São Paulo, domingo, 5 de abril de 1998

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LIVROS - HISTÓRIA DO BRASIL
A variedade do cárcere



Três obras abordam o período escravocrata pela ótica dos cativos
ANA LÚCIA DUARTE LANNA
especial para a Folha

Três livros recém-lançados, ao tratarem da escravidão, o fazem a partir da vivência dos cativos e marginalizados, de como eles construíram estratégias de sobrevivência, visibilidade, resistência e humanização nas suas relações com o mundo dos brancos.
Manolo Florentino e José Roberto Góes, em "A Paz das Senzalas", tomam como ponto de partida o terror e a discórdia: elementos necessários e permanentes para a reprodução da escravidão. A sociedade escravista é uma realidade beligerante, mas "o fascínio causado pelo embate cotidiano entre senhores e suas mercadorias inteligentes terminou por obscurecer os deslocamentos de uma outra refrega, de igual modo muito importante à compreensão desta peculiar sociedade... a guerra cativa" (págs. 32 e 33). Desvendar as maneiras de lidar com esses conflitos, formuladas pelos próprios escravos, e os limites impostos pelo tráfico atlântico, desestabilizando estas estratégias, são os objetivos do livro.
A família escrava, com normas e regras forjadas pelos próprios cativos, é apresentada como elemento-chave para a construção de uma "paz nas senzalas". Ela foi universal e permanente, afirmam os autores, confirmando pesquisas que nos últimos anos vêm chamando atenção para esse aspecto da escravidão no Brasil. Na obra, a família é apresentada como um conjunto de relações que pacifica e organiza a vida no cativeiro. Para isso, os autores lançam mão da interpretação antropológica de Marshall Sahlins sobre sociedades tribais, apropriando-se da noção de estado social de guerra e de laços parentais como base sólida para relacionamentos pacíficos.
A família escrava tinha padrões socioculturais que podem ser demograficamente percebidos. Os vestígios desses princípios podem ser apreendidos na documentação utilizada, principalmente a partir da análise dos inventários. As famílias enfrentavam com sucesso -sobretudo nos grandes plantéis, se legalmente constituídas e africanas- a morte do senhor, permanecendo unidas após a partilha. Em momentos de tráfico intenso, a divisão de bens acentuava a sua desestruturação.
A estabilidade das famílias é revelada pelo tempo de permanência da mãe com os filhos, da duração das relações e da procura do casamento legalizado -da existência de uma família em sentido ampliado, envolvendo mãe, pai, avós, tios e padrinhos, que idealmente atingia três gerações. Seus padrões constitutivos revelam os filhos como fator agregador, a endogamia por naturalidade, uma "urgência sociológica pela procriação" (pág. 136) e a presença do velho, reproduzindo papéis africanos de estabilidade, como poder político pacificador.

Biografia de um ex-escravo
O terror da escravidão, enquanto instituição que transforma e esvazia de sentido a vida, é o grande fio condutor do relato de Mahommah Gardo Baquaqua, "Biografia e Narrativa do Ex-Escravo Afro- Brasileiro". Ele nasceu no norte de Benin em 1824, foi escravizado em 1844 por um governante local, vendido e transportado para o Brasil. Liberto nos Estados Unidos, convertido à cristandade no Havaí, voltou para o Canadá em 1854, onde narrou ao abolicionista cristão Samuel Moore sua história.
Após relatar suas desventuras em terras africanas, apresenta os horrores da escravidão e afirma ser ela gerada pelo poder e não pela cor -a África é então igual ao resto do mundo. A partir da experiência de ser escravo no Brasil, destaca a tirania dos senhores, expressa na impossibilidade de satisfazê-los, a necessidade de humanizar-se, o horror do castigo físico, a incerteza e a impossibilidade de controlar o próprio destino. Tentar morrer poderia ser uma alternativa, mas ele "era apenas um escravo, sem esperança, sem perspectiva de liberdade, sem amigos... O presente e o futuro eram um só, sem divisor, apenas trabalho! trabalho! crueldade! crueldade! Não havia fim para a minha miséria a não ser a morte" (pág. 95).
Medo e insegurança aproximam Baquaqua dos escravos e suas famílias apresentados por Florentino e Góes. Mas as diferenças entre eles são enormes. Para Baquaqua, o caminho da escravidão e da libertação é solitário e passa pela conversão cristã -grande tema do relato. Na "Paz das Senzalas" vemos emergir um escravo que não era individual e solitário no seu destino e que construía estratégias coletivas e parentais de sobrevivência.

