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+ brasil 500 d.C.
Combinando ousadia e qualidade ao falar de poesia e teatro, duas revistas
questionam a espetacularização da mídia
Aposta arriscada
Luiz Costa Lima
Há muitos anos conheci um suíço que, depois de viajar pelo
país, dizia haver concluído que
o Brasil era, intelectualmente,
um rosário de ilhas que se ignoravam.
Lembrei-me da observação desde que
comecei a colaborar regularmente com o
caderno de cultura de outro jornal e,
agora, com o da Folha.
Pergunto-me quantos autores desencorajamos pela simples ignorância de
não sabermos o que publicaram? O pensamento torna-se mais negro mediante a
associação: sabe-se como se lê pouco entre nós e, em observação que nos persegue desde o século 19, como se valoriza
menos ainda o autor nacional. Fora os
que se convertem em mitos e são mais
homenageados que lidos, nossas páginas
impressas amarelecem sem o contato de
dedos. Se isso vale para os gêneros mais
divulgados -romances e biografias-,
o que não se dirá do teatro, da poesia e do
ensaio? Resolvi por isso dedicar esta coluna a duas revistas, uma de teatro, outra
de poesia.
A primeira, "Folhetim", teve seu número zero lançado em 1998 e se diz editada pelo Teatro do Pequeno Gesto. Dela,
nada mais sei senão que se publica no
Rio, que lançou quatro números e que
suas organizadoras são pessoas jovens. A
de poesia, "Inimigo Rumor", é lançada
por pequena editora carioca, a Sette Letras, e completou o ano de 1999 com sete
números em circulação.
Qualidade incomum
Embora aqui
as trate em conjunto, parece que, em matéria de dificuldades, a "Folhetim" ganha
a palma. Simplesmente porque, dado
seu pequeno tamanho, não pode editar
peças inteiras e há de se resumir a ensaios e entrevistas. Ora, a menos que as
entrevistas fossem sensacionalistas, como ela se sustentaria? Não atino com a
resposta. Sei apenas que, sem ser intencional, alguns de seus ensaios combinam
entre si e contêm uma reflexão sobre teatro e arte de qualidade incomum. Destaco os ensaios traduzidos de Tadeusz
Kantor e Jean Genet (nos números zero e
três), a entrevista com P. Lacoue-Labarthe sobre o teatro de Hölderlin e o ensaio
de Virgínia de Araújo Figueiredo. Começo pela convergência entre as reflexões
de Kantor e Genet.
O pretexto do primeiro é a especulação
em torno de livro (que desconheço) de
Gordon Craig. Dele, Kantor retira o que
seria o gesto primordial do teatro: "Do
círculo comum dos costumes e dos ritos
religiosos, das cerimônias e das atividades lúdicas, alguém saiu, tendo acabado
de tomar a decisão temerária de se destacar da comunidade cultural. E se acrescentarmos "com o seu papel", temos
diante de nós o ator". Em tese -com
certa proximidade com o que Adorno
dizia na "Teoria Estética" sobre a pintura
das cavernas- sua origem dependeria
de que, ao lado da crença mágica na imagem, houvesse a capacidade de criar prazer, a partir da expressão da semelhança
-também o teatro supõe a separação do
serviço cultual, o questionamento dos laços comunais.
A esse ponto de partida, Kantor acrescenta um passo decisivo: "É apenas diante dos mortos" que a vida revela "sua banalidade, sua identificação universal,
que demole impiedosamente qualquer
ilusão diferente ou contrária". Interpreto-o: os mortos dão vida ao teatro porque, abolindo as diferenças, eliminam
ilusões sobre a vida e bloqueiam a espetacularização do teatro.
Em Genet, de sua parte, o tom de irônica crueldade defende a tese de que o lugar próximo à cena teatral é o cemitério.
"O teatro será localizado o mais próximo
possível, na sombra efetivamente tutelar
do lugar onde se guardam os mortos ou
do único monumento que os digere". A
morte então se faria "mais leve (e) o teatro, mais sério", pois essa contiguidade
serviria não para aumentar o temor do
desfecho final, mas sim para tornar o público apto a "confrontar-se com o mistério". Assim como em Kantor, tematizar a
morte seria um meio para a cena teatral
defender-se da distração colorida. Genet
o dirá com bastante crueza: "Se um dia o
entorpecimento do espírito só suscitasse
nos homens o devaneio, o teatro morreria". Não é que, para os dois autores, o
teatro se converta em atividade lúgubre,
mas sim, certamente, antiilusionista.
