São Paulo, domingo, 05 de junho de 2005

Texto Anterior | Índice

+ sociedade

A pesquisadora Monique Augras, da Pontifícia Universidade Católica do Rio, defende em novo livro que a devoção a santos populares está invadindo a alta cultura e se tornando moeda de troca no mercado da fé

OS SANTINHOS DA CRISE

Alan Marques - 11.out.2004/Folha Imagem
Mulher visita a sala das promessas da basílica de Aparecida, em Aparecida (SP)


CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Nem só o papa era pop. Alguns dos santos católicos parecem cada vez mais ingressar no olimpo profano das celebridades da sociedade do espetáculo. Eles estão por toda parte: em tatuagens, roupas de grife, decoração de lojas e restaurantes, orações via internet e assim vai.
Como explicar esse boom? Essa é uma das questões abordadas, na entrevista a seguir, pela professora de psicologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) Monique Augras. Ela está lançando "Todos os Santos São Bem-Vindos" (ed. Pallas), fruto de pesquisas de campo que empreende com seus alunos, desde 1998, em igrejas do centro do Rio de Janeiro. Nele, mostra como tem crescido o rebanho de clientes dos chamados "santos da crise", vistos como os que têm as respostas mais rápidas e eficazes para as angústias e apetites consagrados nos tempos atuais.


O uso de santos em camisas ou tatuagem é comércio e até poderia contribuir para dar uma imagem bem negativa do catolicismo; você lembra das calcinhas lançadas em 2003 com efígie de santo?


Augras, nascida na França, onde se doutorou na Sorbonne, está no Brasil desde 1961. Sua ênfase interdisciplinar e seu interesse em temas da cultura nacional, como as religiões afro-brasileiras, a fazem ver-se como uma "cientista social com formação de base em psicologia". "E me defino também como marginal de duas culturas: a francesa e a brasileira, o que me garante estranhamento diante de ambas e, logo, questionamentos e pesquisas." É autora também de "A Dimensão Simbólica" (Vozes) e "O Brasil do Samba-Enredo" (FGV).
 

Folha - A devoção aos santos parece hoje estar na moda. Por quê?
Monique Augras -
Não diria que "a devoção aos santos está na moda", mas que o uso de imagens sacras está na moda. Vi recentemente, uma camiseta bem cara com imagem de uma Nossa Senhora com o Menino Jesus e, embaixo, estava escrito "Nossa Senhora da Conceição". Existem "n" representações da Conceição (entre as quais, Nossa Senhora Aparecida), mas se trata da Virgem, antes do nascimento do Filho. Jamais está com o Menino Jesus. Isso é só exemplo pra dizer que estilistas grã-finas não são mais esclarecidas, a respeito dos santos, do que o povão que a gente entrevistou. E têm menos respeito. No ano passado, apareceram, em uma loja de decoração, uns móveis (mesa, armários, não lembro se havia uma cama) belíssimos, com palavras escavadas, as letras muito lindas, em latim, e era... o texto do Pai Nosso.

Folha - Ainda assim, o número de católicos cai hoje em dia. Por que essa aparente contradição?
Augras -
O uso de santos em camisas ou tatuagem é comércio. Até poderia contribuir para dar uma imagem bem negativa do catolicismo; você lembra das calcinhas lançadas em 2003 com efígie de santo? Poderíamos pensar também que o fato de as pessoas usarem imagens sacras sem achar nada demais denota um enfraquecimento do poder católico, outrora hegemônico.

Folha - O que a sra. entende por "santos da crise"?
Augras -
O nome "santos da crise" foi dado para designar santo Expedito, são Judas Tadeu, santa Edwiges e santa Rita. Já estávamos na primeira pesquisa, observando as devoções a todos os santos encontrados naquelas igrejas, quando santo Expedito, vindo de São Paulo, praticamente "estourou" no Rio. A gente achava os "santinhos" dele em todo canto, e em outubro de 1998, em época de eleição, de repente Fernando Henrique Cardoso mostra, na televisão, uma estátua de são Judas na mesa dele, dizendo que era devoto, logo ele, que se proclamara ateu antes. E no mesmo mês aparecem, no ônibus, cartazes chamando para a festa de santa Edwiges, padroeira dos endividados. E, a seguir, os devotos entrevistados falam que todo santo é bom mas, batata mesmo, são: as almas, são Judas Tadeu e santa Rita de Cássia. E santo Expedito foi literalmente reinventado nos anos 90. Até hoje são os mais citados por todos.

