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Apesar do discurso sobre "tolerância zero", as instituições da sociedade
capitalista moderna estão se afundando até os joelhos em negócios mafiosos
Raposas no galinheiro
Robert Kurz
A cada dia torna-se mais claro que os
velhos centros do mundo ocidental
aproximam-se progressivamente das estruturas do Terceiro Mundo de outrora.
Não foram apenas a desagregação social,
a crescente pobreza de massa e as formas
de economia informal miserável que
chegaram às metrópoles do capitalismo.
Não é só a sucatização da infra-estrutura
que se tornou tão visível em Nova York,
Londres, Paris ou Berlim quanto em Calcutá, Lima, Argel ou Bancoc. Também os
escândalos da "classe política" ganharam, nas democracias mais renomadas,
as proporções que tinham em qualquer
"república bananeira".
Não faz muito tempo que a corrupção
generalizada passava por ser um fenômeno típico do "subdesenvolvimento".
Nesse campo, as democracias ocidentais
gostavam de se imaginar como professores que distribuíam notas aos bons alunos do leste e do sul: o Brasil foi elogiado
pelo processo de impeachment contra
Fernando Collor de Mello, ao lado dos
governos precários da Europa pós-socialista com suas declarações de princípios
contra o perigo das estruturas mafiosas e
do enriquecimento ilícito.
Então constatamos que o galinheiro
estivera entregue aos cuidados da raposa: nem mesmo a linhagem de senhores
de escravos do Nordeste brasileiro poderia competir em potencial de corrupção e
patronato com o que se observa agora
nas instituições democráticas ocidentais.
Na Alemanha, o partido conservador da
democracia cristã (CDU) mostrou ter sido uma grande empresa de lavagem de
dinheiro em seus anos de poder. A fim de
mascarar o orçamento do partido, grandes somas eram transferidas das instituições oficiais para contas bancárias no exterior. Milhões de marcos desapareceram sem deixar traço; supõe-se que alguns funcionários do partido, até então
desconhecidos, amealharam fortunas
pessoais no processo.
Aparato clandestino
Começamos
a discernir os contornos sombrios de um
aparato ilegal e clandestino, que agia em
paralelo aos grêmios democraticamente
eleitos e controlava um dos maiores e
mais honrados partidos conservadores
da União Européia com métodos mafiosos. E o padrinho dessa máfia intrapartidária era ninguém menos do que Helmut Kohl, que por 16 anos conduziu o
governo alemão em seu cargo de primeiro-ministro.
Como a Alemanha sempre se gabou de
suas virtudes prussianas -trabalho e
disciplina, mas também incorruptibilidade e manutenção das garantias jurídicas formais-, o espanto foi especialmente grande. Nesse ínterim, não há dia
que não prometa novas revelações. A
partir do escândalo do caixa dois, as novas dimensões da corrupção tornaram-se mais e mais visíveis. Da suspeita passamos quase à certeza de que as doações
partidárias ilegais provinham de propinas da indústria de armamentos e da privatização de empresas estatais.
E com isso o caso assume dimensões
européias e mesmo transcontinentais:
em seu centro encontra-se o conglomerado petrolífero estatal da França, o grupo Elf Aquitaine, que parece há muito
tempo fazer as vezes de intermediário
em transferências ilegais de dinheiro.
Em vários países da Europa, os procuradores públicos investigam se a venda da
grande refinaria estatal Leuna, na ex-Alemanha Oriental, à Elf Aquitaine foi
conseguida por meio de propinas. O
mesmo vale para remessas de armas da
indústria bélica alemã para a Arábia Saudita; de seu exílio no Canadá, o empresário bávaro Karl-Heinz Schreiber, de reputação duvidosa, mas muito próximo
de importantes políticos alemães, ameaça com mais revelações a esse respeito.
Festas trepidantes
Em comparação com esse vendaval, os casos de corrupção miúda de políticos social-democratas parecem quase inofensivos. Wolfgang Glogowski, uma das esperanças do
novo pragmatismo, teve que renunciar a
seu cargo de secretário de Turismo do
Estado de Niedersachsen por haver feito
viagens de luxo às custas de companhias
de turismo. O mesmo destino teve Heinz
Schleusser, secretário de Finanças da
Nordrhein-Westfalen, cujas viagens privadas em companhia de suas amigas
eram pagas pelo Westdeutsche Landesbank. Segundo declarações de ex-pilotos, essas viagens eram corriqueiras entre políticos, às vezes com destino a festas
trepidantes em Mallorca (Espanha) e
com prostitutas servindo de comissárias
de bordo.
