São Paulo, domingo, 05 de fevereiro de 2006

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CLARK INTERATIVA

UM DOS PRINCIPAIS CRÍTICOS DA ATUALIDADE, YVE-ALAIN BOIS FALA DE SUA RELAÇÃO COM A BRASILEIRA LYGIA CLARK, QUE CONHECEU EM PARIS EM 68, DISCUTE SEUS TRABALHOS "PARTICIPATIVOS" E LEMBRA SEU MAL-ESTAR COM O MERCADO DE ARTE

Folha Imagem
Lygia Clark em foto de 1963


JANE DE ALMEIDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O crítico de arte Yve-Alain Bois agora faz parte do corpo de pesquisadores do "Institute", instituição onde trabalharam estrelas como Albert Einstein, Kurt Gödel, Von Neumann e, no campo das artes, Erwin Panofsky. Depois de 15 anos no departamento de história da arte e arquitetura da Universidade Harvard, Bois terá o tempo que quiser para pesquisar o que bem entender no "Institute".
Conhecido pela exposição "L'Inform - Mode d'Emploi", realizada em Paris em 1996 em co-autoria com Rosalind Krauss, Yve-Alain Bois é autor de livros como "Matisse e Picasso" (Melhoramentos), "Piet Mondrian", entre outros. É também co-editor da revista "October".
Muitas das suas posições como crítico e historiador da arte causaram polêmica, como a defesa de um certo ponto de vista formalista que o fez ser considerado um "Greenberger" ou seguidor de Clement Greenberg [crítico de arte americano, 1909-94].
Em "Painting as Model", defende uma posição contrária a vários dogmatismos acadêmicos aos quais ele chama de "blackmail", como teorizar em excesso ou ser contrário à teoria; a obrigação de ser "antiformalista"; a obrigação de oferecer uma explicação sociopolítica; e uma espécie de doença que denomina "asymbolia", ou seja, a incapacidade de perceber as múltiplas possibilidades de significação de uma obra.
Considerando-se um ex-"soixantehuitard" [referência a Maio de 68], é um dos poucos que se rebelam contra fortes instituições como o "New York Times", o MoMA [Museu de Arte Moderna de Nova York] ou mesmo Harvard.
Ele estudou em Paris com Roland Barthes e foi fundador da revista "Macula", com Jean Clay, conhecido crítico de arte. Durante oito anos teve um relacionamento bastante próximo e intelectual com a artista brasileira Lygia Clark, sobre quem escreveu artigos publicados na "October" e na "Artforum". Na entrevista abaixo, ele fala desse encontro e sobre sua importância.
 

Folha - O sr. disse que em sua juventude, em Paris, gostava especialmente dos artistas latino-americanos. Além do exotismo da situação e das longas conversas com Sérgio Camargo e Lygia Clark, de que mais se recorda? O que permanece como referência para o sr., como historiador da arte?
Yve-Alain Bois -
Lygia Clark é quem realmente permanece. Conheci os artistas latino-americanos quando eu era muito jovem -tinha 14 anos-, por meio de Jean Clay, na época um crítico de arte muito famoso em Paris. Ele era defensor da arte cinética e me apresentou a [Jesus] Soto, a Carlos Cruz-Diez, a todo um grupo de pessoas.
Eu assistia a todas as exposições, visitava muitos artistas -alguns deles bons, outros não tão bons... Quando fui conhecer Lygia, dois ou três anos mais tarde, eu já tinha perdido o interesse por essa arte. Com certeza ela foi muito importante na minha educação artística.
Jean Clay fundou o periódico "Robho", e o primeiro número foi inteiramente dedicado à arte cinética. A penúltima edição, em 1968, teve um dossiê sobre Lygia Clark. Na última, publicada acho que em 1969, havia também um artigo pequeno que eu mesmo escrevi sobre Lygia, além de um texto dela que eu a ajudei a verter para o francês. Essa edição marcou realmente a despedida definitiva de Jean Clay do cineticismo.
Lygia chegou com uma atitude mental inteiramente diferente. Eu a conheci quando ela estava voltando de Veneza. Estava muito deprimida. Acho que tinha ficado traumatizada com o comercialismo que tinha visto em Veneza, e, além disso, 1968 era um momento politicamente complicado. A edição da "Robho" dedicada a ela ainda não tinha saído, mas Clay tinha me mostrado algumas fotos e me dado alguns dos textos dela para ler, e eu queria conhecê-la.
Quando fui visitá-la, pensei que passaria meia hora lá, porque dissera que estava um pouco doente. Então começou a abrir suas caixas, empurrando as coisas na minha direção... Recordo que a primeira era uma pedra com um airbag; ela assoprou no saco e o colocou em minhas mãos -me lembro ser quente e muito delicado- e equilibrou uma pedrinha no canto, de modo que a menor pressão de minhas mãos fazia a pedrinha subir e descer; ela tinha vários tipos de pedrinhas com elásticos em cima da mesa.
Começou a desempacotar todos os "Bichos", isto e aquilo, e "Respire Comigo", sabe -foi extraordinário para mim, porque pude vê-la mergulhando na coisa. Fiquei fascinado.

