São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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Fenómenos da Casa Grande

Cláudio W. Abramo
especial para a Folha

Uma das piores pragas do ambiente intelectual brasileiro é a indisponibilidade de participar de debates públicos. Em consonância com a norma relativista predominante, o intelectual brasileiro médio transforma em privado o que é público. Considera que, por ser detentor de um título, de um cargo, de uma reputação, por ter escrito um livro ou ter sido citado ou entrevistado ou resenhado pelo colega de departamento ou de ofício (ao qual retribui na mesma moeda, e assim sucessivamente, construindo-se desse modo muitas reputações), situa-se acima do escrutínio público. É um dos modos pelo qual a Casa Grande mantém a Senzala sob controle.
Uma das consequências de semelhante comportamento é que, para esse tipo de intelectual, as opiniões ou informações expressas são, por princípio, consideradas infensas a crítica. Quando, contrariamente aos costumes aprovados pela confraria, alguém contesta aquilo que alguma eminência produziu, as atitudes usuais são o desprezo e a indignação ressentida.
O primeiro caso se manifesta na forma do silêncio. Vê-se isso acontecer todos os dias. É claro que se trata de contradição direta com o papel que se espera de um intelectual; em qualquer lugar civilizado, desqualificaria quem o pratica.
A segunda rota, a da indignação, foi a escolhida por Marina Baird Ferreira e Margarida dos Anjos, coordenadoras do dicionário "Aurélio", publicadas neste caderno Mais! no dia 12 de fevereiro em resposta a artigo de minha lavra ("Dicionários, que horror", 23/ 1) sobre a ruindade de dois dicionários brasileiros (o outro foi o "Michaelis" eletrônico). Elas lançaram mão de um expediente muito popular entre nossos intelectuais: o argumento "ad hominem", com o qual procuram desqualificar o oponente por conta de defeitos que lhe são pespegados arbitrariamente. Fazem-se de ofendidas, abrangem na pretensa ofensa toda a categoria dos lexicógrafos, vivos e mortos, apresentam o argumento do oponente de forma distorcida, "revelam" informações já presentes no texto ao qual pretensamente replicam, "esclarecem" o que já estava dito, afirmam que o interlocutor não sabe ler e lhe atribuem uma ignorância maior do que a que seria dedutível do que leram; e, é evidente, eximem-se de abordar o assunto central.
Não cansarei o leitor com uma repetição do que foi escrito então e não apontarei as distorções puntiformes praticadas de forma sistemática por Baird Ferreira e dos Anjos. Em vez disso, remeto ao artigo original (encontrável em http://sites.uol.com.br/cwabramo) e à réplica das duas responsáveis pelo "Aurélio" (http://www.uol.com.br/fsp/mais/fs1302200011.htm). O leitor que os compare e julgue por si.
Passo rapidamente pelos determinantes mercadológicos que governam a operação "Dicionário Aurélio". Por mais que Baird Ferreira e dos Anjos declarem ser outra sua motivação, a estrutura editorial da operação que coordenam e a estratégia de sua promoção as desmentem. Afirmar, como fazem, que dicionários não são, no Brasil, considerados pedras filosofais (e, entre estes, o "Aurélio" de forma proeminente) ou que as editoras que os publicam não puxam por esse lado é confiar demais na ingenuidade do público.
O que merece lembrança é o ponto central de meu artigo. O ponto, exemplificado por diversas instâncias, é que os dicionários comentados não são compilados no âmbito de nenhuma espécie de metodologia que se possa discernir: baseiam-se na acumulação de palavras recolhidas segundo processo não explicitado, no âmbito de práticas fundadas na autoridade de princípios situados fora da responsabilidade dos compiladores, que nesse passo lavam as mãos. Mas como Baird Ferreira e dos Anjos não se dispuseram a discutir a questão, quem perdeu foi o usuário.


Cláudio Weber Abramo é mestre em lógica e filosofia da ciência.
E-mail: cwabramo@uol.com.br.


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