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O pesquisador da música popular José Ramos Tinhorão fala de seu novo livro, que aborda a imprensa carnavalesca no Brasil durante os séculos 19 e 20
Carnaval em preto-e-branco
Walter Garcia
especial para a Folha
AImprensa Carnavalesca no Brasil", novo livro
de José Ramos Tinhorão, tem lançamento previsto para o final deste mês pela editora Hedra.
Trata-se de um minucioso estudo sobre essa
original criação brasileira, que vigorou entre 1833 e
1959, durante os períodos de Carnaval, convocando foliões por meio de seus textos cômicos. O livro é resultado de três anos de pesquisa, e com ele o autor obteve, no
ano passado, o título de mestre em História Social pela
Universidade de São Paulo.
"Aos 71 anos, concluí um mestrado interesseiro. Precisava da bolsa de estudos para pesquisar em várias cidades brasileiras. No Recife, por exemplo, tive de contratar um fotógrafo, pois a biblioteca de lá não dispõe de
microfilmes dos jornais. E mesmo a conta das cópias
dos microfilmes da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, foi alta, pelo volume de material de que precisei.
No fim, acabei gastando mais dinheiro do que ganhei."
O mais polêmico historiador da nossa música popular, Tinhorão já sustentava "reacionariamente a defesa
da cultura que melhor representa o estágio de semi-analfabetismo das camadas mais baixas da população"
no seu primeiro livro sobre o tema, em 1966.
E ainda hoje mantém essa posição: "Quando chega o
fim-de-semana, o indivíduo das classes mais pobres,
sobretudo no mundo rural, precisa de música e dança
para se divertir. Como não tem quem faça para ele, ele
mesmo faz. Mas você pode ter certeza de que esse indivíduo não encara isso do mesmo modo que alguém da
classe média. Para as classes mais pobres, a cultura corresponde a uma resposta a uma necessidade, não a uma
mercadoria".
Em entrevista concedida à Folha, o historiador comenta passagens do novo livro e critica, sempre de modo contundente, o Carnaval brasileiro.
"A Imprensa Carnavalesca no Brasil" aponta várias coincidências entre o Carnaval brasileiro que vai da era Mauá
(1850) à era JK (1960) e o período europeu entre os séculos 10 e 16, que vão dos costumes à linguagem dos foliões. Seria possível imaginar, então, que o Brasil viveu
uma Idade Média cultural tardia em relação à Europa?
Engraçado, esse paralelismo não tinha me ocorrido.
Há uma repetição, sim, talvez exatamente por causa
de o Brasil tardiamente ter sofrido um processo de
estruturação social urbana, num período mais reduzido de tempo do que já tinha acontecido na Europa,
onde, a partir do século 11, já existia vida urbana como se entende hoje, embora ainda sem classes.
É quando os senhores regionais concordam em
permitir que se passe por dentro de suas terras,
quando começam a aparecer as estradas, quando se
tomam providências contra os bandoleiros para garantir as trocas nas feiras.
É nessas feiras que vão surgir os primeiros artistas
urbanos, os pelotiqueiros, os cantadores, os cegos
que pedem esmolas cantando. Então, de certa forma, realmente é uma repetição. Mas eu não colocaria em termos de paralelismo, porque senão você começa a levantar -como muito já se fez na discussão
sobre o folclore- a sobrevivência dos fenômenos,
essas coisas um pouco fantásticas.
Por exemplo, na própria defesa da dissertação, o
professor Nicolau Sevcenko tocou nessa questão,
contando ter visto um cara brincar no Carnaval, vestido de mulher, levantando a saia para mostrar o
membro, enquanto nas festas dionisíacas o sujeito
levava o "phallos". E eu disse:"Sim, mas com a diferença de que um estava dentro do contexto do "phallos" como símbolo da fertilidade, e o outro levantou
a saia e mostrou seu falo de pura safadeza, para escandalizar as moças que estavam assistindo, pois esse cara não tinha a consciência do sagrado".
Sua pesquisa demonstra que a coexistência entre a fala
popular e a fala das camadas médias e superiores é um
"fenômeno histórico permanente" desde pelo menos o
século 10. As "produções globalizantes fabricadas pela
indústria cultural na área do lazer", como você diz no livro, não fazem parte hoje desse mesmo processo?
Sim, mas só que hoje é um processo comandado, ele
não é mais espontâneo, e essa diferença é essencial. A
gente não sabe ainda onde isso vai dar. A padronização da linguagem hoje obedece ao inglês, a língua
dominante -inclusive na Internet. Parece que as
línguas nacionais, entre elas as neolatinas, com as variedades regionais, estão se reaglutinando por causa
de um jargão comandado pela indústria de massa.
E o enriquecimento do ser humano que se traduzia
na linguagem, por exemplo, nas várias formas verbais, vai sendo reduzido. Basta ler os jornais para você ver
que os nossos colegas jornalistas não
conhecem tempos verbais compostos, reduzem tudo ao presente e ao
passado perfeito.
E a imprensa carnavalesca também
prova isso, porque ela foi se tornando
uma fórmula. Já em 1910 surgem jornais desse tipo,
no Rio, em Minas, em Pernambuco, utilizando a linguagem carnavalesca para vender produtos.
Hoje em dia o Carnaval está cercado pela publicidade...
É evidente, as escolas de samba estão dando emprego com carteira assinada. Quando termina o Carnaval, o sujeito que trabalha no barracão desmonta os
carros do desfile para aproveitar o material e logo começa uma nova montagem, porque o carnavalesco,
que se formou em belas-artes, já escolheu o enredo
para o ano seguinte.
