São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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+ brasil 500 d.C.
Combinando ousadia e qualidade ao falar de poesia e teatro, duas revistas questionam a espetacularização da mídia
Aposta arriscada

Luiz Costa Lima

Há muitos anos conheci um suíço que, depois de viajar pelo país, dizia haver concluído que o Brasil era, intelectualmente, um rosário de ilhas que se ignoravam. Lembrei-me da observação desde que comecei a colaborar regularmente com o caderno de cultura de outro jornal e, agora, com o da Folha. Pergunto-me quantos autores desencorajamos pela simples ignorância de não sabermos o que publicaram? O pensamento torna-se mais negro mediante a associação: sabe-se como se lê pouco entre nós e, em observação que nos persegue desde o século 19, como se valoriza menos ainda o autor nacional. Fora os que se convertem em mitos e são mais homenageados que lidos, nossas páginas impressas amarelecem sem o contato de dedos. Se isso vale para os gêneros mais divulgados -romances e biografias-, o que não se dirá do teatro, da poesia e do ensaio? Resolvi por isso dedicar esta coluna a duas revistas, uma de teatro, outra de poesia. A primeira, "Folhetim", teve seu número zero lançado em 1998 e se diz editada pelo Teatro do Pequeno Gesto. Dela, nada mais sei senão que se publica no Rio, que lançou quatro números e que suas organizadoras são pessoas jovens. A de poesia, "Inimigo Rumor", é lançada por pequena editora carioca, a Sette Letras, e completou o ano de 1999 com sete números em circulação.

Qualidade incomum
Embora aqui as trate em conjunto, parece que, em matéria de dificuldades, a "Folhetim" ganha a palma. Simplesmente porque, dado seu pequeno tamanho, não pode editar peças inteiras e há de se resumir a ensaios e entrevistas. Ora, a menos que as entrevistas fossem sensacionalistas, como ela se sustentaria? Não atino com a resposta. Sei apenas que, sem ser intencional, alguns de seus ensaios combinam entre si e contêm uma reflexão sobre teatro e arte de qualidade incomum. Destaco os ensaios traduzidos de Tadeusz Kantor e Jean Genet (nos números zero e três), a entrevista com P. Lacoue-Labarthe sobre o teatro de Hölderlin e o ensaio de Virgínia de Araújo Figueiredo. Começo pela convergência entre as reflexões de Kantor e Genet. O pretexto do primeiro é a especulação em torno de livro (que desconheço) de Gordon Craig. Dele, Kantor retira o que seria o gesto primordial do teatro: "Do círculo comum dos costumes e dos ritos religiosos, das cerimônias e das atividades lúdicas, alguém saiu, tendo acabado de tomar a decisão temerária de se destacar da comunidade cultural. E se acrescentarmos "com o seu papel", temos diante de nós o ator". Em tese -com certa proximidade com o que Adorno dizia na "Teoria Estética" sobre a pintura das cavernas- sua origem dependeria de que, ao lado da crença mágica na imagem, houvesse a capacidade de criar prazer, a partir da expressão da semelhança -também o teatro supõe a separação do serviço cultual, o questionamento dos laços comunais. A esse ponto de partida, Kantor acrescenta um passo decisivo: "É apenas diante dos mortos" que a vida revela "sua banalidade, sua identificação universal, que demole impiedosamente qualquer ilusão diferente ou contrária". Interpreto-o: os mortos dão vida ao teatro porque, abolindo as diferenças, eliminam ilusões sobre a vida e bloqueiam a espetacularização do teatro. Em Genet, de sua parte, o tom de irônica crueldade defende a tese de que o lugar próximo à cena teatral é o cemitério. "O teatro será localizado o mais próximo possível, na sombra efetivamente tutelar do lugar onde se guardam os mortos ou do único monumento que os digere". A morte então se faria "mais leve (e) o teatro, mais sério", pois essa contiguidade serviria não para aumentar o temor do desfecho final, mas sim para tornar o público apto a "confrontar-se com o mistério". Assim como em Kantor, tematizar a morte seria um meio para a cena teatral defender-se da distração colorida. Genet o dirá com bastante crueza: "Se um dia o entorpecimento do espírito só suscitasse nos homens o devaneio, o teatro morreria". Não é que, para os dois autores, o teatro se converta em atividade lúgubre, mas sim, certamente, antiilusionista. A conclusão se amplia no ensaio "Por uma Concepção Trágica da Obra de Arte", de Virgínia de Araújo Figueiredo. Por meio da discussão do sublime em Edmund Burke, a autora mostra que a arte, supondo o movimento de liberação da realidade empírica, cria um momento de ilusão e aparência. Mas não se contenta com ele. Dessa negação deriva outro momento: o de reaproximação da realidade humana, explicitando o que ela, em sua face imediata, esconde. Isso é possível porque, diz, citando trechos do filósofo inglês, "as palavras podem produzir "combinações impossíveis" de se apresentarem na realidade; em seguida, porque "participamos de um modo extraordinário nas paixões dos outros'".

