São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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+ brasil 500 d.C.
Ao privatizar direitos sociais, o neoliberalismo jogou milhões de brasileiros na mendicância e delinquência
Quem semeia ventos colhe tempestades

Marilena Chaui

Nos anos 70, quando estava em voga o misticismo oriental, um conhecido meu embarcou para a Índia, onde pretendia ficar durante um ano, aprendendo formas de meditação e de espiritualismo. Três meses depois, encontrei-o e, espantada, perguntei: "Como? Já de volta? O que houve?". A resposta foi sombria: "Voltei quando me flagrei ficando contente porque o mendigo não tinha pernas e não podia vir atrás de mim". Ao descobrir-se desumanizado e beirando a barbárie, meu amigo místico regressou da Índia a um país no qual a miséria ainda não havia acampado nas ruas. Não o tenho visto nos últimos anos e fico me perguntando para onde ele terá ido, pois a miséria está acampada não só nas ruas do Brasil, mas nas do mundo inteiro. Tenho me perguntado também se, como os outros, ele se anestesiou e passou a não ver os miseráveis, integrando-os como parte da paisagem urbana: semáforos, veículos, prédios, árvores, buracos, entulho, lixo e... mendigos. Enquanto Malan e o FMI disputam se pode ou não haver um "fundo para a pobreza", o Congresso polemiza se o salário mínimo pode ou não ser de US$ 100 e os órgãos públicos de assistência social procuram explicar os efeitos da mendicância sobre o futuro das crianças, os demais cidadãos oscilam entre a exasperação, a reclamação, a culpa e a impotência.

Reprodução da miséria
Semanas atrás, a Folha (13/2) publicou uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que revela ser o Brasil o terceiro país do mundo em índice de desemprego. Uma longa matéria foi dedicada à "profissionalização" da miséria na cidade de São Paulo e, na pág. 2 do caderno "Brasil", um artigo de Mário Magalhães comentava uma pesquisa sobre o montante absurdo de gastos públicos e privados com a segurança -57 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza e R$ 37 bilhões (R$ 19 bilhões pela iniciativa privada; R$ 18 bilhões pelos poderes públicos) foram despendidos com segurança eletrônica, vigilância, seguros, segurança pública e sistema carcerário. Se acrescentarmos a isso a situação da saúde pública e a guerra dos laboratórios farmacêuticos, mais a falta de escolas e de professores para o 1º e o 2º graus (com a Fundação Roberto Marinho assumindo a tarefa do Estado por meio dos telecursos!), perceberemos que o quadro é de apartheid social e de guerra civil tácita. Em linguagem mais precisa, essa é a forma mais devastadora assumida pelo neoliberalismo no Brasil 2000.

Reação ambígua
A matéria sobre a mendicância suscita no leitor uma reação ambígua. Como?, poderiam indagar muitos, um "flanelinha" ganha mais do que um professor de primeiro e segundo graus e o mesmo que um professor universitário iniciante? Como?, poderiam continuar, uma pedinte pode ganhar por semana mais do que uma faxineira? As indagações poderiam levar à conclusão de que a sociedade está estimulando a vadiagem e que os mendigos são privilegiados, quando comparados aos empregados. Poder-se-ia também argumentar que a má-fé dos que alugam crianças e a dos que as exploram nos trabalhos de rua deveria acarretar punições drásticas e exemplares. Em suma, pouco a pouco, passando do espanto à indignação, poderia insinuar-se na mente do leitor a idéia de que a culpa da mendicância é dos mendigos mesmo e que eles, como os narcotraficantes, os perueiros, os ambulantes e os assaltantes, formam a corja responsável pela violência nas cidades, e que, indefesos, os cidadãos não têm outro caminho senão os gastos privados com segurança.

Sem direitos
No entanto, prosseguindo em sua meditação, o leitor poderia pensar que o "flanelinha" começou a trabalhar aos cinco anos de idade, que trabalha de domingo a domingo, não tem seguro-desemprego, férias, aposentadoria, décimo-terceiro e que, se ficar doente, não ganha um único tostão. Poderia também pensar que, se as criancinhas tivessem creches e as crianças maiores tivessem escola com merenda, banho e material escolar, dificilmente as mães as alugariam para esmolar. E que, se a mãe ou o pai tivessem um emprego decente e um salário decente, a criança não trabalharia nas madrugadas e não seria o "mendigo 24 horas". Talvez pudesse pensar que, se há controvérsia sobre o valor de US$ 100 para o salário mínimo, então uma secretária, ganhando menos do que isso, acabaria mesmo indo para a mendicância. Se chegasse a essa conclusão, talvez fosse levado a uma constatação: o neoliberalismo, ao desmantelar o sistema produtivo e uma economia com ênfase no mercado interno, destruiu as formas de organização, luta e participação política dos trabalhadores e, ao privatizar os direitos sociais, sob a forma de serviços prestados por terceiros ou pela iniciativa privada, despolitizou a sociedade civil e deslocou para a mendicância e a delinquência milhões de pessoas que, outrora, seriam ativistas de movimentos sindicais, sociais e populares, lutando e conquistando direitos econômicos, sociais, políticos e culturais. Pensaria, então, que a fome de uns e o medo de outros, o crime organizado, de um lado, e a desmontagem do Estado, de outro, tecem a violência, a insegurança e o horror contemporâneos.

Cegos à tragédia
Essa constatação talvez pudesse levar o leitor a uma interrogação: partindo-se do princípio de que o presidente da República e seus ministros não são monstros morais, que projeto político possuem que lhes permite ficar alheios ao que se passa no país? Que compromissos, alianças e submissões os deixam cegos para a tragédia de milhões de pessoas, particularmente crianças e adolescentes, despojados de todos os direitos e percebidos (com ou sem razão) como ameaça e perigo para os demais?
E, sobretudo, considerando-se o que se passa na Áustria, o leitor poderia indagar se a omissão, a cegueira deliberada e o desprezo pela massa dos deserdados não é a semeadura para a colheita do fruto neonazista.


Marilena Chaui é professora do departamento de filosofia da USP, autora de "A Nervura do Real" (Companhia das Letras) e "Cultura e Democracia" (Cortez), entre outros livros. Ela escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C", da Folha.


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