São Paulo, domingo, 05 de junho de 2005

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Coletânea lançada nos EUA reúne estudos sobre os filmes, personagens e artigos criados por Woody Allen, discutindo, entre outros temas, o sentido da vida e o papel da arte e da moral

Entre Bergman e os irmãos Marx

SÉRGIO RIZZO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Em "Memórias" (80), filme-chave na obra de Woody Allen, alguém pergunta ao cineasta Sandy Bates -representação da imagem que então se fazia do próprio Allen, em jogo de espelhos com ele, Fellini e Bergman que, no fim, lançava mais sombras do que luzes sobre o que motivava um comediante bem-sucedido a realizar dramas psicológicos- qual o significado do Rolls-Royce que aparece em um de seus filmes. "Acho que significa o carro do personagem", responde.
O que diria se lhe apresentassem um livro escrito por acadêmicos com o título "Sandy Bates e Filosofia"? Esqueçam a ficção. A pergunta pode ser feita diretamente a Allen, que completa em dezembro 70 anos, metade deles como um dos principais ícones da cultura norte-americana no final do século 20.


O livro busca varrer uma obra que, além de propor-cionar divertimen-to, tem ambições mais elevadas


O mais recente volume da numerosa bibliografia que esmiúça os seus filmes -a maior dedicada a um cineasta norte-americano em atividade, com larga vantagem sobre Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, os outros gigantes dessa notável geração-, "Woody Allen and Philosophy - You Mean My Whole Fallacy Is Wrong?" [Woody Allen e Filosofia - Quer Dizer que a Minha Falácia Toda Está Errada?], investiga o significado de tudo o que, nos diálogos e situações criados por Allen, possa representar mais do que apenas "o carro do personagem".
Deus existe? Como fazer a distinção entre o certo e o errado? Qual é, afinal, o sentido da vida? Incertezas lançadas no ar em tom jocoso por, entre outros, "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" (77) e "Manhattan" (79), muitas vezes no clímax de uma ótima piada, mas que "Woody Allen e Filosofia" leva a sério. É o oitavo volume de uma série que examina a cultura popular sob a perspectiva da divulgação filosófica ("Seinfeld" e "Os Simpsons" a inauguraram), mas o primeiro a varrer uma obra que, além de proporcionar divertimento, tem ambições mais elevadas.

"Grandes temas"
Uma dessas ambições, entrelaçada com a representação da vida contemporânea feita por diversos de seus filmes, é a de questionar o papel da arte: deveria nos conduzir à reflexão sobre os "grandes temas" e, com isso, nos angustiar e deprimir ou nos afastar deles para que a transitoriedade da vida se encarregue sozinha de fazer o seu trabalho? Em termos estritamente cinematográficos: Ingmar Bergman ou os irmãos Marx?
A resposta mais sensata -e até alguns dos neuróticos nova-iorquinos criados por Woody Allen se inclinariam a isso- talvez seja Bergman e os irmãos Marx. Justamente a fusão que o cineasta esboçaria na fase madura da carreira, a partir de "Manhattan", embora indícios dessa pretensão estejam presentes desde as comédias de aspecto ingênuo e narrativa mais rudimentar, como "Um Assaltante Bem Trapalhão" (69) e "Bananas" (71).
Todos os longas-metragens do cineasta até "O Escorpião de Jade" (2001) se equivalem, no entanto, como objeto de estudo dos 15 professores de filosofia que contribuem no volume (não confundir com o recém-traduzido "O Que Sócrates Diria a Woody Allen - Cinema e Filosofia", ed. Planeta, do espanhol Juan Antonio Rivera, que, apesar da ênfase no título, trata de Allen em apenas três de seus 19 capítulos).
Os quatro ensaios da primeira parte percorrem os filmes de forma panorâmica, com o objetivo de identificar como se apresentam neles as discussões sobre moralidade e o sentido da vida. Quem melhor as esmiuça é um dos organizadores, Mark T. Conard, do Marymount Manhattan College, que abre o livro com uma cuidadosa leitura da elevada incidência das dúvidas sobre a existência de Deus entre os personagens de Allen.
Conard é, claro, admirador do cineasta, mas nem por isso deixa de registrar incongruências na atitude de personagens, como Mickey Sachs, o suicida potencial de "Hannah e Suas Irmãs" (86). Sua análise demonstra o parentesco existencial entre protagonistas de filmes distintos -com limpidez de raciocínio- ao cruzar diálogos e comportamentos, ainda que "trapaceie" ao recorrer a depoimentos de Allen como forma de autorizar a interpretação.

Procedimentos criativos
Teria receio de se submeter a constrangimento semelhante ao do falastrão de "Noivo Neurótico", que, ao falar bobagens pernósticas sobre as idéias de Marshall McLuhan na fila do cinema, é desautorizado por McLuhan em pessoa, a quem Alvy Singer (Allen) vai buscar "fora" da tela? É improvável que o cineasta fizesse o mesmo com a dissecação de seus personagens, sobretudo porque Conrad se refere ao que pensam e faziam eles, e não a supostas "intenções" de Allen.
Na segunda parte do livro, porém, seis ensaios cobrem os procedimentos criativos do cineasta. Um deles, de James Wallace, do King's College, se debruça principalmente sobre os seus textos de ficção e não-ficção, como o best-seller "Cuca Fundida" e a peça "Deus", publicada em "Sem Plumas". O destaque da seção, escrito por Jason Holt, da Concordia University, é um elogio ao fato de os filmes provocarem no espectador um balanço entre respostas emocionais e intelectuais.
Os cinco ensaios da terceira parte se concentram em filmes específicos, como "Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão" (82), encarado por Sander H. Lee, do Keene State College, como "lição moral sobre os perigos do hedonismo, do niilismo e da falta de integridade pessoal", e "Zelig" (83), cujo tratamento da identidade pessoal e da inautenticidade mostraria, segundo David Detmer, da Purdue University Calumet, como se pavimenta a estrada para o fascismo.
O Woody Allen que conhecemos por meio de seus filmes e livros talvez não gostasse, por considerar presunçoso, de dividir as notas de rodapé com Platão, Aristóteles, Kant, Nietzsche, Rousseau, Schopenhauer, Wittgenstein, Heidegger, Adam Smith, Karl Popper, Jean-Paul Sartre, Roland Barthes, Michel Foucault e Umberto Eco. Talvez usasse a célebre piada de Groucho Marx para uma estocada de ironia: se sou aceito nesse clube, então não posso fazer parte dele.

Woody Allen and Philosophy - You Mean My Whole Fallacy Is Wrong?
250 págs., US$ 17,95 - R$ 44,00 Mark T. Conard e Aeon J. Skoble (org). Ed. Open Court (EUA).
Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/ 11/ 3170-4033) ou na www.amazon.com


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