São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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Caras pálidas

Peter Lyle

do "Independent"

A fotografia é uma espécie de mágica", diz o artista e fotógrafo Jean-Pierre Khazem. "Você pode dar a impressão de que uma coisa está lá, quando não está." Khazem não é o primeiro a comparar o processo de fotografar com um encantamento, e não será o último. Em seu caso, porém, é difícil imaginar uma analogia melhor. Khazem, um parisiense de 33 anos, coloca máscaras em modelos humanos e as fotografa. Na maior parte da última década as máscaras foram decoradas com penas ou pele, revestidas de látex que imita assustadoramente a pele humana ou moldadas em resina translúcida. As modelos sempre parecem muito reais, das camisetas aos dedos dos pés, mas seus rostos são estranhos.
A magia é sempre sobrenatural -o "algo" de Khazem é sempre um rosto de uma falsidade incongruente, numa cena que por sua vez é absolutamente familiar. Não admira que todo mundo, de McDonald's a Levi's e Heineken, tenha pedido que Khazem tirasse coelhos da cartola. Na verdade, ele já lançou seu encantamento sobre o seu próprio "self" consumidor -quer você saiba disso, quer não.


ARTISTA E FOTÓGRAFO FRANCÊS APLICA MÁSCARAS DE LÁTEX EM MODELOS PARA TENTAR DESCONSTRUIR O EGO E ACENTUAR A COISIFICAÇÃO DO SER HUMANO NO MUNDO DA MODA


Se você já folheou uma revista de moda, passou por um outdoor em Londres, Nova York ou Milão ou esteve numa estação de trens em qualquer lugar da Inglaterra nos últimos seis meses, terá visto a campanha de inverno de 2001 da Diesel criada por Khazem. Ele levou três semanas para fazer as máscaras e depois passou uma noite fotografando. O resultado foram cerca de 40 imagens publicitárias diferentes. No produto acabado, jovens modelos esguias vestem as últimas criações do império italiano do jeans e uma série de máscaras de silicone com expressões fixas. Elas parecem ao mesmo tempo mortalmente sensuais e simplesmente mortas, uma curiosa mistura de "A Laranja Mecânica" com a rigidez de Madame Tussaud. Neste mês Khazem vestirá grandes rostos em cinco jovens suecas nuas e as colocará em exibição num espaço com paredes espelhadas, construído para esse fim em Estocolmo, na Suécia. Confusão? A idéia é exatamente essa. "Os seres humanos...", afirma Khazem em seu inglês com sotaque de influência "cockney", "você brinca com sua normalidade". Khazem já fez muitas máscaras e ganhou algum dinheiro com elas. Não houve um relâmpago de inspiração por trás disso, ele explica sentado em um venerável café em Saint Germain, em frente a seu apartamento em Paris, apenas um paciente processo de tentativa e erro. "Quando você é jovem, tem convicções", ele diz. "Eu aplico todo o meu dinheiro nisso. Posso ter liberdade para fazer o que quero." Khazem nasceu em Paris em 1968 -a época perfeita para um artista radical- e completou seus estudos de artes aplicadas em 1990. Durante os anos em que passou criando as máscaras, Khazem trabalhou como ilustrador de revistas. Mas isso não durou muito, pois percebeu que a grama era muito mais verde para os fotógrafos das seções de estilo. "Quando você faz uma ilustração, eles lhe dão um quarto de página e telefonam para dizer: "Está ótimo, mas você poderia mudar isso...?'", ele sorri. "Quando você faz moda, eles lhe dão seis, sete, oito páginas." Foi somente em 1995, porém, que começou a surgir o visual seguro e bem-acabado de seus trabalhos mais conhecidos, por meio de uma série de retratos de seres humanos com cabeças de camelo vestindo roupas requintadas. Depois foi uma série de criações luminosas em máscaras de pássaros de resina com estolas de plumas. Khazem as fotografou à noite no Bois de Boulogne, parque conhecido como antro noturno de travestis com roupas exageradas. "Precisávamos fotografar [os pássaros" no escuro para que não parecessem falsos", disse Khazem, exibindo uma idéia maravilhosamente oblíqua do que significa realismo. Em 1999 Khazem foi para Nova York fotografar um bando de leões em ternos elegantes para uma reportagem de moda para a "Face". A metáfora da selva urbana talvez não tenha sido sutil, mas a execução foi impecável. Feitos durante três meses, de látex (no interior), couro de vaca (por fora) e crina de cavalo (as jubas), os leões foram um verdadeiro triunfo. "Eu fiquei no apartamento dele antes de voarmos para Nova York", diz Allan Kennedy, que fez o estilo das imagens e hoje é diretor de moda da revista "Arena". "Havia crina de cavalo por toda parte. Ele passou semanas colando-as no látex. Foi um absurdo."

