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Fenómenos da Casa Grande
Cláudio W. Abramo
especial para a Folha
Uma das piores pragas do ambiente intelectual brasileiro é a indisponibilidade
de participar de debates públicos. Em
consonância com a norma relativista
predominante, o intelectual brasileiro
médio transforma em privado o que é
público. Considera que, por ser detentor
de um título, de um cargo, de uma reputação, por ter escrito um livro ou ter sido
citado ou entrevistado ou resenhado pelo colega de departamento ou de ofício
(ao qual retribui na mesma moeda, e assim sucessivamente, construindo-se desse modo muitas reputações), situa-se
acima do escrutínio público. É um dos
modos pelo qual a Casa Grande mantém
a Senzala sob controle.
Uma das consequências de semelhante
comportamento é que, para esse tipo de
intelectual, as opiniões ou informações
expressas são, por princípio, consideradas infensas a crítica. Quando, contrariamente aos costumes aprovados pela confraria, alguém contesta aquilo que alguma eminência produziu, as atitudes
usuais são o desprezo e a indignação ressentida.
O primeiro caso se manifesta na forma
do silêncio. Vê-se isso acontecer todos os
dias. É claro que se trata de contradição
direta com o papel que se espera de um
intelectual; em qualquer lugar civilizado,
desqualificaria quem o pratica.
A segunda rota, a da indignação, foi a
escolhida por Marina Baird Ferreira e
Margarida dos Anjos, coordenadoras do
dicionário "Aurélio", publicadas neste
caderno Mais! no dia 12 de fevereiro em
resposta a artigo de minha lavra ("Dicionários, que horror", 23/ 1) sobre a ruindade de dois dicionários brasileiros (o
outro foi o "Michaelis" eletrônico). Elas
lançaram mão de um expediente muito
popular entre nossos intelectuais: o argumento "ad hominem", com o qual
procuram desqualificar o oponente por
conta de defeitos que lhe são pespegados
arbitrariamente. Fazem-se de ofendidas,
abrangem na pretensa ofensa toda a categoria dos lexicógrafos, vivos e mortos,
apresentam o argumento do oponente
de forma distorcida, "revelam" informações já presentes no texto ao qual pretensamente replicam, "esclarecem" o que já
estava dito, afirmam que o interlocutor
não sabe ler e lhe atribuem uma ignorância maior do que a que seria dedutível do
que leram; e, é evidente, eximem-se de
abordar o assunto central.
Não cansarei o leitor com uma repetição do que foi escrito então e não apontarei as distorções puntiformes praticadas de forma sistemática por Baird Ferreira e dos Anjos. Em vez disso, remeto
ao artigo original (encontrável em http://sites.uol.com.br/cwabramo) e à réplica
das duas responsáveis pelo "Aurélio"
(http://www.uol.com.br/fsp/mais/fs1302200011.htm). O leitor que os compare e julgue por si.
Passo rapidamente pelos determinantes
mercadológicos que governam a operação "Dicionário Aurélio". Por mais que
Baird Ferreira e dos Anjos declarem ser
outra sua motivação, a estrutura editorial
da operação que coordenam e a estratégia
de sua promoção as desmentem. Afirmar,
como fazem, que dicionários não são, no
Brasil, considerados pedras filosofais (e,
entre estes, o "Aurélio" de forma proeminente) ou que as editoras que os publicam
não puxam por esse lado é confiar demais
na ingenuidade do público.
O que merece lembrança é o ponto central de meu artigo. O ponto, exemplificado
por diversas instâncias, é que os dicionários comentados não são compilados no
âmbito de nenhuma espécie de metodologia que se possa discernir: baseiam-se
na acumulação de palavras recolhidas
segundo processo não explicitado, no
âmbito de práticas fundadas na autoridade de princípios situados fora da responsabilidade dos compiladores, que
nesse passo lavam as mãos. Mas como
Baird Ferreira e dos Anjos não se dispuseram a discutir a questão, quem perdeu
foi o usuário.
Cláudio Weber Abramo é mestre em lógica e filosofia da ciência.
E-mail: cwabramo@uol.com.br.
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