria com
Rosalind Krauss, Yve-Alain Bois é
autor de livros como "Matisse e Picasso" (Melhoramentos), "Piet
Mondrian", entre outros. É também
co-editor da revista "October".
Muitas das suas posições como
crítico e historiador da arte causaram polêmica, como a defesa de um
certo ponto de vista formalista que o
fez ser considerado um "Greenberger" ou seguidor de Clement Greenberg [crítico de arte americano,
1909-94].
Em "Painting as Model", defende
uma posição contrária a vários dogmatismos acadêmicos aos quais ele
chama de "blackmail", como teorizar em excesso ou ser contrário à
teoria; a obrigação de ser "antiformalista"; a obrigação de oferecer
uma explicação sociopolítica; e uma
espécie de doença que denomina
"asymbolia", ou seja, a incapacidade
de perceber as múltiplas possibilidades de significação de uma obra.
Considerando-se um ex-"soixantehuitard" [referência a Maio de 68],
é um dos poucos que se rebelam
contra fortes instituições como o
"New York Times", o MoMA [Museu de Arte Moderna de Nova York]
ou mesmo Harvard.
Ele estudou em Paris com Roland
Barthes e foi fundador da revista
"Macula", com Jean Clay, conhecido
crítico de arte. Durante oito anos teve um relacionamento bastante próximo e intelectual com a artista brasileira Lygia Clark, sobre quem escreveu artigos publicados na "October" e na "Artforum". Na entrevista
abaixo, ele fala desse encontro e sobre sua importância.
Folha - O sr. disse que em sua juventude, em Paris, gostava especialmente dos artistas latino-americanos.
Além do exotismo da situação e das
longas conversas com Sérgio Camargo e Lygia Clark, de que mais se recorda? O que permanece como referência
para o sr., como historiador da arte?
Yve-Alain Bois - Lygia Clark é quem
realmente permanece. Conheci os
artistas latino-americanos quando
eu era muito jovem -tinha 14
anos-, por meio de Jean Clay, na
época um crítico de arte muito famoso em Paris. Ele era defensor da
arte cinética e me apresentou a [Jesus] Soto, a Carlos Cruz-Diez, a todo
um grupo de pessoas.
Eu assistia a todas as exposições,
visitava muitos artistas -alguns deles bons, outros não tão bons...
Quando fui conhecer Lygia, dois ou
três anos mais tarde, eu já tinha perdido o interesse por essa arte. Com
certeza ela foi muito importante na
minha educação artística.
Jean Clay fundou o periódico "Robho", e o primeiro número foi inteiramente dedicado à arte cinética. A
penúltima edição, em 1968, teve um
dossiê sobre Lygia Clark. Na última,
publicada acho que em 1969, havia
também um artigo pequeno que eu
mesmo escrevi sobre Lygia, além de
um texto dela que eu a ajudei a verter
para o francês. Essa edição marcou
realmente a despedida definitiva de
Jean Clay do cineticismo.
Lygia chegou com uma atitude
mental inteiramente diferente. Eu a
conheci quando ela estava voltando
de Veneza. Estava muito deprimida.
Acho que tinha ficado traumatizada
com o comercialismo que tinha visto
em Veneza, e, além disso, 1968 era
um momento politicamente complicado. A edição da "Robho" dedicada a ela ainda não tinha saído, mas
Clay tinha me mostrado algumas fotos e me dado alguns dos textos dela
para ler, e eu queria conhecê-la.
Quando fui visitá-la, pensei que
passaria meia hora lá, porque dissera que estava um pouco doente. Então começou a abrir suas caixas, empurrando as coisas na minha direção... Recordo que a primeira era
uma pedra com um airbag; ela assoprou no saco e o colocou em minhas
mãos -me lembro ser quente e
muito delicado- e equilibrou uma
pedrinha no canto, de modo que a
menor pressão de minhas mãos fazia a pedrinha subir e descer; ela tinha vários tipos de pedrinhas com
elásticos em cima da mesa.
Começou a desempacotar todos os
"Bichos", isto e aquilo, e "Respire
Comigo", sabe -foi extraordinário
para mim, porque pude vê-la mergulhando na coisa. Fiquei fascinado.
Folha - O sr. enxerga uma influência
lacaniana em seu trabalho? Pois parte
do trabalho dela é tão ligado à topologia lacaniana do inconsciente...
Bois - Não. Ela passou longos períodos de sua vida fazendo análise e
sempre com analistas muito conhecidos, mas não gostava de Lacan. Ela
tinha feito análise com Daniel Lagache, o adversário de Lacan, durante
sua estadia anterior em Paris.