Claustrofobia e transe
Então veio sua própria espécie. "Eu fui passo a passo e a princípio pensei que fosse impossível fazer seres humanos como tinha feito os animais", explica Khazem. As primeiras máscaras foram tentativas enormes, tamanho único, com espaço suficiente para respirar e, se as modelos tivessem sorte, enxergar através das narinas. Mas as máscaras humanas são criações menores, mais claustrofóbicas, nas quais um novo rosto fictício é esculpido sobre um molde da cabeça da própria modelo.
Elas têm uma beleza sobrenatural: quando Khazem construiu seu primeiro rosto, com uma boca aberta sorrindo, sua agência recebeu várias ligações perguntando de onde era a modelo. Muitas vezes suas modelos são vistas no que parece um momento pastoral perfeitamente tranquilo deitadas no campo, ajeitando provocativamente a lingerie, descansando maravilhosas numa espreguiçadeira, o que só aumenta sua estranheza.
Se as fotos de Khazem são desconfortáveis de olhar, porém, pense um pouco nas pessoas que aparecem nelas. Suas modelos são totalmente informadas sobre o que se espera antes de trabalhar com ele e têm consciência de que, como ninguém jamais saberá que são elas, a satisfação com o trabalho tem de preceder outros interesses. Geralmente elas têm de suportar uma camada de látex de secagem rápida. Não admira que Khazem costume trabalhar com amigas.
"Fiquei realmente assustada quando coloquei a máscara pela primeira vez", diz Jessica, 22, uma das cinco modelos recrutadas para a exposição em Estocolmo. "Ela foi feita para o meu rosto, mas é muito difícil de respirar, como se você tivesse asma. Você não consegue enxergar e em geral não consegue escutar, por isso é como se estivesse em transe ou em coma."
"Quando as pessoas vestem as máscaras, esquecem seus egos", elabora Khazem. "Elas não podem ver e têm de confiar em você para se orientar. Algumas pessoas não gostam disso quando elas não estão felizes em sua própria pele, isso fica mais evidente quando vestem a máscara." Khazem usa algumas expressões arquetípicas nas máscaras -a contrariada, a pensativa, a provocadora, a distante- para ilustrar como as modelos tendem a assumir clichês quando trabalham com seus próprios rostos. "Com as máscaras, a qualidade humana sobressai."
Como só consegue realizar de quatro a cinco projetos por ano, Khazem pensa muito sobre os trabalhos que aceita. Mesmo quando há muito dinheiro em jogo, como na maioria de seu trabalho publicitário. "Eles sempre querem ver a mesma coisa que você fez na última vez", diz. Com frequência esses pedidos não dão em nada. "Eu prefiro não me repetir", acrescenta. "É o oposto da maneira de pensar do fotógrafo de moda, que quer apenas apertar o botão e no dia seguinte ir para outro lugar fazer a mesma coisa."
Às vezes a sensação mais poderosa transmitida pelas fotos de moda de Khazem é que ele está requintando a fotografia de moda -e seu domínio virtuoso dos diversos estilos contemporâneos significa que as imagens muitas vezes são perfeitos pastiches. Numa matéria de moda que fotografou para a revista masculina americana "Details", ele criou uma sequência de retratos tão classicamente "cool" que fez as melhores revistas parecerem desleixadas. Ele continua aberto para trabalhar na área, mas diz que o atual panorama da moda, controlado por um punhado de conglomerados de luxo em eterna expansão, não o atrai muito. É hora de procurar outras vitrines se você quer fazer "um bom trabalho", diz Khazem.
Expor em sua cidade natal também ficou difícil. "Vai ser legal, vai ter um DJ", ele diz, zombando, para ilustrar o tipo de discurso moderno de dono de galeria que o faz fugir. Ele gosta da idéia de um dia fazer um programa de televisão infantil, mas "teria de ser no exterior, não o fariam aqui. "Teletubbies" nunca teria sido feito na França". O último projeto de Khazem é em Estocolmo e se chama "Pause".
No centro Fargfabriken, cinco mulheres utilizam máscaras de aspecto humano -cada uma parece idêntica de perfil, mas diferente no retrato- e posam nuas em um espaço subdividido e espelhado que causa desorientação, criado pelo arquiteto nova-iorquino Andreas Angelidakis, enquanto os frequentadores da galeria se movimentam ao redor e observam. As imagens são então levadas para Paris, montadas em acrílico, transportadas de volta para Estocolmo e exibidas.
"Pause" é um pouco exposição, um pouco vitrine arquitetônica e um pouco performance, com um livro produzido no final. Mas sobretudo "Pause" é uma mudança de 360 graus no trabalho de Khazem. É um pouco estranha, com certeza. Uma utilização eticamente questionável do corpo feminino, muito possivelmente. Com todas as máscaras e a nudez pública, poderia até parecer um pouco Monty Python. Mas, desde que você veja pelo ângulo certo, certamente será mágica.

"Pause" teve início em 28/4 e segue até 19/5 no Fargfabriken - Centro de Arquitetura e Arte Contemporâneas, em Estocolmo. Em breve será lançado um livro com os trabalhos da exposição, que poderá ser encomendado no site www.fargfabriken.se

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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