"Pensamento é corpo"
Tais combinações e movimento de simpatia tampouco se confundem com o passatempo do que tão-só diverte. Nas próprias palavras da autora: "No Sublime não se faz a experiência do pensamento sem passar pelo perigo ou pelo menos pela consciência do risco contida no próprio pensamento". A conclusão é preciosa, sobretudo por dizer em palavras simples o que nada tem de simples. Mais ainda: por se chocar com a banalidade dos clichês contemporâneos. Enlaçando-a com o ensaio do poeta Michel Déguy ("Inimigo Rumor", nº 7), ela se torna, além do mais, fonte de preocupação. Pois, como diz Déguy, "favorecida pelo cientificismo de vulgarização e pela economia de consumo e de comunicação", tornou-se opinião corrente que "o pensamento é o corpo". De que resulta os gurus serem tomados como pensadores! "O transcendental deixou (pura ignorância) o contexto kantiano para designar a "meditação yoga"." O elogio do corpo, embora as academias de ginástica não o saibam, participa da "Contra-Reforma empreendida (contemporaneamente) em nome dos valores do retorno, do afeto, da imediatez, que sei eu...". A conjunção das quatro abordagens autônomas e diversas, provavelmente escritas sem que nenhuma conhecesse as demais, mostra em comum um flagrante antagonismo aos hábitos midiáticos. A exaltação do corpo -curiosamente, ele torna os indivíduos mais depressa velhos-, a espetacularização, o fascínio da aparência explicam melhor por que teatro, poesia e ensaio que estejam contra a corrente dispõem de um público cada vez mais restrito. As duas revistas que destacamos então apostam que nem todos os leitores já foram seduzidos pelo estado de "devaneio". É dessa aposta arriscada que depende, em tiragens pequenas, a publicação de obras semelhantes.

Novos e consagrados
Dada a nossa tradição de pouca leitura, não nos cabe nem sequer lamentar a contracorrente em que se põem. Ao contrário, a propósito de "Inimigo Rumor", não é exagero dizer-se que nunca tivemos uma revista de poesia que contivesse não apenas traduções de extrema qualidade (Cummings, Frank O'Hara, Jacques Roubaud, Milosz, Emily Dickinson, Valéry, Paul Celan), mas também inéditos tanto de poetas nacionais conhecidos (entre eles, Haroldo de Campos, Ferreira Gullar, Sebastião Uchoa Leite, Armando Freitas Filho, Duda Machado, Francisco Alvim, Eudoro Augusto, Arnaldo Antunes) como de desconhecidos, mesmo pelo público mais ligado à poesia (Sérgio Alcides, Rubens Figueiredo, Marcos Siscar, Dora Ribeiro).
Essa proliferação não seria possível se a revista -o mesmo valeria para "Folhetim"-, sem ser eclética, optasse por uma única dicção poética. A qualidade parece ser seu único lema. Essa marca, em "Inimigo Rumor", vai além da mera poesia: não só apresenta, entre os poetas inéditos, Marcos Siscar, mas ainda o traz como autor de um raro ensaio sobre Paul Valéry, "O Precedente" (nº 6). Essa é para mim a maior surpresa positiva das duas revistas. Que coisa melhor pode nos passar senão reconhecer que não estamos totalmente sozinhos?


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mimesis" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.".


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