Folha - O sr. enxerga uma influência lacaniana em seu trabalho? Pois parte do trabalho dela é tão ligado à topologia lacaniana do inconsciente...
Bois -
Não. Ela passou longos períodos de sua vida fazendo análise e sempre com analistas muito conhecidos, mas não gostava de Lacan. Ela tinha feito análise com Daniel Lagache, o adversário de Lacan, durante sua estadia anterior em Paris.
O analista dela, então, era Pierre Fedida, que fazia parte do grupo de Laplanche e Pontalis.
Nos finais de semana ela deixava o apartamento aberto para os amigos. Quando estava deprimida, chamava-me para jogar baralho. Aos domingos ela sempre chamava algumas pessoas; muitas vezes fazia uma feijoada. Às vezes me pedia para ajudar com algumas coisas, até para ir comprar as coisas na feira.
A televisão francesa, naquela época, só tinha dois ou três canais, e aos domingos à noite havia filmes. Geralmente era extraordinário. A programação era brilhante; vimos muita coisa ali. Recordo-me de "A Sala de Música" [1958], de Satyajit Ray, que era extraordinário. Acho que foi um dos filmes mais belos já feitos.
Quando o filme era entediante demais, nós dizíamos "ok, vamos jogar baralho outra vez...". Ou ouvir música ou fazer qualquer outra coisa.

Folha - Mas ela nunca usava filmes em seu trabalho.
Bois -
Não. Mas ela sabia muito sobre cinema. Tinha um gosto muito estranho. Ela abriu meus horizontes, porque minha educação, em termos de cinema, era muito "nouvelle vague". Eu era um pouco dogmático, se bem que não fosse o dogmatismo dos "Cahiers du Cinéma", que, na época, haviam se tornado estúpidos, porque eram maoístas.
Lygia me fazia assistir a filmes que provavelmente não teria visto por conta própria, filmes antigos de Hollywood. Ela conhecia absolutamente tudo de cor. Gostava especialmente de "A Condessa Descalça" [1954], de Joseph Mankiewicz, com Ava Gardner.
Ela me ajudou completamente a fugir de uma interpretação muito rígida e fraudulenta da abstração... E em especial de Mondrian, que na época prevalecia na Europa. Foi ela quem me pôs no rastro de um Mondrian que não tem nada a ver com aquele monge neoplatônico, mas que era mais algum tipo de destruidor antiformalista.

Folha - Essa perspectiva foi importante para o sr.?
Bois -
Sim, foi uma virada total. Para mim, Mondrian foi um dos primeiros artistas de quem gostei, quando tinha 14 anos; foi ele quem me levou a descobrir a arte. Topei com um livro de Michel Seuphor, que foi em grande medida responsável por aquela idéia de Mondrian, o Monge. Foi o primeiro grande livro sobre Mondrian, publicado na década de 1950. Custava muito caro para mim na época, então pedi a meus avós de presente quando fiz a crisma. E então li. Foi o primeiro livro de arte que li. Aceitei toda a retórica, cheguei a falar com Seuphor.
Mas Lygia mudou minha visão totalmente a respeito desse tipo de abordagem. Lygia também achava Albers surrealista. Ela não sabia, e eu tampouco, mas algumas outras pessoas pensavam o mesmo (estou pensando, por exemplo, no crítico de arte americano Gene Swenson). Eu nunca tinha pensado em Albers como surrealista, mas, quando ela explicou o que queria dizer, fazia sentido perfeito.
Ela também me fez compreender que o tipo de postura adotada na época (especialmente por Seuphor) entre o gesto e a geometria simplesmente era intelectualmente falida. Foi ela quem me apresentou ao trabalho de Martin Barré, sobre quem acabei escrevendo um livro.
Ela era muito aberta em relação a coisas que não tinham nada a ver com o trabalho dela. Sabe, minha cultura artística era grande para um garoto jovem daquela época, mas, mesmo assim, era muito limitada, e ela me abriu a cabeça para muitas coisas. Além disso, tínhamos discussões intelectuais sobre muitas coisas.
Eu estava lendo sobre o estruturalismo, o pós-estruturalismo -agora estou falando sobre uma época um pouco posterior, no início dos anos 1970, quando fui viver como estudante em Paris. Eu ainda me entusiasmava muito com aquilo, e ela não estava muito interessada.