Há uma atividade permanente em torno do que
era uma diversão espontânea, uma resposta a uma
necessidade lúdica, mas que hoje virou uma indústria. Isso descaracteriza o lazer numa parte essencial.
O que era um desfile carnavalesco? Um momento
em que as pessoas iam para a rua se divertir. Hoje
elas vão para representar um papel dentro de um
enredo bolado pelo carnavalesco.
Embora a cara das pessoas seja mostrada na televisão sorrindo, há um fiscal de ala que mantém a formação e que não deixa a escola se atrasar. O povo se
torna figurante. Existem até pessoas que investem
R$ 300 para desfilar imediatamente após o trio elétrico. O sujeito usa o que, na Bahia, se chama de
mortalha, aquela fantasia tradicional que na verdade
é só um pano sobre o corpo.
Ainda que ele se divirta, mudou o sentido da diversão, o que é uma traição ao espírito do Carnaval, que
tem uma origem religiosa de desforra da severidade
com que você era obrigado a enfrentar sua rotina. O
Carnaval era a inversão da rotina, hoje a indústria
dominou e disciplinou essa inversão. No fim das
contas, não há mais inversão.
Você modifica a tradução consagrada da frase latina "ridendo castigat mores", propondo "corrige os costumes
rindo" em vez de "rindo, castiga os costumes". E observa
a crítica bem-comportada que nossa burguesia mantinha na imprensa carnavalesca, a partir da adoção dessa
frase como lema.
Sim, o sentido latino era de que, se você risse de alguma coisa, ela se modificaria pelo ridículo. Se você
traduz a frase para o português com o sentido de castigar, o castigo está ligado a uma punição, e não havia isso. Na verdade, a burguesia que produziu nossa
imprensa carnavalesca era muito conservadora. Por
isso ela usou o princípio latino, e, do jeito que ele é
traduzido, dá a impressão de que, quando se usa o
humor, se está usando uma forma cáustica para corroer o sistema. Não é nada disso. Para mudar o sistema, para mudar os costumes, só pela força bruta, fazendo-se uma revolução.
Mas já houve, em algum tempo, espaço
para uma crítica contundente no Carnaval
-hoje em dia isso ainda é possível?
Às vezes, pelo tipo de graça que se faz,
talvez as pessoas sejam levadas a pensar. Mas também, se você fizer uma
coisa muito agressiva, pode saber que
o guarda vai reprimir.
Eu escrevi, durante o regime militar, que não existia canção de protesto naquela época. Porque ou a canção realmente atingia suas finalidades, e a letra não passava pela censura, ou, se passava pela censura, não era canção de protesto. A prova é que a única que poderia realmente ser subversiva, "Caminhando", do Geraldo Vandré, foi proibida.
Porque dizia que o cidadão civil e o fardado eram irmãos. E isso era realmente subversivo do ponto de
vista do regime militar, que se baseava na hierarquia.
Acho que hoje a verdadeira subversão é o sujeito
sair fantasiado na rua, independentemente de escola, de bloco, de trio, revivendo essa tradição de figuras esculhambadas, o cara sair tomando cerveja
num penico, fingindo que é xixi. Sobre escola de
samba, eu já escrevi às vésperas do quarto centenário do Rio de Janeiro: "As escolas de samba caminham para a morte com enterro de gala da arte erudita". E eu acho que está assim, confirmado.
O que você pensa dos atuais humoristas que procuram
fazer crítica política e social?
Acho que o humor sempre incomoda, embora não
seja revolucionário. Tenho a impressão de que, se
dessem para o Fernando Henrique Cardoso ler as
colunas do José Simão, as brincadeiras da revista
"Bundas", ele se sentiria realmente incomodado. O
que não impede que o governo dele continue, e que
ele continue vendendo tudo para o capital internacional.
Em seu livro, diz-se que, no século 18, Goethe falava que
"o Carnaval de Roma não é festa dada ao povo, mas que o
povo oferece a si mesmo". Essa frase se aplicaria hoje ao
Brasil?
De uma forma muito irônica, o Carnaval no Brasil
hoje, parafraseando Goethe, é uma festa que o povo
ofereceu ao poder para que o poder pudesse prevalecer sobre ele.
É famosa a observação de Louis Couty, que nos visitou
durante o segundo reinado, de que "o Brasil é um país
sem povo". Naquela época, esse vácuo era habitado por
um enorme contingente de indivíduos livres e pobres,
sem trabalho, vivendo entre os senhores e os escravos.
Hoje em dia, quem é afinal o povo brasileiro?
Olhando do alto de um prédio, é todo mundo que está passando lá embaixo. De um ponto de vista sociológico, numa sociedade de classes, a massa do povo
são as maiorias, e as maiorias são pobres, subdesenvolvidas, não ouvem João Gilberto, não gostam de
bossa nova. O povo ganha salário mínimo.
Quando surgiu aquela frase, depois dos hippies,
"não confio em ninguém com mais de 30 anos", que
transformava o conceito de luta de classes em luta de
gerações, eu escrevi no "Pasquim": "Não confio em
ninguém com mais de 30 salários mínimos".
A Imprensa Carnavalesca no Brasil
236 págs., R$ 19,00
de José Ramos Tinhorão. Ed.
Hedra (r. Fradique Coutinho,
1.139, 1º andar, CEP 05416-011,
SP, tel. 011/ 867-8304).
Walter Garcia é músico, mestre em literatura brasileira pela USP e autor
do livro "Bim Bom - A Contradição sem Conflitos de João Gilberto" (Paz e
Terra).
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