O analista dela, então, era Pierre
Fedida, que fazia parte do grupo de
Laplanche e Pontalis.
Nos finais de semana ela deixava o
apartamento aberto para os amigos.
Quando estava deprimida, chamava-me para jogar baralho. Aos domingos ela sempre chamava algumas pessoas; muitas vezes fazia uma
feijoada. Às vezes me pedia para ajudar com algumas coisas, até para ir
comprar as coisas na feira.
A televisão francesa, naquela época, só tinha dois ou três canais, e aos
domingos à noite havia filmes. Geralmente era extraordinário. A programação era brilhante; vimos muita coisa ali. Recordo-me de "A Sala
de Música" [1958], de Satyajit Ray,
que era extraordinário. Acho que foi
um dos filmes mais belos já feitos.
Quando o filme era entediante demais, nós dizíamos "ok, vamos jogar
baralho outra vez...". Ou ouvir música ou fazer qualquer outra coisa.
Folha - Mas ela nunca usava filmes
em seu trabalho.
Bois - Não. Mas ela sabia muito sobre cinema. Tinha um gosto muito
estranho. Ela abriu meus horizontes,
porque minha educação, em termos
de cinema, era muito "nouvelle vague". Eu era um pouco dogmático,
se bem que não fosse o dogmatismo
dos "Cahiers du Cinéma", que, na
época, haviam se tornado estúpidos,
porque eram maoístas.
Lygia me fazia assistir a filmes que
provavelmente não teria visto por
conta própria, filmes antigos de
Hollywood. Ela conhecia absolutamente tudo de cor. Gostava especialmente de "A Condessa Descalça"
[1954], de Joseph Mankiewicz, com
Ava Gardner.
Ela me ajudou completamente a
fugir de uma interpretação muito rígida e fraudulenta da abstração... E
em especial de Mondrian, que na
época prevalecia na Europa. Foi ela
quem me pôs no rastro de um Mondrian que não tem nada a ver com
aquele monge neoplatônico, mas
que era mais algum tipo de destruidor antiformalista.
Folha - Essa perspectiva foi importante para o sr.?
Bois - Sim, foi uma virada total. Para mim, Mondrian foi um dos primeiros artistas de quem gostei,
quando tinha 14 anos; foi ele quem
me levou a descobrir a arte. Topei
com um livro de Michel Seuphor,
que foi em grande medida responsável por aquela idéia de Mondrian, o
Monge. Foi o primeiro grande livro
sobre Mondrian, publicado na década de 1950. Custava muito caro para
mim na época, então pedi a meus
avós de presente quando fiz a crisma. E então li. Foi o primeiro livro de
arte que li. Aceitei toda a retórica,
cheguei a falar com Seuphor.
Mas Lygia mudou minha visão totalmente a respeito desse tipo de
abordagem. Lygia também achava
Albers surrealista. Ela não sabia, e eu
tampouco, mas algumas outras pessoas pensavam o mesmo (estou pensando, por exemplo, no crítico de arte americano Gene Swenson). Eu
nunca tinha pensado em Albers como surrealista, mas, quando ela explicou o que queria dizer, fazia sentido perfeito.
Ela também me fez compreender
que o tipo de postura adotada na
época (especialmente por Seuphor)
entre o gesto e a geometria simplesmente era intelectualmente falida.
Foi ela quem me apresentou ao trabalho de Martin Barré, sobre quem
acabei escrevendo um livro.
Ela era muito aberta em relação a
coisas que não tinham nada a ver
com o trabalho dela. Sabe, minha
cultura artística era grande para um
garoto jovem daquela época, mas,
mesmo assim, era muito limitada, e
ela me abriu a cabeça para muitas
coisas. Além disso, tínhamos discussões intelectuais sobre muitas coisas.
Eu estava lendo sobre o estruturalismo, o pós-estruturalismo -agora
estou falando sobre uma época um
pouco posterior, no início dos anos
1970, quando fui viver como estudante em Paris. Eu ainda me entusiasmava muito com aquilo, e ela
não estava muito interessada.
Folha - Como o sr. vê seu trabalho
hoje?
Bois - É complicado, porque há
duas partes em seu trabalho... Acho
os trabalhos de sua primeira fase
fantásticos, e existe uma lógica mesmo perto do fim. Percebe-se essa lógica pela maneira como o trabalho
decorre da parte inicial, mas simplesmente não sei como interpretar
o fim em si. Vejo um desenvolvimento do trabalho primeiro.
