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A pesquisadora Monique Augras, da Pontifícia Universidade Católica do Rio, defende em novo livro que a
devoção a santos populares está invadindo a alta cultura e se tornando moeda de troca no mercado da fé
OS SANTINHOS DA CRISE
Alan Marques - 11.out.2004/Folha Imagem
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Mulher visita a sala das promessas da basílica de Aparecida, em Aparecida (SP) |
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Nem só o papa era pop. Alguns dos santos católicos
parecem cada vez mais ingressar no olimpo profano
das celebridades da sociedade do espetáculo. Eles estão por toda parte:
em tatuagens, roupas de grife, decoração de lojas e restaurantes, orações
via internet e assim vai.
Como explicar esse boom? Essa é
uma das questões abordadas, na entrevista a seguir, pela professora de
psicologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) Monique Augras. Ela está lançando "Todos os
Santos São Bem-Vindos" (ed. Pallas), fruto de pesquisas de campo
que empreende com seus alunos,
desde 1998, em igrejas do centro do
Rio de Janeiro. Nele, mostra como
tem crescido o rebanho de clientes
dos chamados "santos da crise", vistos como os que têm as respostas
mais rápidas e eficazes para as angústias e apetites consagrados nos
tempos atuais.
O uso de santos
em camisas ou tatuagem é comércio e até poderia contribuir para dar uma imagem bem
negativa do catolicismo;
você lembra das calcinhas lançadas em 2003
com efígie de santo?
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Augras, nascida na França, onde se
doutorou na Sorbonne, está no Brasil desde 1961. Sua ênfase interdisciplinar e seu interesse em temas da
cultura nacional, como as religiões
afro-brasileiras, a fazem ver-se como uma "cientista social com formação de base em psicologia". "E
me defino também como marginal
de duas culturas: a francesa e a brasileira, o que me garante estranhamento diante de ambas e, logo,
questionamentos e pesquisas." É autora também de "A Dimensão Simbólica" (Vozes) e "O Brasil do Samba-Enredo" (FGV).
Folha - A devoção aos santos parece
hoje estar na moda. Por quê?
Monique Augras - Não diria que "a
devoção aos santos está na moda",
mas que o uso de imagens sacras está
na moda. Vi recentemente, uma camiseta bem cara com imagem de
uma Nossa Senhora com o Menino
Jesus e, embaixo, estava escrito
"Nossa Senhora da Conceição".
Existem "n" representações da Conceição (entre as quais, Nossa Senhora Aparecida), mas se trata da Virgem, antes do nascimento do Filho.
Jamais está com o Menino Jesus. Isso é só exemplo pra dizer que estilistas grã-finas não são mais esclarecidas, a respeito dos santos, do que o
povão que a gente entrevistou. E têm
menos respeito. No ano passado,
apareceram, em uma loja de decoração, uns móveis (mesa, armários,
não lembro se havia uma cama) belíssimos, com palavras escavadas, as
letras muito lindas, em latim, e era...
o texto do Pai Nosso.
Folha - Ainda assim, o número de católicos cai hoje em dia. Por que essa
aparente contradição?
Augras - O uso de santos em camisas ou tatuagem é comércio. Até poderia contribuir para dar uma imagem bem negativa do catolicismo;
você lembra das calcinhas lançadas
em 2003 com efígie de santo? Poderíamos pensar também que o fato de
as pessoas usarem imagens sacras
sem achar nada demais denota um
enfraquecimento do poder católico,
outrora hegemônico.
Folha - O que a sra. entende por
"santos da crise"?
Augras - O nome "santos da crise"
foi dado para designar santo Expedito, são Judas Tadeu, santa Edwiges e
santa Rita. Já estávamos na primeira
pesquisa, observando as devoções a
todos os santos encontrados naquelas igrejas, quando santo Expedito,
vindo de São Paulo, praticamente
"estourou" no Rio. A gente achava
os "santinhos" dele em todo canto, e
em outubro de 1998, em época de
eleição, de repente Fernando Henrique Cardoso mostra, na televisão,
uma estátua de são Judas na mesa
dele, dizendo que era devoto, logo
ele, que se proclamara ateu antes. E
no mesmo mês aparecem, no ônibus, cartazes chamando para a festa
de santa Edwiges, padroeira dos endividados. E, a seguir, os devotos entrevistados falam que todo santo é
bom mas, batata mesmo, são: as almas, são Judas Tadeu e santa Rita de
Cássia. E santo Expedito foi literalmente reinventado nos anos 90. Até
hoje são os mais citados por todos.
