São Paulo, domingo, 05 de abril de 2009

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+Cultura

O turco genérico

Antropólogo americano interpreta integração de povos árabes no Brasil à luz da história econômica

OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Antigamente, a expressão "turco", para designar imigrantes e descendentes de qualquer país do Oriente Médio, tinha clara intenção pejorativa.
Hoje, membros da comunidade sírio-libanesa no Brasil acham que o tratamento chega a ser carinhoso.
Como se operou tal mudança de percepção? O antropólogo norte-americano John Tofik Karam tem uma tese: ele acha que a nova imagem do árabe brasileiro resulta do neoliberalismo. Para demonstrá-la, escreveu "Um Outro Arabesco" [trad. Denise Bottmann, Martins Editora, 344 págs., R$ 42].
A associação proposta, embora aproxime universos tão distantes quanto etnia e política econômica, não requer contorcionismos de interpretação.
A ideia central é simples: o neoliberalismo, introduzido no Brasil no início dos anos 1990 com o governo Collor, abriu o país ao comércio exterior, aumentando o intercâmbio com os ricos países árabes, que tiveram nos brasileiros de origem sírio-libanesa os grandes promotores das exportações para o Oriente.
Está aí, nos negócios, a chave da valorização da etnia.
A ideia é simples, mas não ingênua. Karam a inscreve na tradição brasileira de "democracia racial", mas apenas para lembrar que o conceito de Gilberto Freyre, dos anos de 1930, foi posteriormente questionado por documentação que identifica racismo no Brasil.
Ainda assim, feita a ressalva, o autor constata a reconstituição desse ideário nacionalista por meio da ascensão econômica dos árabes e de seus descendentes. Karam, ele próprio de origem árabe e com parentes do Brasil, argumenta que a comunidade sírio-libanesa não só se beneficiou de uma circunstância econômica, mas procurou ativamente montar o que ele chama de "projeto étnico".
O livro cita vários exemplos: a criação de clubes esportivos, a atuação de câmaras de comércio, a representação política no Poder Legislativo, a valorização da culinária e dos costumes, como a dança do ventre, e a inserção na alta sociedade.

Números inflados
Até as estatísticas da população de origem árabe teriam sido manipuladas com esse objetivo, sugere Karam.
Em cem anos, chegaram ao Brasil menos de 200 mil imigrantes, sobretudo da Síria e do Líbano, e hoje a comunidade teria pelo menos 6 milhões de pessoas, sendo que às vezes se fala em 10 milhões.
Como explicar o salto? O autor, que nunca conseguiu estatísticas primárias, desconfia que os descendentes "superestimam os números, como maneira de fortalecer sua posição dentro da nação".
Qual é o sentido de um intelectual americano se debruçar sobre esse microcosmo da sociedade brasileira? A ascendência do autor e o interesse acadêmico não explicam o principal.
Na realidade, o livro, originalmente uma tese de doutorado, tinha em vista o leitor norte-americano.
Karam queria mostrar ao público dos EUA que poderia haver outra abordagem do árabe que não as do antiterrorismo e do multiculturalismo, predominantes depois do 11 de Setembro.
Nos EUA, diz, a arabicidade foi reduzida pela retórica da segurança a uma célula culturalmente diferente e sempre ameaçadora. O que ele oferece em contraponto é o exemplo do Brasil -o outro arabesco.
Karam tem a honestidade intelectual de não dourar a pílula a favor de seu argumento. Sim, também no Brasil descendentes de árabes, sobretudo muçulmanos, sentiram os efeitos da maior vigilância que se seguiu aos ataques terroristas de 2001. Mas não na mesma escala do que aconteceu nos EUA.
Não menos importante foi uma coincidência: logo depois da queda das Torres Gêmeas em Nova York, que colocou sob suspeição a comunidade árabe nos EUA, estreou no Brasil "O Clone", cujo par romântico era formado por um brasileiro e uma jovem marroquina muçulmana. A apreensão inicial dos árabes se dissolveu nos capítulos da novela.

Estada brasileira
Karam passou um ano e meio no Brasil, entre 1999 e 2001, fazendo pesquisas de campo.
O resultado é um texto entremeado de casos saborosos, como o da agência de viagem que capitalizou a informação não confirmada da presença de Osama bin Laden na Tríplice Fronteira [entre Brasil, Argentina e Paraguai] para anunciar um passeio a Foz do Iguaçu.
Karam não tem nada de neoliberal. Ao falar em neoliberalismo, não deixa de mencionar seu "poder insidioso". Mas foi essa política econômica, de qualquer maneira, que catapultou o árabe brasileiro.
Um caso raro de efeito colateral benéfico.


OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor de "Folha Explica Roberto Carlos" (Publifolha).

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