Mas percebe-se isso das coisas
geométricas aos "Bichos", aos
"Grubs", ao "Caminhando". Percebe-se uma evolução gradual fora do
objeto e para dentro de algum tipo
de prática e para algum tipo de trabalho coletivo que ela fez em Paris,
na Sorbonne, como ela falou.
Isso era extraordinário na época, e
ainda é espantoso que essas coisas
tenham acontecido. É fácil entender
porque o trabalho dela acabou sendo um pouco mitologizado, porque,
francamente, é fantástico.
Chamo de trabalho "posterior" o
trabalho que ela fez depois, que era
terapia. Essa é a parte com a qual não
sei realmente o que fazer. Mas as coisas todas que ela fez antes disso não
foram terapia. Não sei o que foram.
Não eram performance, porque não
havia espectador. Ela chamava aquilo de "as aulas", mas não eram aulas.
Folha - O sr. acha que o exílio voluntário do mundo da arte foi uma reação
também contra o mercado de arte?
Foi uma maneira, para ela, de ser outra coisa?
Bois - Bom, acho que o mercado de
arte é algo muito corrupto. Acho que
ela tinha uma espécie de reação de
repulsa à Bienal de Veneza. Mas não
acho que seja essa a causa principal.
Acho que a causa principal é simplesmente uma espécie de lógica do
argumento. Você passa do "plano"
para os "Bichos", e então o objeto se
torna interativo com o espectador
-mas ela não usava essa palavra,
ela usava "participante"-, e em dado momento deixa de precisar do
objeto. O principal estava na interação entre o participante e o objeto,
que vai se tornando mais e mais como acessório de palco do que qualquer outra coisa.
Então isso é lógico. É muito coerente, eu penso. E todo mundo vem
escrevendo sobre isso. Ela passa por
um limiar quando decide fazer disso
uma espécie de "cura" ou alguma
coisa. E eu não sei, simplesmente
não sei -quero dizer, não faço idéia
se isso tem alguma validade como
terapia. Reservo meu julgamento.
Acho que seria preciso ter uma
boa discussão com um psicanalista
sobre isso, porque não sei o que pensar a respeito. Parece-me um pouco
como brincar com fogo. Você não
sabe o que faz, mas os psicanalistas,
sim, eles brincam com fogo o tempo
todo. Às vezes a coisa termina mal,
como sabemos. Então não sei.
Folha - O sr. sempre foi identificado
-pelos amigos e pelos inimigos, justa e injustamente, de maneiras positiva e negativa- como formalista. O
que significa seu formalismo?
Bois - Minha formação é estruturalista, e Barthes foi meu professor.
Basicamente, a idéia por trás dessa
forma de crítica e desse modo de
análise é que não se pode separar
forma e conteúdo. É uma separação
equivocada. Ela não existe. A forma
sempre carrega um significado, e o
significado mais profundo ou o mais
importante sempre está no nível da
forma, não no nível do referente ou
do conteúdo iconológico.
Digamos que a forma da "Flagelação" de Piero della Francesca, a perspectiva monocular, seja mais importante para a análise do que o retrato
da flagelação. Ou, para tomarmos
outro exemplo, a forma de uma Madonna de El Greco e o mesmo tema,
"Madonna e Filho", de Bellini, são
totalmente diferentes, e o significado é totalmente diferente, apesar de
ser exatamente a mesma cena.
Quero dizer, é exatamente a mesma, sabe, os dois personagens, a Virgem Maria e o filho. No caso de El
Greco, porém, há essa pessoa atormentada que está quase prestes a se
dissolver em chamas. No outro, Ela
vai se tornar um grande manto protegendo o mundo.
Barthes e Foucault foram fortes
defensores do formalismo, contrariamente ao que as pessoas pensam.
Mas foi também por meio de Barthes que os formalistas russos foram
traduzidos na França. Não por ele,
mas por seus alunos, como Todorov, e, um pouco mais tarde, por
Kristeva. Ela também traduziu
Bakhtin, que também inclui críticas
ao formalismo, mas, mesmo assim,
integra o mesmo grupo -digamos,
epistemológico. E, para Barthes,
também havia Brecht como alguém
profundamente interessado na função ideológica da forma.
Jane de Almeida é professora na Universidade Mackenzie e Pontifícia Universidade
Católica (SP) e "visiting fellow" no departamento de história da arte da Universidade
Harvard, onde desenvolve pesquisa de pós-doutorado sobre Arthur Bispo do Rosário,
com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Tradução de Clara Allain.
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