Folha - A sra. parece considerar que
a sociedade de consumo tem "desvirtuado" o sentido tradicional da devoção, pela intromissão de um certo "toma lá, dá cá mágico", que esvaziaria
os valores cristãos. Mas essa dimensão mágica, o aspecto comercial e o
imediatismo das demandas não estiveram sempre presentes na relação
dos devotos com seus santos?
Augras - Concordo plenamente
que a dimensão mágica do toma lá
dá cá sempre existiu, e a relação do
devoto com os santos sempre foi
marcada por certo clientelismo. Os
membros da sociedade de consumo
buscam -ao adquirir coisas-
comprar (magicamente também) a
satisfação dos seus desejos, jamais
alcançam a saciedade e voltam a adquirir coisas e se frustram e assim
por diante, numa espiral que não
tem fim. Esse processo está envolvendo as práticas devocionais.
Mas quando você vê as santas que
garantem soluções de problemas
imediatos -e cujos kits são vendidos na TV- ou quando você lê uma
versão da oração de santa Edwiges
em que todos os "s" são substituídos
por cifrões, você há de pensar que,
no mínimo, está se instalando algum
processo inflacionário no "mercado
dos bens de salvação", como diria
Max Weber.
Folha - Em que sentido o estudo dos
santos católicos pode ser um caminho
para esclarecer aspectos importantes
da cultura e sociedade brasileiras? É
correto dizer, por exemplo, que a devoção aos santos foi um dos instrumentos decisivos para a subjugação
dos escravos africanos?
Augras - Cultura é uma coisa só,
que se expressa nas devoções, nas
danças, nas artes, nas falas, na vida
cotidiana. Estudar um recorte é entrever todo o conjunto, e não dá para
entender nenhum fenômeno sem
remeter à estrutura e à dinâmica de
todo o corpo social. Calhou que as
igrejas que freqüentamos mais
amiúde, todas situadas no centro
antigo do Rio, eram igrejas de irmandades negras, criadas pela igreja
para converter e enquadrar escravos
e forros, uma irmandade para cada
nação, e a escolha dos santos -santo Elesbão, são Benedito, ou são Baltazar- decorria "naturalmente".
As lendas e representações de são
Benedito -que viveu no século 16,
na Sicília- são bem ilustrativas do
racismo tão negado pela sociedade
brasileira: até hoje, nunca encontrei
uma imagem do santo carregando o
Menino Jesus que não mostrasse o
uso de um pano branco, separando
as mãos negras do róseo traseiro do
Menino Jesus. Almas piedosas talvez
tenham outra interpretação...
Mas devemos lembrar que não
houve só imposição, houve trocas e,
sobretudo, um incrível jogo de cintura dos africanos e seus descendentes. Tiraram partido dos santos para
homenagearem seus deuses. E foi
nos fundos da igreja da Barroquinha, em Salvador, que três senhoras
da irmandade da Boa Morte fundaram um dos terreiros de candomblés mais celebrados da Bahia.
O Rio de Janeiro não ficou atrás: é
dos desfiles dos reis de Congo, promovidos na Lampadosa e no Rosário, que saíram os modelos dos festejos que, mais tarde, iriam dar no desfile das escolas de samba -que, como bem viu Roberto DaMatta, tem
estrutura de procissão. Leia a descrição da festa do "áureo trono episcopal", que, em 1748, celebrou a criação do bispado de Mariana, em Minas Gerais: o desfile "dos pajens mulatinhos, ataviados com sedas, fitas,
ouro e diamantes" é puro brilho barroco, digno de Joãosinho Trinta!
Folha - É um erro falar de Expedito
como o santo das "causas urgentes"?
Augras - As lendas de santo Expedito foram inventadas a partir de
uma tradução equivocada da palavra "expeditus", que significa "desembaraçado" e tem sido traduzido
como se fosse "expeditivo". Os legionários romanos com esse nome
tinham um fardamento mais leve,
não corriam na frente -ou talvez
corressem, já que não estavam atrapalhados pelo peso das armas.
Mas já que o povo gostou da invenção, por que não? Há muitos outros santos dos quais nem se sabe se
existiram realmente, isto é, não há,
até hoje, a menor comprovação documental de sua existência factual.
