São Paulo, domingo, 5 de abril de 1998

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LIVROS - HISTÓRIA DO BRASIL
A outra revolução



Boris Fausto contesta interpretação consagrada do movimento de 30
FRANCISCO IGLÉSIAS
especial para a Folha

Torna-se cada vez mais intensa a produção historiográfica relativa à vida recente do Brasil, como se dá também no plano geral. Como é sabido, os historiadores davam mais importância aos períodos recuados, na versão equívoca de que a história é o passado. Ora, algumas das obras mais significativas da historiografia foram produzidas por autores que viveram o que retratam em seus textos. Valha como exemplo superior a "História das Guerras do Peloponeso", de Tucídides.
Entre nós, até recentemente, o estudo da história estava centrado no período colonial: bem menos expressivo era o referente ao Império e quase nulo o dedicado ao período republicano. Este quadro foi revisto e até quase revertido já em nossos dias, quando se passa ao estudo do século 19 e até do presente. Deve ter contribuído para a atual visão o aprimoramento da historiografia, seja pela pesquisa crescente, seja por maior atenção às teorias interpretativas. Contribuiu também a influência dos chamados "brasilianistas", voltados mais para o presente, talvez por seus interesses em melhor conhecer a área para atuação mais vantajosa.
Entre os assuntos que despertam o empenho de estudiosos está o da Revolução de 1930, vista como verdadeiro marco ou ruptura no processo evolutivo nacional, ou mesmo, em interpretação duvidosa, como passagem do arcaico para o moderno, uma superação do colonial pelo contemporâneo. Muito já se escreveu a respeito e muito ainda se escreverá, pois o tema está na fase de hipóteses. Entre essas, a que teve e tem mais adeptos é a de que o movimento liderado pela Aliança Liberal é a contestação da ordem de um Brasil agrário, eminentemente rural, com frágeis notas de superação nos movimentos que se avivam na década de 20, cuja nota mais expressiva é o tenentismo com seus episódios contestatórios -1922, 1924, Coluna Prestes.
Segundo tese, que foi muito aceita, aí estaria a mudança, com a superação do agrário -domínio dos latifúndios-, com a emergência de nova classe -a indevidamente configurada classe média. E fala-se então, à saciedade, de grupos médios, setores que crescem em decorrência da urbanização e do incipiente surto industrial. Chega-se assim a uma explicação que se firmou entre jornalistas, cientistas sociais e políticos influentes. Ela tem muita verossimilhança, daí seu acatamento. Na verdade, no entanto, é apenas uma fórmula a ser ainda demonstrada.
É o que se vê, por exemplo, no belo texto de Boris Fausto "Revolução de 1930 - Historiografia e História", de 1970, caso raro de obra historiográfica que se torna grande êxito editorial, como comprova seu relançamento agora pela Companhia das Letras -é a 16ª edição. Tem-se aí não só o exame do que foi o movimento de 30, convencionalmente chamado de revolução, mas também de como tem sido visto. Tese de concurso há quase 30 anos, apesar de muito o que se escreveu a respeito, mantém a atualidade -não envelheceu em nada. Esta edição é valorizada pelo prefácio que o autor para ela escreveu, de crítica e autocrítica, atestado de superioridade de vistas do autor. Ele submete a exame o que já se escrevera, destacando a fórmula sempre repetida de que o movimento representaria a ascensão ao poder da burguesia industrial. A seu ver, não o é nem das classes médias, como tantas vezes se disse, o que vê como formulação de tipo reducionista -classista, cujo êxito tem justificativa para o tempo em que foi escrita, em 1969, baseado em suas próprias pesquisas e em textos diversos, tais como teses e livros de outros autores.
Esta edição vem a ser um modelo de trabalho universitário, pois o autor não só continuou o estudo da matéria que abordara em sua tese, mas também analisou seus desdobramentos em obras de outros.
Boris Fausto insiste sobretudo na crítica ao que vê como reducionismo, na repetição de que 1930 foi o fortalecimento do capitalismo industrial e a emergência das classes médias, que teriam mesmo chegado ao poder. As partes do livro, sólidas e até reiterativas, demonstram que isto não procede. O que houve foi uma solução de compromisso, assumido entre vários setores da sociedade. Cita inúmeros casos de eminências da política ou do empresariado paulista que não eram apegados à tese industrialista, sendo que alguns insistiam mesmo na velha idéia de que o país era e deveria ser eminentemente agrícola; ou seja, haveria um artificialismo na defesa da industrialização.
Examina, com procedência e rigor, o que é a burguesia paulista, no que ela tem em comum e no que se distingue da carioca ou fluminense, da mineira e da gaúcha. Na composição dos agentes de todas elas há certa identidade, como não podia deixar de ser, já que têm a mesma origem, com pequenas variações regionais. Se até então a República chega a ser cansativa em seu rodízio do poder entre paulistas e mineiros, raramente tentada a ruptura desse eixo em manifestações oposicionistas às diretrizes do Catete, algumas vezes, sem o correspondente êxito, agora há um Estado que lidera a chamada Aliança Liberal -Minas Gerais-, aliada ao Rio Grande do Sul e à Paraíba, contando com certo beneplácito do Exército, agente decisivo então, como em outros movimentos antes e depois -principalmente depois, como se sabe.
No episódio contaram fatores regionais, problemas financeiros, a quebra do esquema tradicional pela insistência de Washington Luís em um candidato paulista -"o lance político desastrado", segundo Boris Fausto. Não seria a primeira vez que um motivo que podia ser visto como secundário adquiria enormes proporções. "Não foi um movimento que tenta conduzir a burguesia industrialista à dominação política", como o autor insiste. A análise do predomínio desse setor social -aliás de pequeno peso numérico-, como também não foi o Tenentismo, sempre visto -como o militar em geral, adiante-se- como expressão das classes médias urbanas, setor de mais força numérica, como é óbvio: "O movimento de 1930 não pode ser entendido sem a intervenção das classes médias, mas não é uma revolução destas classes", idéia relembrada em várias passagens.
O texto de Boris Fausto é lúcido e convincente. Apresentado em 1960, é natural que tivesse ampla ressonância, como se comprova com o alto número de edições. Abriu perspectivas. Se lhe valeu um título acadêmico, conta mais para a historiografia nativa, que se enriquece com ele em estudo básico para entendimento de instante que é marco na vida nacional.


Francisco Iglésias é historiador, autor, entre outros, de "Trajetória Política do Brasil".



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