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Ponto de Fuga
O mesmo e o outro
Os filmes de Clint Eastwood opõem o discernimento pessoal às autoridades constituídas corruptas, indignas ou ausentes, como a polícia em "Gran Torino"
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
O vulto lacônico, esguio e
alto, desloca-se com
lentidão calculada. O
olhar, inquisidor ou fulminante, seguro de si, exprime desprezo ou ironia. Era assim
Clint Eastwood em 1964, lançado à celebridade internacional por Sergio Leone no filme
"Por um Punhado de Dólares".
Mais de 40 anos depois, os
mesmos traços caracterizam
Walt Kovalski, o herói de
"Gran Torino", filme que Eastwood interpreta e dirige aos 78
anos.
Assistimos, porém, a uma
fossilização. Os passos vagarosos, agora difíceis, tendem ao
imobilismo. A voz é rouca; as
palavras são substituídas por
grunhidos ásperos, guturais: o
laconismo de antes regride para uma animalidade primitiva.
Os cabelos raros, a pele fina
acentuam as formas do rosto
em planos secos, riscados pelas
rugas.
Esse outro, o velho em sua
metamorfose final, contém o
mesmo jovem de antes.
Mas é preciso distinguir. Joe,
Monco, Blondie, nos western
spaghetti de Sergio Leone; o
inspetor Callahan, em "Dirty
Harry" ("Perseguidor Implacável"), de Don Siegel, vividos por
Eastwood, parecem-se muito
com os protagonistas inventados pelo próprio Eastwood nos
filmes que dirigiu.
No entanto, semelhança não
significa identidade.
Os heróis que Eastwood
criou e, na maioria das vezes,
também interpretou, pertencem à sequência de uma fabulosa saga.
Nela, como que regidos pela
metempsicose, cada filme é
uma vida, cada herói, uma
reencarnação. O múltiplo concentra-se num único, que ressurge entrelaçando uma rede
mais e mais complexa de interrogações sobre a ética, a justiça,
as afinidades entre os seres.
Carrega um humanismo desiludido e, no entanto, prenhe
de esperança.
Balas
"Não há nada errado em atirar, contanto que seja na pessoa
certa." A frase é de Dirty Harry
em "Magnum 44".
Não se pode identificar aquele violento policial com quaisquer dos heróis criados por
Eastwood. Muito menos o Walt
Kovalski, de "Gran Torino",
apontado várias vezes como
uma ressurreição envelhecida
do inspetor Callahan.
Morte e violência são levadas
a sério por Eastwood. Atos de
exceção, elas irrompem no destino de cada um, alterando seu
caminho. Kovalski busca e encontra sentido para a morte.
Quando a câmera o mostra
de braços abertos, aflora a alusão cristã. Não ao Cristo Deus,
mas a um Cristo humano e, sobretudo, ético.
Utopias
O carro de Kovalski, o soberbo Gran Torino de 1972, permanece tão brilhante quanto os
ideais daqueles tempos, que
Eastwood nunca abandonou.
Seus filmes opõem sempre
discernimento pessoal às autoridades constituídas corruptas,
indignas, ou ausentes, como a
polícia em "Gran Torino".
Afirmam afinidades eletivas,
superiores aos laços familiares
e afetos obrigatórios. Comunidades heteróclitas se formam,
em que desclassificados, "outsiders", gente de todo tipo, mal
inserida na sociedade, une-se
com lealdade e compreensão.
Amor
"Gran Torino" mostra um
bairro suburbano de Detroit,
cidade em decadência. É povoado por hmongs, comunidade vinda do Vietnã. Foram aliados dos EUA e obrigados a deixar a pátria depois da guerra.
Seus costumes são estranhos.
Kowalski, único americano
que sobrou na rua, veterano da
Guerra da Coreia, é solitário e
deslocado no mundo de hoje.
Pouco importam as incompreensões, em fim de contas
superficiais: a aliança se faz entre a família asiática e o velho
mal-humorado. Formam uma
família forte e verdadeira.
Diante dela, a do sangue é apenas uma caricatura.
jorgecoli@uol.com.br
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