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+ brasil 500 d.C.
Ao privatizar direitos sociais, o neoliberalismo jogou milhões de brasileiros
na mendicância e delinquência
Quem semeia ventos colhe tempestades
Marilena Chaui
Nos anos 70, quando estava em
voga o misticismo oriental, um
conhecido meu embarcou para
a Índia, onde pretendia ficar
durante um ano, aprendendo formas de
meditação e de espiritualismo. Três meses depois, encontrei-o e, espantada, perguntei: "Como? Já de volta? O que houve?". A resposta foi sombria: "Voltei
quando me flagrei ficando contente porque o mendigo não tinha pernas e não
podia vir atrás de mim". Ao descobrir-se
desumanizado e beirando a barbárie,
meu amigo místico regressou da Índia a
um país no qual a miséria ainda não havia acampado nas ruas.
Não o tenho visto nos últimos anos e fico me perguntando para onde ele terá
ido, pois a miséria está acampada não só
nas ruas do Brasil, mas nas do mundo inteiro. Tenho me perguntado também se,
como os outros, ele se anestesiou e passou a não ver os miseráveis, integrando-os como parte da paisagem urbana: semáforos, veículos, prédios, árvores, buracos, entulho, lixo e... mendigos. Enquanto Malan e o FMI disputam se pode
ou não haver um "fundo para a pobreza", o Congresso polemiza se o salário
mínimo pode ou não ser de US$ 100 e os
órgãos públicos de assistência social procuram explicar os efeitos da mendicância sobre o futuro das crianças, os demais
cidadãos oscilam entre a exasperação, a
reclamação, a culpa e a impotência.
Reprodução da miséria
Semanas
atrás, a Folha (13/2) publicou uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que revela
ser o Brasil o terceiro país do mundo em
índice de desemprego. Uma longa matéria foi dedicada à "profissionalização" da
miséria na cidade de São Paulo e, na pág.
2 do caderno "Brasil", um artigo de Mário Magalhães comentava uma pesquisa
sobre o montante absurdo de gastos públicos e privados com a segurança -57
milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza e R$ 37 bilhões (R$ 19 bilhões pela iniciativa privada; R$ 18 bilhões pelos poderes públicos) foram despendidos com segurança eletrônica, vigilância, seguros, segurança pública e
sistema carcerário.
Se acrescentarmos a isso a situação da
saúde pública e a guerra dos laboratórios
farmacêuticos, mais a falta de escolas e
de professores para o 1º e o 2º graus (com
a Fundação Roberto Marinho assumindo a tarefa do Estado por meio dos telecursos!), perceberemos que o quadro é
de apartheid social e de guerra civil tácita. Em linguagem mais precisa, essa é a
forma mais devastadora assumida pelo
neoliberalismo no Brasil 2000.
Reação ambígua
A matéria sobre a
mendicância suscita no leitor uma reação ambígua. Como?, poderiam indagar
muitos, um "flanelinha" ganha mais do
que um professor de primeiro e segundo
graus e o mesmo que um professor universitário iniciante? Como?, poderiam
continuar, uma pedinte pode ganhar por
semana mais do que uma faxineira? As
indagações poderiam levar à conclusão
de que a sociedade está estimulando a
vadiagem e que os mendigos são privilegiados, quando comparados aos empregados. Poder-se-ia também argumentar
que a má-fé dos que alugam crianças e a
dos que as exploram nos trabalhos de
rua deveria acarretar punições drásticas
e exemplares.
Em suma, pouco a pouco, passando do
espanto à indignação, poderia insinuar-se na mente do leitor a idéia de que a culpa da mendicância é dos mendigos mesmo e que eles, como os narcotraficantes,
os perueiros, os ambulantes e os assaltantes, formam a corja responsável pela
violência nas cidades, e que, indefesos, os
cidadãos não têm outro caminho senão
os gastos privados com segurança.
Sem direitos
No entanto, prosseguindo em sua meditação, o leitor poderia pensar que o "flanelinha" começou a
trabalhar aos cinco anos de idade, que
trabalha de domingo a domingo, não
tem seguro-desemprego, férias, aposentadoria, décimo-terceiro e que, se ficar
doente, não ganha um único tostão.
Poderia também pensar que, se as
criancinhas tivessem creches e as crianças maiores tivessem escola com merenda, banho e material escolar, dificilmente
as mães as alugariam para esmolar. E
que, se a mãe ou o pai tivessem um emprego decente e um salário decente, a
criança não trabalharia nas madrugadas
e não seria o "mendigo 24 horas". Talvez
pudesse pensar que, se há controvérsia
sobre o valor de US$ 100 para o salário
mínimo, então uma secretária, ganhando menos do que isso, acabaria mesmo
indo para a mendicância.
Se chegasse a essa conclusão, talvez
fosse levado a uma constatação: o neoliberalismo, ao desmantelar o sistema
produtivo e uma economia com ênfase
no mercado interno, destruiu as formas
de organização, luta e participação política dos trabalhadores e, ao privatizar os
direitos sociais, sob a forma de serviços
prestados por terceiros ou pela iniciativa
privada, despolitizou a sociedade civil e
deslocou para a mendicância e a delinquência milhões de pessoas que, outrora,
seriam ativistas de movimentos sindicais, sociais e populares, lutando e conquistando direitos econômicos, sociais,
políticos e culturais. Pensaria, então, que
a fome de uns e o medo de outros, o crime organizado, de um lado, e a desmontagem do Estado, de outro, tecem a violência, a insegurança e o horror contemporâneos.
Cegos à tragédia
Essa constatação
talvez pudesse levar o leitor a uma interrogação: partindo-se do princípio de que
o presidente da República e seus ministros não são monstros morais, que projeto político possuem que lhes permite ficar alheios ao que se passa no país? Que
compromissos, alianças e submissões os
deixam cegos para a tragédia de milhões
de pessoas, particularmente crianças e
adolescentes, despojados de todos os direitos e percebidos (com ou sem razão)
como ameaça e perigo para os demais?
E, sobretudo, considerando-se o que se
passa na Áustria, o leitor poderia indagar
se a omissão, a cegueira deliberada e o
desprezo pela massa dos deserdados não
é a semeadura para a colheita do fruto
neonazista.
Marilena Chaui é professora do departamento de filosofia da USP, autora de "A Nervura do Real" (Companhia das Letras) e "Cultura e Democracia" (Cortez), entre outros livros. Ela escreve mensalmente na seção
"Brasil 500 d.C", da Folha.
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