A conclusão se amplia no ensaio "Por
uma Concepção Trágica da Obra de Arte", de Virgínia de Araújo Figueiredo.
Por meio da discussão do sublime em
Edmund Burke, a autora mostra que a
arte, supondo o movimento de liberação
da realidade empírica, cria um momento
de ilusão e aparência. Mas não se contenta com ele. Dessa negação deriva outro
momento: o de reaproximação da realidade humana, explicitando o que ela, em
sua face imediata, esconde. Isso é possível porque, diz, citando trechos do filósofo inglês, "as palavras podem produzir
"combinações impossíveis" de se apresentarem na realidade; em seguida, porque "participamos de um modo extraordinário nas paixões dos outros'".
"Pensamento é corpo"
Tais combinações e movimento de simpatia tampouco se confundem com o passatempo
do que tão-só diverte. Nas próprias palavras da autora: "No Sublime não se faz a
experiência do pensamento sem passar
pelo perigo ou pelo menos pela consciência do risco contida no próprio pensamento". A conclusão é preciosa, sobretudo por dizer em palavras simples o que
nada tem de simples. Mais ainda: por se
chocar com a banalidade dos clichês
contemporâneos.
Enlaçando-a com o ensaio do poeta
Michel Déguy ("Inimigo Rumor", nº 7),
ela se torna, além do mais, fonte de preocupação. Pois, como diz Déguy, "favorecida pelo cientificismo de vulgarização e
pela economia de consumo e de comunicação", tornou-se opinião corrente que
"o pensamento é o corpo". De que resulta os gurus serem tomados como pensadores! "O transcendental deixou (pura
ignorância) o contexto kantiano para designar a "meditação yoga"." O elogio do
corpo, embora as academias de ginástica
não o saibam, participa da "Contra-Reforma empreendida (contemporaneamente) em nome dos valores do retorno,
do afeto, da imediatez, que sei eu...".
A conjunção das quatro abordagens
autônomas e diversas, provavelmente
escritas sem que nenhuma conhecesse as
demais, mostra em comum um flagrante
antagonismo aos hábitos midiáticos. A
exaltação do corpo -curiosamente, ele
torna os indivíduos mais depressa velhos-, a espetacularização, o fascínio da
aparência explicam melhor por que teatro, poesia e ensaio que estejam contra a
corrente dispõem de um público cada
vez mais restrito. As duas revistas que
destacamos então apostam que nem todos os leitores já foram seduzidos pelo
estado de "devaneio". É dessa aposta arriscada que depende, em tiragens pequenas, a publicação de obras semelhantes.
Novos e consagrados
Dada a nossa
tradição de pouca leitura, não nos cabe
nem sequer lamentar a contracorrente
em que se põem. Ao contrário, a propósito de "Inimigo Rumor", não é exagero
dizer-se que nunca tivemos uma revista
de poesia que contivesse não apenas traduções de extrema qualidade (Cummings, Frank O'Hara, Jacques Roubaud,
Milosz, Emily Dickinson, Valéry, Paul
Celan), mas também inéditos tanto de
poetas nacionais conhecidos (entre eles,
Haroldo de Campos, Ferreira Gullar, Sebastião Uchoa Leite, Armando Freitas
Filho, Duda Machado, Francisco Alvim,
Eudoro Augusto, Arnaldo Antunes) como de desconhecidos, mesmo pelo público mais ligado à poesia (Sérgio Alcides, Rubens Figueiredo, Marcos Siscar,
Dora Ribeiro).
Essa proliferação não seria possível se a
revista -o mesmo valeria para "Folhetim"-, sem ser eclética, optasse por
uma única dicção poética. A qualidade
parece ser seu único lema. Essa marca,
em "Inimigo Rumor", vai além da mera
poesia: não só apresenta, entre os poetas
inéditos, Marcos Siscar, mas ainda o traz
como autor de um raro ensaio sobre Paul
Valéry, "O Precedente" (nº 6). Essa é para mim a maior surpresa positiva das
duas revistas. Que coisa melhor pode nos
passar senão reconhecer que não estamos totalmente sozinhos?
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia
Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mimesis" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve mensalmente
na seção "Brasil 500 d.C.".
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