São Paulo, domingo, 05 de fevereiro de 2006

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Um clandestino no front

Sai na França reunião de obras do historiador Marc Bloch, um dos centrais do século 20, com fotos e textos inéditos

NICOLAS OFFENSTADT

Julgar ou Compreender?" É esse o título de um parágrafo de "Apologia da História" [ed. Jorge Zahar], obra póstuma de Marc Bloch, escrita durante a Segunda Guerra e editada pela primeira vez em 1949.
Em um momento em que o estatuto da história e o lugar ocupado pelos historiadores na sociedade são submetidos a duras provas -que põem em questão o próprio sentido da disciplina e sua articulação com a memória social-, o relançamento deste texto notável, dentro do quadro de um rico conjunto de obras do historiador ["L'Histoire, la Guerre, la Résistance"/A História, a Guerra, a Resistência], se mostra inteiramente pontual.


Há várias fotos que ilustram a vida nas trincheiras e oferecem novos retratos de Marc Bloch


Marc Bloch, que hoje se tornou a figura tutelar de seus pares, lembra neste livro que os julgamentos de valor não têm interesse para o trabalho do historiador, mesmo porque "não podemos fazer mais nada" em relação ao passado e porque todo critério de avaliação é eminentemente relativo. Sobretudo porque, "à força de julgar, terminamos quase fatalmente por perder até mesmo o gosto por explicar". Para Bloch, "as ciências sempre se mostraram mais fecundas (...) quanto mais propositalmente abriram mão do velho antropocentrismo do bem e do mal".
Essa reflexão salutar não conduz em nada ao distanciamento do presente, ao contrário: "Essa capacidade de apreensão do que é vivo é, de fato, a qualidade mais importante do historiador".

Observador participante
Seus escritos sobre a Primeira Guerra são um testemunho disso. Eles se encontram reeditados aqui, acompanhados de várias fotos inéditas que ilustram a vida nas trincheiras e oferecem novos retratos de Bloch.
Além da riqueza das anotações sobre a própria guerra, as lembranças e reflexões do suboficial, mais tarde oficial de infantaria, extremamente imbuídas da mentalidade burguesa da época, revelam toda a importância que Bloch atribuía à observação, sua preocupação constante em apreender o mundo que o cercava.
Ele também evoca esse "espírito de curiosidade" que nunca o abandona, mesmo sob ataque de granadas. Bloch extraiu daquilo que viveu, especialmente no front, todo um conjunto de reflexões de questionamentos de que fez uso em seus trabalhos posteriores. Num célebre artigo sobre "as falsas notícias da guerra", retomado neste volume, ele observa que a guerra foi "uma imensa experiência de psicologia social, de riqueza inédita".
Novamente soldado em 1939, Bloch, sempre reflexivo, tirou de suas observações um texto de referência, abundantemente citado e utilizado, "A Estranha Derrota", que lança um olhar crítico sobre a sociedade de entreguerras que conduziu ao desastre. Um comentário recolhido em 1940 é retomado para ilustrar a idéia de que "a cada vez que nossas tristes sociedades, em perpétua crise de crescimento, começam a duvidar delas mesmas, nós as vemos perguntando-se se têm razão em interrogar seu passado ou se já o fizeram".

Bloch e Febvre
A futura "Apologia" é dedicada, em 1941, a Lucien Febvre, com quem Marc Bloch, em 1929, lançara os "Anais de História Econômica e Social", uma revista decisiva para a renovação da historiografia e da qual são republicados aqui alguns textos que lembram, entre outros, a abertura de seus fundadores a todos os tipos de documentos e materiais.
Febvre e Bloch não tinham de maneira nenhuma a mesma sensibilidade, como mostram vários trabalhos sobre Bloch e os "Anais", mas compartilhavam um interesse fecundo pelas disciplinas próximas da sua -e pela sociologia, especialmente no caso de Bloch. O historiador escreveu que, depois de Durkheim, esta "nos ensinou a "pensar" com menos dificuldade", mesmo que ele não se furte a exercer sua crítica com relação a algumas posições dessa "escola sociológica".
O volume ainda reúne diversos escritos mais ou menos acessíveis, alguns inéditos, que tratam do trabalho do historiador, da relação de Bloch com a condição de judeu ou de seu engajamento na Resistência.
Os editores acrescentaram diversos depoimentos ou análises sobre a história, além de uma cronologia biográfica que retoma, entre outras, as recordações do também membro da Resistência Alban Vistel sobre o professor clandestino: "Corpo frágil, espírito grande, eminente medievalista (...), ele se distinguia entre nossa fauna por sua cortesia própria de outra época, sua discrição, a modéstia com a qual fazia valer sua opinião" -até o dia de junho de 1944 em que Marc Bloch tombou sob as balas nazistas, deixando inacabada uma das obras mais marcantes da historiografia do século 20, que não pára de estimular não apenas os medievalistas e historiadores do contemporâneo mas também todos aqueles para os quais a disciplina histórica deve permitir que se pense... "com menos dificuldade".

Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.

L'Histoire, la Guerre, la Résistance
1.094 págs., 28/R$ 75
de Marc Bloch. Annette Becker e Etienne Bloch (org.). Ed. Gallimard (França).


Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados na livraria Francesa (0/ xx/11/ 3231-4555) ou no site www.alapage.com


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