A lista dos casos de corrupção poderia
ser estendida à vontade. Não faz muito
tempo que toda a equipe da Comissão
Européia, o órgão executivo da União
Européia, teve que renunciar, sob suspeita de corrupção e patronato. A Bélgica, cuja capital, Bruxelas, é também a sede da burocracia européia, destaca-se há
anos por uma série interminável de escândalos, que vão da máfia dos hormônios para gado até os casos de pedofilia;
diz-se que os criminosos, que por vezes
não recuam nem sequer diante do assassinato, dispõem de bons contatos com o
aparelho judiciário e com altos círculos
governamentais.
Crime e imunidade
Até mesmo na
Suíça, tradicionalmente tão séria, surgem notícias a respeito de falcatruas financeiras e doações ilegais a partidos políticos. Isso para não falar da periferia européia, da Bulgária à Turquia, onde crime e economia encontram-se intimamente entrelaçados: notícias a respeito
são leitura cotidiana nos jornais, bem ao
lado dos elogios à tão almejada democratização desses países. O cúmulo da ousadia foi contudo atingido pela oligarquia
russa: o presidente Ieltsin, cujo clã enriqueceu sem nenhum impedimento (e
provavelmente com os fundos de emergência do FMI), passou à aposentadoria
por meio de uma lei especial, que garantiu inteira imunidade a ele e, de quebra, a
toda sua família.
Assim, as instituições da sociedade capitalista moderna e do Estado de Direito
burguês afundam-se até os joelhos em
negócios mafiosos e são desacreditadas
moralmente. Basta pensar no discurso
neoliberal e neoconservador sobre "tolerância zero" diante das menores infrações da lei.
É claro que esse slogan populista destacou-se desde o início por sua extrema ignorância social e não passou de uma declaração de guerra bastante explícita entre as elites burguesas e os desempregados, os excluídos e os novos pobres. Mas
a aceitação do slogan por grandes camadas da população, que se agarraram à
quimera pequeno-burguesa de uma "vida honrada" e tomaram parte ativa na
discriminação dos párias sociais, esteve
ao menos ligada à ilusão de um certo
grau de integridade pessoal das elites
econômicas e políticas. Isso é coisa do
passado.
Na Alemanha, o ex-ministro do Interior Manfred Kanther levantou a bandeira da "tolerância zero"; teria condenado
duramente qualquer ladrãozinho ou
passageiro de metrô sem tíquete se com
essa dureza, propagada pela mídia, pudesse arrebanhar mais votos. E agora
constata-se que Kanther, nesse meio
tempo, participava do "caixa dois" do
CDU e andava para cima e para baixo
com pastas cheias de dinheiro lavado,
como um bom mafioso.
Honra providencial
É especialmente notável que, justamente nesse
contexto, tenha vindo à tona o conceito
arcaico de "honra". Não se trata de dar
nova vida ao conceito oitocentista e burguês de honra. O ex-chanceler Kohl, que
havia pouco tempo posava de grande estadista e figura histórica "à la Bismarck",
subtraiu-se ao império da lei com uma
franqueza que desconcerta seus colegas
de partido: sua "palavra de honra" o impediria de falar sobre a origem de certas
doações e propinas. Isso cabe perfeitamente dentro dos princípios da "omertà", a lei do silêncio da Máfia siciliana e
da Ndrangheta calabresa.
Não é mais a honra da "boa sociedade"
burguesa, mas a honra canalha do crime
organizado, o mesmo que, nos anos 80, a
casta política das democracias dizia ser a
principal ameaça à ordem social. E agora
transparece que boa parte da elite política pertencia a uma ou outra dessas "sociedades honradas". Naturalmente podemos nos perguntar se tudo isso é realmente uma novidade. Uma sociedade
que se reproduz por meio da concorrência de mercados anônimos e que é administrada por uma aparelho estatal que se
apresenta aos homens como poder burocrático sem rosto não pode deixar de acarretar uma tendência à corrupção, ao
nepotismo e à formação de quadrilhas.
