São Paulo, domingo, 5 de abril de 1998

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O fogo cruzado da questão negra



Brasilianista discute racismo e mercado de trabalho no país
JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

Há muitas maneiras de responder às questões levantadas pela discriminação racial e a condição do negro no Brasil. Mas como nenhuma das respostas é definitiva ou completa, quem lucra é a curiosidade estimulada pelo embate historiográfico.
Vejamos o brasilianista George Reid Andrews. Ele entra no fogo cruzado com "Negros e Brancos em São Paulo (1888-1988)". É um trabalho com ao menos dois grandes atrativos: traz uma boa quantidade de informações empíricas inéditas e polemiza com a bibliografia existente sobre o tema.
Andrew não dispersa seu enfoque com autores como Anthony W. Marx, que recentemente esteve no Brasil e que, na linha de Greenberg, interroga-se sobre as razões que levaram o negro a não se mobilizar por seus direitos, já que para tanto não tinham como bandeira a derrubada de legislação discriminatória e excludente que os brancos de outros países (Estados Unidos, África do Sul) criaram para o exercício explícito de um modelo de dominação.
Vejamos os elementos mais sérios da controvérsia. Andrews se contrapõe frontalmente a Gilberto Freyre e toda sua elaboração em cima do conceito de "democracia racial", hoje bem descreditada.
Para Freyre -e sua contestação toma em parte por base os trabalhos de Emília Viotti da Costa- a identidade negra se dilui com a miscigenação, intensamente ocorrida já a partir do período colonial.
Se o negro brasileiro entrou no mercado livre de trabalho em inferioridade, é porque era pobre e analfabeto, e não porque era negro, diziam os adeptos dessa utopia republicana. O "embranquecimento" da população por meio da imigração diluiria o problema por completo no futuro.
Contraposição do brasilianista bem mais respeitosa e sutil ocorre com Florestan Fernandes (e os dois volumes de sua "A Integração do Negro na Sociedade de Classes"). Para Florestan, em resumo, o capitalismo tende a diluir a identidade racial no caldo da opressão contra a mão-de-obra negra que se transfere do campo para a cidade. Negros e brancos são triturados no Brasil pela mesma lógica que explora qualquer outro proletariado urbano.
Vejamos um dos conjuntos de informações que o brasilianista traz ao debate. Pesquisou entre os anos 20 e 50 os arquivos do pessoal de duas empresas, grandes contratantes de mão-de-obra em São Paulo: a Light (transportes e energia elétrica) e a Jafet (tecelagem).
Nos dois casos, há um levantamento sobre a identidade das vítimas de punições ou dispensa por indisciplina, levando em conta grupos de trabalhadores com atributos étnicos definidos. O mesmo ocorre quanto à distribuição dos assalariados em funções de comando (colarinho branco) e trabalho braçal. Nos dois casos, negros e pardos levam comparativamente a pior.
O autor -este é um reparo importante- evita a palavra etnia, referindo-se à noção bem mais controvertida de raça.
No caso da Light e da Jafet, ele também acompanha o processo pelo qual, num primeiro momento, a mão-de-obra brasileira deixou de ser discriminada em relação à estrangeira -o Estado subsidiava a imigração de europeus.
O brasileiro branco vindo do campo demonstrava a mesma indisciplina e inadaptabilidade que o negro. Florestan assumia essa indisciplina como forma de resistência exclusiva aos negros.
Só no momento seguinte a discriminação assumiu um contorno mais nítido nessas empresas, mas apenas contra os descendentes já remotos dos escravos.
Um dos pressupostos não abertamente assumido por Andrew é o de que a historiografia brasileira vem abordando com precisão o racismo no atacado das idéias. No varejo, entretanto, as referências bibliográficas que o livro traz são sobretudo norte-americanas.
Há então a sutil ocorrência do antigo pecado original do brasilianismo: os dados são precisos e até fascinantes, mas despojados de uma contextualização maior que dá à pesquisa historiográfica sua coloração definitiva.
Um exemplo de omissão: entre as décadas de 20 e 30, a queda da ordem política oligárquica muda o eixo do poder na República. A burguesia industrial, onde há uma nítida sub-representação negra, lidará provavelmente com a questão étnica de forma diferenciada.



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