São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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Para o autor de "A Segunda Morte de Ramón Mercader", militância política e literatura não são atividades compatíveis, embora toda escrita exija engajamento
O compromisso do escritor

Betty Milan
especial para a Folha

O escritor Jorge Semprun nasceu em Madri, em 1923. Durante a Guerra Civil Espanhola sua família se exilou na França, onde ele estudou filosofia. Com a ocupação de Paris pelos nazistas, Semprun aderiu aos 18 anos à Resistência e foi deportado para o campo de Buchenwald. Voltou à capital francesa em 45, com o fim da guerra. De 53 a 62, militou ativamente no Partido Comunista Espanhol, trabalhando contra o regime franquista. No entanto, suas críticas ao PC soviético lhe valeram a expulsão do PCE em 1964.
A partir daí, dedicou-se inteiramente ao trabalho de roteirista e de escritor. Quase todos os seus livros se situam entre o relato autobiográfico, o ensaio político e a ficção -como "A Grande Viagem", "A Escrita ou a Vida" e "A Segunda Morte de Ramón Mercader". Em 1988, voltou à política como ministro da Cultura do governo de Felipe González, cargo que ocupou até 91. Hoje ele vive na França, onde concedeu esta entrevista à Folha.

O sr. foi deportado. O que lhe permitiu sobreviver à deportação?
Primeiramente a sorte. Depois, o fato de ser muito jovem e ter boa saúde. Foi sorte ter ido para um campo como Buchenwald, onde os espanhóis comunistas, como eu, eram bem considerados.
O sr. nasceu na Espanha e escreve também em francês. O sr. escolheu a língua francesa ou foi escolhido por ela?
Às vezes tenho o sentimento de que escolhi, outras de que fui escolhido. Às vezes me rebelo contra o fato de escrever em francês e daí escrevo em espanhol, para ter o sentimento de não ter perdido a língua materna. Isso não significa que não possa ter o sentimento de que a língua francesa é materna. Em suma, sou esquizofrênico, vivo entre duas línguas.
Há alguma relação entre o romance autobiográfico, gênero que o sr. inventou, e a experiência da deportação?
O gênero já existia, mas como o acaso fez que eu tivesse uma vida muito romanesca, não precisei inventar muito para escrever os meus romances. Isso pode ser um obstáculo. Gosto dos romances em que tudo é inventado, mas tenho dificuldade em escrevê-los porque tenho muito o que contar sobre mim. Gostaria de dizer como Boris Vian que tudo é verdadeiro porque inventei tudo.
Por que esse gênero floresceu neste fim de século?
Talvez porque o século tenha sido romanesco e tenha ultrapassado a ficção. A época faz isso. Em épocas mais amenas, as pessoas certamente terão vontade de contar histórias imaginadas.
O que caracteriza a estrutura narrativa de um romance autobiográfico?
O fato de se organizar em torno de alguns momentos-chave que são romanescos ou cinematográficos. A gente reconstrói a vida em torno desses momentos. Eu, por exemplo, a reconstruo em torno do momento em que fui preso pela Gestapo, em que cheguei à França aos 13 anos, exilado...
Quando o sr. recebeu o prêmio pela "Grande Viagem", escreveu: "Com isso eu mudo de vida". Por que essa declaração?
Quando voltei da deportação em 1945, tentei escrever uma elaboração literária da experiência no campo de concentração, e não consegui. Isso porque, escrevendo, eu rememorava a morte e não conseguia me distanciar da experiência trágica do campo. Parei de escrever o livro e me lancei na política espanhola, na clandestinidade. Só voltei para a escrita quando deixei de acreditar na minha ação política, 15 anos depois, e por isso declarei que mudava de vida. Fui para a política porque não podia escrever e voltei para a escrita quando a política se tornou impossível. As duas atividades nunca foram compatíveis.
O sr. diz numa das suas entrevistas que o século 20 é a gestação do sonho de um paraíso na Terra e que o sonho não é uma produção de intelectual, mas da miséria do mundo. A experiência leninista fracassou. Como fica o sonho agora?
Sei que a tentativa comunista de mudar o mundo foi um fracasso. Mas o fato de constatar o fracasso não me impede de pensar que esta sociedade é injusta e é preciso modificá-la. Mas não sei como...
A paixão pela política pode ser reinventada?
Vou morrer antes, mas penso que os jovens de hoje terão que reinventá-la. É inevitável voltar a ela, ainda que seja se opondo aos políticos, que só têm em vista o poder. Uma sociedade democrática não pode funcionar sem uma renovação da política.
O sr. gosta de citar uma das máximas de Fitzgerald: "Seria preciso saber que não há esperança de mudar as coisas e, no entanto, estar decidido a fazê-lo". Qual o papel da literatura nisso?
O escritor não pode mudar as coisas escrevendo, mas ele pode esclarecer, dar uma visão nova da realidade. Escrever é correr riscos, significa se engajar.


Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Século" (Record), entre outros.


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