Lembra dos debates sobre são Jorge?
Folha - Aliás, a senhora comenta
que a força do culto a são Jorge ainda
hoje "sugere a permanência de mitos
muito antigos, seguramente bem anteriores ao triunfo do cristianismo".
Augras - Aqui há duas coisas
-uma geral, outra específica. A geral é que o cristianismo, ao se implantar, não guerreou contra todas
as tradições que lhe antecederam.
Reinterpretou cultos antigos à medida que se espalhava: onde havia uma
deusa mãe protetora de uma fonte,
por exemplo, chamava de Nossa Senhora da Fonte, e tudo bem. Assim
ia "batizando" lugares e deuses locais, para felicidade geral. Mais tarde, os autores medievais de hagiografias gostavam de mostrar cultura
e enxertavam trechos de clássicos
gregos ou romanos para enfeitar os
seus relatos.
Um grande erudito como o jesuíta
Hippolyte Delehaye analisou muito
daquilo que chamava de "lendas hagiográficas", identificando essas inserções. São Jorge, por sua vez, lembra demais o grego Perseu. Está tudo
lá: o monstro marinho, a linda princesa acorrentada, o cavalo e a vitória
do herói. Esse tema faz parte dos
chamados "mitos do herói" e se encontra em várias culturas.
Folha - Seu livro mostra que a baixa
reputação de Maria Madalena foi, historicamente, um reflexo da crescente
discriminação contra as mulheres por
parte da igreja medieval; muitas das
lendas em torno de Madalena foram
criadas e usadas como meio de ""podar" as veleidades de autonomia daquela raça diabólica", segundo expressão de Georges Duby. Recentemente, a santa foi alçada a mulher de
Jesus no best-seller "O Código da Vinci" (Sextante), de Dan Brown. Pode-se
dizer que esse livro nos fornece, nessa
"reinvenção" de Maria Madalena, um
indicador mítico da ascensão social
das mulheres, senão dentro da igreja,
ao menos no mundo laico de hoje?
Augras - Dan Brown foi muito experto ao costurar um monte de temas que rolam atualmente no grande supermercado esotérico do fantástico contemporâneo. Daí o sucesso, além de ser um thriller muito
bem arquitetado, salvo o final, que
achei fracote. Há muito tempo já se
fofocou a respeito da relação entre
Jesus e Maria Madalena, que, como
você sabe, nos Evangelhos são três
personagens diferentes.
Não chamaria essa retomada de
"indicador mítico da ascensão social
das mulheres", mas sim de utilização
hábil de um "leitmotiv" já antigo para agradar aos milhões de mulheres
que reivindicam não mais serem
chamadas de "minoria".
Você lembra, há mais de 20 anos,
do estrondoso sucesso da série "As
Brumas de Avalon" (Imago)? Tomava grandes liberdades com as lendas
arturianas para mostrar mulheres
superpoderosas. Agradou em cheio
e não chocou, pois não ia contra
dogmas sagrados.
Folha - Como interpretar o forte aumento de canonizações promovido
por João Paulo 2º?
Augras - O papa João Paulo 2º gostava de repetir que o mundo precisa
de muitos santos. Eles foram gente
como a gente, que se abriram à graça
de Deus e se entregaram aos seus desígnios. Aprendi nas aulas de catecismo que o objetivo de cada vida
cristã é chegar à santidade. E como,
no caso da gente, falta muito, os santos são guias e intercessores. Canonizá-los é reconhecer as suas virtudes, mostrar quais são diversos caminhos. Há de concordar com João
Paulo 2º, o mundo precisa de um bocado de encaminhamentos...
Folha - O próprio João Paulo 2º, ao
que parece, logo será declarado santo. Foi esse o clamor de muitos que
acompanharam o enterro dele, e Bento 16 tem insistido para que a tramitação do processo seja rápida. Como a
sra. vê isso?
Augras - Na alta Idade Média, santo
era quem todo mundo dizia que era
santo: "Vox Populi, Vox Dei". Agora, temos essa aclamação que, me
parece, retoma a antiga tradição. O
lado emocional se sobrepõe a toda
racionalização imposta pela institucionalização dos processos de canonização, que se deu a partir do século
12. Houve gente para perguntar
quem foi que mandou fazer as faixas
"Santo, logo": é claro que há, sempre, aspectos políticos e outros em
jogo. Na alta Idade Média e hoje.
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