Folha - Como o sr. vê seu trabalho hoje?
Bois -
É complicado, porque há duas partes em seu trabalho... Acho os trabalhos de sua primeira fase fantásticos, e existe uma lógica mesmo perto do fim. Percebe-se essa lógica pela maneira como o trabalho decorre da parte inicial, mas simplesmente não sei como interpretar o fim em si. Vejo um desenvolvimento do trabalho primeiro.
Mas percebe-se isso das coisas geométricas aos "Bichos", aos "Grubs", ao "Caminhando". Percebe-se uma evolução gradual fora do objeto e para dentro de algum tipo de prática e para algum tipo de trabalho coletivo que ela fez em Paris, na Sorbonne, como ela falou.
Isso era extraordinário na época, e ainda é espantoso que essas coisas tenham acontecido. É fácil entender porque o trabalho dela acabou sendo um pouco mitologizado, porque, francamente, é fantástico.
Chamo de trabalho "posterior" o trabalho que ela fez depois, que era terapia. Essa é a parte com a qual não sei realmente o que fazer. Mas as coisas todas que ela fez antes disso não foram terapia. Não sei o que foram. Não eram performance, porque não havia espectador. Ela chamava aquilo de "as aulas", mas não eram aulas.

Folha - O sr. acha que o exílio voluntário do mundo da arte foi uma reação também contra o mercado de arte? Foi uma maneira, para ela, de ser outra coisa?
Bois -
Bom, acho que o mercado de arte é algo muito corrupto. Acho que ela tinha uma espécie de reação de repulsa à Bienal de Veneza. Mas não acho que seja essa a causa principal. Acho que a causa principal é simplesmente uma espécie de lógica do argumento. Você passa do "plano" para os "Bichos", e então o objeto se torna interativo com o espectador -mas ela não usava essa palavra, ela usava "participante"-, e em dado momento deixa de precisar do objeto. O principal estava na interação entre o participante e o objeto, que vai se tornando mais e mais como acessório de palco do que qualquer outra coisa.
Então isso é lógico. É muito coerente, eu penso. E todo mundo vem escrevendo sobre isso. Ela passa por um limiar quando decide fazer disso uma espécie de "cura" ou alguma coisa. E eu não sei, simplesmente não sei -quero dizer, não faço idéia se isso tem alguma validade como terapia. Reservo meu julgamento.
Acho que seria preciso ter uma boa discussão com um psicanalista sobre isso, porque não sei o que pensar a respeito. Parece-me um pouco como brincar com fogo. Você não sabe o que faz, mas os psicanalistas, sim, eles brincam com fogo o tempo todo. Às vezes a coisa termina mal, como sabemos. Então não sei.

Folha - O sr. sempre foi identificado -pelos amigos e pelos inimigos, justa e injustamente, de maneiras positiva e negativa- como formalista. O que significa seu formalismo?
Bois -
Minha formação é estruturalista, e Barthes foi meu professor. Basicamente, a idéia por trás dessa forma de crítica e desse modo de análise é que não se pode separar forma e conteúdo. É uma separação equivocada. Ela não existe. A forma sempre carrega um significado, e o significado mais profundo ou o mais importante sempre está no nível da forma, não no nível do referente ou do conteúdo iconológico.
Digamos que a forma da "Flagelação" de Piero della Francesca, a perspectiva monocular, seja mais importante para a análise do que o retrato da flagelação. Ou, para tomarmos outro exemplo, a forma de uma Madonna de El Greco e o mesmo tema, "Madonna e Filho", de Bellini, são totalmente diferentes, e o significado é totalmente diferente, apesar de ser exatamente a mesma cena.
Quero dizer, é exatamente a mesma, sabe, os dois personagens, a Virgem Maria e o filho. No caso de El Greco, porém, há essa pessoa atormentada que está quase prestes a se dissolver em chamas. No outro, Ela vai se tornar um grande manto protegendo o mundo.
Barthes e Foucault foram fortes defensores do formalismo, contrariamente ao que as pessoas pensam. Mas foi também por meio de Barthes que os formalistas russos foram traduzidos na França. Não por ele, mas por seus alunos, como Todorov, e, um pouco mais tarde, por Kristeva. Ela também traduziu Bakhtin, que também inclui críticas ao formalismo, mas, mesmo assim, integra o mesmo grupo -digamos, epistemológico. E, para Barthes, também havia Brecht como alguém profundamente interessado na função ideológica da forma.


Jane de Almeida é professora na Universidade Mackenzie e Pontifícia Universidade Católica (SP) e "visiting fellow" no departamento de história da arte da Universidade Harvard, onde desenvolve pesquisa de pós-doutorado sobre Arthur Bispo do Rosário, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Tradução de Clara Allain.


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