A história de dom Obá
A procura de estratégias de sobrevivência por parte dos escravizados e seus descendentes reaparece no livro "Dom Obá 2º D'África, o Príncipe do Povo", de Eduardo Silva. Aqui o personagem central é descendente de escravos, nordestino, soldado da nação na Guerra do Paraguai, migrante para a corte. O período é o da desestruturação da sociedade escravista, da crise do Império. Eduardo Silva está, como em outros livros seus, à procura dos "espaços de autonomia e resistência" desta população marginalizada e de sua interferência, nada silenciosa, nos destinos do país. O livro tem por base os escritos de dom Obá, mas a pesquisa realizada é muito maior.
Os capítulos iniciais revelam as situações que circunstanciam a existência do "príncipe do povo". Assim, o leitor é levado da Bahia para os campos de peleja da Guerra da Paraguai, fundamental ao propiciar contatos entre brasileiros de diferentes classes e criar sentimentos de companheirismo e ufanismo em torno de uma idéia muito concreta de nação. Essa experiência é essencial para explicar a existência de um canal de comunicação entre o imperador do Brasil e o "príncipe das ruas". Neste caminho, o país vai sendo apresentado sem nunca se perder de vista Obá, pois são estes processos que criam as condições daquela existência única que foi o "príncipe".
O alferes Galvão chega ao Rio de Janeiro em 1877. Em 1880 participa da Revolta do Vintém -violenta manifestação de rua contra novas taxas. A partir daí, torna-se figura popular, defensor da monarquia e crítico da política passada. Transforma-se em rei Obá, "tido por louco pela sociedade de bem, reverenciado como príncipe por considerável parcela da população carioca, que parecia compartilhar suas concepções de mundo, seus símbolos, suas idéias. Muitos pagavam-lhe tributo em dinheiro como a um verdadeiro soberano, ajoelhavam-se à sua passagem solene com exclamações de orgulho e reverência, reuniam-se em tavernas para ler em voz alta os seus artigos".
Como dom Obá relacionava-se com o imperador do Brasil, d. Pedro 2º, e com seu povo da África pequena do Rio de Janeiro -pretos e pobres, nem escravos, nem senhores, nem assalariados, e que ainda conservavam discórdias da África, quais eram suas idéias e influências sobre os grandes temas em debate no país daquele fim de século - são as questões da segunda parte do livro.
O leitor será apresentado às sessões de beija-mão na quinta imperial, verá a deferência dispensada pelo imperador ao príncipe Obá e de como sua representação era sustentada pelo "povo miúdo" do Rio de Janeiro. Aprenderá sobre os símbolos utilizados por Obá e sua mistura de referências africanas, brasileiras e européias: "Um complexo cultural" (pág.171).
O autor também mostra as posições assumidas por dom Obá sobre as questões que agitavam os espíritos de então. Como promover o fim da escravidão? Como enfrentar a questão racial? Qual regime político, governante e nação desejados? Vemos assim emergir a visão de mundo daquele príncipe das ruas. Dom Obá era então uma ponte entre dois mundos, mas uma ponte via etos patriarcal.
Temos aí diferenças fundamentais para compreensão das práticas políticas de ontem e hoje. Eduardo Silva, analisando a realidade de fins do século 19, e sobretudo a cidade do Rio de Janeiro, aponta o paternalismo, ou sua tradução nacional -o jeitinho-, como estratégia essencial de relação entre os mundos da elite e dos desqualificados, e a figura de dom Obá aparece nesse registro porque implica relação de troca, negociação em meio potencialmente hostil, onde havia, de um lado, serviço e lealdade, de outro, proteção e recompensa. Nesse sentido, os pedidos substituem a idéia de cidadania e de direito.
Para os autores de "Paz nas Senzalas", a existência do tráfico de escravos com a renovação permanente dos plantéis, as tensões entre os escravos, dada principalmente pela situação de estrangeiros, as distâncias culturais entre eles e seus senhores, impediriam a eficácia do paternalismo como forma de dominação, daí ser necessário o próprio cativo transformar a escravaria em plantel ordenado.
Para Baquaqua, por outro lado, o caminho é individual e solitário: entre alternativas como a fuga -desejo permanente- e deixar-se sucumbir à escravidão, desponta a "solução" do cristianismo. Após a leitura dos textos, o leitor necessariamente perceberá a riqueza da interlocução entre antropologia e história e as fontes utilizadas -de como elas permitem novas aberturas nas tramas da sociedade escravista brasileira e, ao mesmo tempo, as dificuldades em resgatar escravos e marginalizados do anonimato e do esquecimento. Mesmo, ou até principalmente, no texto biográfico essa questão é essencial: o relato do ex-escravo Baquaqua poderia ser o texto mais direto e incisivo sobre a realidade da escravidão, entretanto ele é todo permeado por outras falas.
Os documentos de Manolo e Góes apontam para vestígios, muitos dos quais imperceptíveis aos próprios produtores dos documentos, por se construírem sobre estratégias de resistência. Os de Eduardo Silva, fala direta do príncipe Obá, se fazem compreensíveis por inúmeras mediações entre os não ditos de seus "súditos" e sua relação com a cultura letrada e oficial.
Das proximidades e diferenças entre os livros fica a diversidade e multiplicidade de situações vividas pelos escravos e do quão profundamente eles permeavam a sociedade brasileira. Dos temas levantados, percebemos o quanto eles estão, ainda hoje, em pauta na sociedade brasileira: o jeitinho, a capacidade organizativa dos grupos marginalizados, o reconhecimento e esvaziamento permanente de suas conquistas e a questão da cidadania.


Ana Lúcia Duarte Lanna é historiadora, autora de "A Transformação do Trabalho" (Ed. da Unicamp) e "Revoltas da Senzala" (Ed. Ática), entre outros.



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