Folha - A sra. parece considerar que a sociedade de consumo tem "desvirtuado" o sentido tradicional da devoção, pela intromissão de um certo "toma lá, dá cá mágico", que esvaziaria os valores cristãos. Mas essa dimensão mágica, o aspecto comercial e o imediatismo das demandas não estiveram sempre presentes na relação dos devotos com seus santos?
Augras -
Concordo plenamente que a dimensão mágica do toma lá dá cá sempre existiu, e a relação do devoto com os santos sempre foi marcada por certo clientelismo. Os membros da sociedade de consumo buscam -ao adquirir coisas- comprar (magicamente também) a satisfação dos seus desejos, jamais alcançam a saciedade e voltam a adquirir coisas e se frustram e assim por diante, numa espiral que não tem fim. Esse processo está envolvendo as práticas devocionais.
Mas quando você vê as santas que garantem soluções de problemas imediatos -e cujos kits são vendidos na TV- ou quando você lê uma versão da oração de santa Edwiges em que todos os "s" são substituídos por cifrões, você há de pensar que, no mínimo, está se instalando algum processo inflacionário no "mercado dos bens de salvação", como diria Max Weber.

Folha - Em que sentido o estudo dos santos católicos pode ser um caminho para esclarecer aspectos importantes da cultura e sociedade brasileiras? É correto dizer, por exemplo, que a devoção aos santos foi um dos instrumentos decisivos para a subjugação dos escravos africanos?
Augras -
Cultura é uma coisa só, que se expressa nas devoções, nas danças, nas artes, nas falas, na vida cotidiana. Estudar um recorte é entrever todo o conjunto, e não dá para entender nenhum fenômeno sem remeter à estrutura e à dinâmica de todo o corpo social. Calhou que as igrejas que freqüentamos mais amiúde, todas situadas no centro antigo do Rio, eram igrejas de irmandades negras, criadas pela igreja para converter e enquadrar escravos e forros, uma irmandade para cada nação, e a escolha dos santos -santo Elesbão, são Benedito, ou são Baltazar- decorria "naturalmente".
As lendas e representações de são Benedito -que viveu no século 16, na Sicília- são bem ilustrativas do racismo tão negado pela sociedade brasileira: até hoje, nunca encontrei uma imagem do santo carregando o Menino Jesus que não mostrasse o uso de um pano branco, separando as mãos negras do róseo traseiro do Menino Jesus. Almas piedosas talvez tenham outra interpretação...
Mas devemos lembrar que não houve só imposição, houve trocas e, sobretudo, um incrível jogo de cintura dos africanos e seus descendentes. Tiraram partido dos santos para homenagearem seus deuses. E foi nos fundos da igreja da Barroquinha, em Salvador, que três senhoras da irmandade da Boa Morte fundaram um dos terreiros de candomblés mais celebrados da Bahia.
O Rio de Janeiro não ficou atrás: é dos desfiles dos reis de Congo, promovidos na Lampadosa e no Rosário, que saíram os modelos dos festejos que, mais tarde, iriam dar no desfile das escolas de samba -que, como bem viu Roberto DaMatta, tem estrutura de procissão. Leia a descrição da festa do "áureo trono episcopal", que, em 1748, celebrou a criação do bispado de Mariana, em Minas Gerais: o desfile "dos pajens mulatinhos, ataviados com sedas, fitas, ouro e diamantes" é puro brilho barroco, digno de Joãosinho Trinta!

Folha - É um erro falar de Expedito como o santo das "causas urgentes"?
Augras -
As lendas de santo Expedito foram inventadas a partir de uma tradução equivocada da palavra "expeditus", que significa "desembaraçado" e tem sido traduzido como se fosse "expeditivo". Os legionários romanos com esse nome tinham um fardamento mais leve, não corriam na frente -ou talvez corressem, já que não estavam atrapalhados pelo peso das armas.
Mas já que o povo gostou da invenção, por que não? Há muitos outros santos dos quais nem se sabe se existiram realmente, isto é, não há, até hoje, a menor comprovação documental de sua existência factual. Lembra dos debates sobre são Jorge?

