São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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Uma crítica inócua e o rigor dos dicionários

Paulo Geiger
especial para a Folha

De acordo com a ética jornalística e com os regulamentos do "Novo Manual da Redação" da Folha, foi-nos dado o direito de publicar este segundo artigo de resposta ao ataque do sr. Cláudio W. Abramo aos dicionários (e à própria lexicografia), sem que tenhamos lido sua tréplica, ora simultaneamente publicada. As lexicógrafas não sabem, portanto, a que responder; ademais, julgam inútil fazer uso desse espaço como arena de um debate sobre os diagnósticos infundados e inócuos do sr. Abramo -que revelam desconhecimento dos princípios que norteiam a lexicografia e desprezo por conceitos e técnicas básicas de elaboração do dicionário- e preferem que o utilizemos em benefício do público leitor, com esclarecimentos sobre alguns aspectos relevantes para a compreensão da importância, da função e dos métodos dos dicionários e da lexicografia.
O que é (ou deve ser) um dicionário? O acervo de palavras de uma língua, em que se registram os seus significados, em suas várias nuanças e variações de uso. A língua é um código de comunicação social, o mais instintivo, amplo, versátil e significante que há: é o registro da memória das coisas, da construção da vida social, da cultura, da ciência e da tecnologia e, mais que tudo, é o código da transmissão e recepção de informações, pensamentos e idéias.
Na verdade, a língua é muito mais complexa que um simples código. Mas o lexicógrafo, para realizar sua tarefa, deve metodologicamente pensar na língua como tal. Para que haja comunicação e transmissão de idéias é preciso que transmissor e receptor -que nem sempre vivem no mesmo contexto regional, temporal, social ou cultural- tenham a mesma chave, que cada palavra tenha para um e outro os mesmos significados possíveis. O dicionário é o lugar comum desses elementos básicos de nossos pensamentos e idéias: as palavras. Dicionários são, pois, "livros-ferramenta", e seu valor está na capacidade de atender aos usos específicos para os quais são concebidos.
E como se constrói um dicionário? Para que seja realmente uma chave confiável da nossa língua, ele deve, antes de tudo, reunir o máximo de palavras relevantes em uso e o máximo de significados possíveis para cada palavra. Por isso, um dos conceitos mais importantes é o da abrangência. A abrangência não se mede apenas pelo número de palavras que constituem o acervo, mas, principalmente, pela cobertura ampla de todos os significados de cada termo e pelas informações adicionais que facilitarão a compreensão das regras e dos usos nos diferentes contextos.
Idealmente, então, quanto mais unidades semânticas (vocábulos e locuções) e mais acepções, mais abrangente, e melhor, o dicionário. Mas, como toda ferramenta, o dicionário deve ser acessível aos usuários. E uma abrangência não programada irá refletir-se no custo e, portanto, no preço.
Assim, a primeira missão do lexicógrafo é conceber o modelo conceitual de seu dicionário, em seus vários elementos: o público a que se destina, o tamanho, a área de cobertura, o modelo de definição que atenda aos requisitos de concisão e clareza, a estrutura dos verbetes, o ponto de equilíbrio entre número de vocábulos, definições e informações adicionais de forma a aproveitar ao máximo o espaço com dados relevantes e úteis naquele determinado contexto etc. etc.
E o que são "informações adicionais"? Para ser eficiente, o dicionário deve fornecer, além dos significados, o maior número possível de informações úteis sobre a palavra: origem e formação (etimologia); elucidação de pronúncia; categorias gramaticais e regências verbais; exemplos de uso no contexto de frases; informações gramaticais; sinônimos, e muito mais.
O dicionário não é construído, pois, como um amontoamento aleatório (ou randômico) do máximo de informações que se possa reunir, mas como o resultado de um planejamento cuidadoso, a partir de uma busca laboriosa do ponto de equilíbrio entre todos os fatores citados. Essa busca é permanente, tal como a evolução da própria língua e de seus códigos, e passa, necessariamente, por dois crivos fundamentais: o do critério lexicográfico na seleção de vocábulos e informações e o da técnica lexicográfica, que, ao contrário do que pensam alguns críticos improvisados, não visa a atender, apenas, às intuições do consulente, mas é regida por regras e disciplinas próprias.
Um bom dicionário não é, pois, construção que se possa facilmente subverter com tentativas de demolição. O "Aurélio" foi e continua a ser planejado e realizado de acordo com regras, conceitos, métodos, critérios e técnicas cuidadosamente pensados e aplicados. Num contínuo esforço de aprimorá-lo, os lexicógrafos que nele trabalham, sugerindo a linha traçada pelo autor, mantêm-se em sintonia com os fatos novos da língua, em evolução ininterrupta. E a colaboração de leitores tem sido insumo constante na correção de possíveis erros e omissões, na busca de uma perfeição improvável, mas sempre desejada.


Paulo Geiger é editor das obras de referência da Nova Fronteira, que edita o "Dicionário Aurélio Século 21".


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