Esses fenômenos são apenas o reverso
das instâncias anônimas do mercado e
da burocracia estatal, assim como o direito burguês e a criminalidade são apenas os dois lados de uma mesma moeda
e condicionam-se mutuamente. Só até
certo ponto pode-se dizer que o crime é o
grande inimigo do sistema capitalista;
tão logo o crime adquire certo volume,
ele se torna parte aceitável da vida da
"boa sociedade".
O Estado de Direito implica sua transgressão como continuação da concorrência por outros meios. E o direito universal, imparcial e essencialmente formal até mesmo abria espaço para a relativização lógica de qualquer crime: no final do século 17, o famoso e mal-afamado Marquês de Sade apenas tirou as consequências mais extremas do liberalismo
ao exigir a legalização do roubo (que
pressupõe a propriedade burguesa) e
mesmo do assassinato.
A lei do mais forte
Nas relações entre os diversos Estados não se foi ainda
muito além da lei do mais forte; nessa
área a forma socioeconômica da concorrência mostra-se em toda sua crueza, o
que não deixa de tingir os negócios políticos dentro de cada nação. Maquiavel já
sabia que política e moral não têm nada
em comum. A exigência de integridade
moral é só a fachada das relações de concorrência, cuja dinâmica própria determina o conteúdo do Estado de Direito
atual ao mesmo tempo em que o mina
continuamente.
Nesse sentido, a intimidade entre o Estado de Direito e as estruturas ilegais, entre a economia anônima e pseudonatural
e as relações escusas, entre a política e o
crime revelam a verdadeira natureza da
sociedade capitalista e da consciência
burguesa esquizofrênica.
A democracia dos EUA, país mais desenvolvido e potência dominante do
mundo livre, manifesta com mais nitidez
essa esquizofrenia. Em nenhum outro
lugar o moralismo mais cru é mobilizado
politicamente com maior dramaticidade; em nenhum outro lugar a noção de
lei do mais forte é mais enraizada na
consciência das massas; em nenhum outro lugar encontram-se clãs familiares
(como os Kennedy ou os Bush) com tanto poder sobre a política e as instituições
públicas. E em nenhum outro lugar do
Ocidente observa-se uma rede tão densa
de ligações entre o crime organizado, os
bancos, as grandes corporações, os sindicatos, a políticas e o show-business que
por vezes remonta ao século 19. Na Europa, só a Itália sustenta a comparação, por
ser o berço histórico da ligação mafiosa
entre crime, capitalismo e política.
É digno de nota que esses fatos (aos
quais poderíamos acrescentar as organizações mafiosas no Japão e em toda a
Ásia) tenham praticamente desaparecido do debate público depois da Segunda
Guerra Mundial, sob o impacto das democracias de massa. O ressurgimento
dos escândalos mafiosos ao final do século 20 não deixa então de ser índice de
uma mudança social qualitativa.
"Italianização"
Seria um exagero
piedoso supor que a revelação desse tipo
de negócio obscuro se deva a uma maior
maturidade democrática do capitalismo
ou a uma vigilância mais estrita por parte
dos meios de comunicação. Na Itália dos
anos 80, a revelação da presença mafiosa
no sistema político e a autodissolução
dos maiores partidos políticos não trouxe a purificação desejada. A corrupção
assumiu nova feição, ao passo que se observa uma crescente "italianização" das
demais democracias. Se só agora toda essa sujeira veio à tona, isso se deve ao esfacelamento incipiente do direito burguês
nas mãos do capitalismo em crise social e
da jogatina financeira internacional. Sob
a pressão de uma concorrência selvagem
e desenfreada, todos os diques sociais cedem, em cima como embaixo.
Por outro lado, com a globalização
transnacional do capital, a política democrática em bases nacionais perdeu toda capacidade efetiva de regular a vida
social. Nesse processo, também os partidos políticos perdem sua capacidade de
formação de opinião e regridem para um
sistema de cliques mafiosas, onde a liderança pessoal toma o lugar dos processos
públicos de tomada de decisões. Mas esses novos líderes, e isso vale para Kohl,
Blair ou Haider, não representam nem
simbolizam a formatação capitalista das
relações sociais, como era o caso nas ditaduras do começo do século 20 são apenas "padrinhos". A fachada moralista
desmorona com rapidez de tirar o fôlego. No mundo dos mercados globais, a
"república bananeira" tornou-se a única
forma de Estado possível e adequada.
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor, entre outros, de "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Ed. Vozes). Ele escreve
mensalmente na seção "Autores", da Folha.
Tradução de Samuel Titan Jr.
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