Folha - Aliás, a senhora comenta que a força do culto a são Jorge ainda hoje "sugere a permanência de mitos muito antigos, seguramente bem anteriores ao triunfo do cristianismo".
Augras -
Aqui há duas coisas -uma geral, outra específica. A geral é que o cristianismo, ao se implantar, não guerreou contra todas as tradições que lhe antecederam. Reinterpretou cultos antigos à medida que se espalhava: onde havia uma deusa mãe protetora de uma fonte, por exemplo, chamava de Nossa Senhora da Fonte, e tudo bem. Assim ia "batizando" lugares e deuses locais, para felicidade geral. Mais tarde, os autores medievais de hagiografias gostavam de mostrar cultura e enxertavam trechos de clássicos gregos ou romanos para enfeitar os seus relatos.
Um grande erudito como o jesuíta Hippolyte Delehaye analisou muito daquilo que chamava de "lendas hagiográficas", identificando essas inserções. São Jorge, por sua vez, lembra demais o grego Perseu. Está tudo lá: o monstro marinho, a linda princesa acorrentada, o cavalo e a vitória do herói. Esse tema faz parte dos chamados "mitos do herói" e se encontra em várias culturas.

Folha - Seu livro mostra que a baixa reputação de Maria Madalena foi, historicamente, um reflexo da crescente discriminação contra as mulheres por parte da igreja medieval; muitas das lendas em torno de Madalena foram criadas e usadas como meio de ""podar" as veleidades de autonomia daquela raça diabólica", segundo expressão de Georges Duby. Recentemente, a santa foi alçada a mulher de Jesus no best-seller "O Código da Vinci" (Sextante), de Dan Brown. Pode-se dizer que esse livro nos fornece, nessa "reinvenção" de Maria Madalena, um indicador mítico da ascensão social das mulheres, senão dentro da igreja, ao menos no mundo laico de hoje?
Augras -
Dan Brown foi muito experto ao costurar um monte de temas que rolam atualmente no grande supermercado esotérico do fantástico contemporâneo. Daí o sucesso, além de ser um thriller muito bem arquitetado, salvo o final, que achei fracote. Há muito tempo já se fofocou a respeito da relação entre Jesus e Maria Madalena, que, como você sabe, nos Evangelhos são três personagens diferentes.
Não chamaria essa retomada de "indicador mítico da ascensão social das mulheres", mas sim de utilização hábil de um "leitmotiv" já antigo para agradar aos milhões de mulheres que reivindicam não mais serem chamadas de "minoria".
Você lembra, há mais de 20 anos, do estrondoso sucesso da série "As Brumas de Avalon" (Imago)? Tomava grandes liberdades com as lendas arturianas para mostrar mulheres superpoderosas. Agradou em cheio e não chocou, pois não ia contra dogmas sagrados.

Folha - Como interpretar o forte aumento de canonizações promovido por João Paulo 2º?
Augras -
O papa João Paulo 2º gostava de repetir que o mundo precisa de muitos santos. Eles foram gente como a gente, que se abriram à graça de Deus e se entregaram aos seus desígnios. Aprendi nas aulas de catecismo que o objetivo de cada vida cristã é chegar à santidade. E como, no caso da gente, falta muito, os santos são guias e intercessores. Canonizá-los é reconhecer as suas virtudes, mostrar quais são diversos caminhos. Há de concordar com João Paulo 2º, o mundo precisa de um bocado de encaminhamentos...

Folha - O próprio João Paulo 2º, ao que parece, logo será declarado santo. Foi esse o clamor de muitos que acompanharam o enterro dele, e Bento 16 tem insistido para que a tramitação do processo seja rápida. Como a sra. vê isso?
Augras -
Na alta Idade Média, santo era quem todo mundo dizia que era santo: "Vox Populi, Vox Dei". Agora, temos essa aclamação que, me parece, retoma a antiga tradição. O lado emocional se sobrepõe a toda racionalização imposta pela institucionalização dos processos de canonização, que se deu a partir do século 12. Houve gente para perguntar quem foi que mandou fazer as faixas "Santo, logo": é claro que há, sempre, aspectos políticos e outros em jogo. Na alta Idade Média e hoje.


Texto Anterior: Notas
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.