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Ruínas do pop
Michael Jackson realizou em seu corpo, e levou ao limite, a lógica da indústria do entretenimento
TALES AB'SÁBER
ESPECIAL PARA A FOLHA
O mundo pop já conhece suas próprias ruínas. Toda
ruína é semelhante na fisionomia,
mas guarda uma história particular, perdida em suas lacunas.
A vida e a morte, e sua dança na
dinâmica da vida pop -em que
personalidade, expressão, imagem e mercadoria se imbricam
de modo único-, já podem ser
catalogadas em um conjunto
de possibilidades, "topoi" existenciais dos que atuam no império da imagem espetacular.
Há muito se conhecem os
suicídios desejados, atuados,
da impossibilidade de sobreviver à contradição entre a arte e
a negatividade social da crítica;
o movimento da contracultura,
moderno, versus o império do
espetáculo e a imagem capital
do ídolo, que se torna um reprodutor e também um responsável pelo sistema geral do
fetichismo, do poder.
Os "war heroes" dos anos
1960 e 70 ou se mataram
-Hendrix, Joplin, Morrison,
Vicious- ou foram mortos, em
um processo que revela a articulação de suicídio e assassinato, como o de Lennon; ou sobreviveram ao próprio suicídio
protelado, como [Keith] Richards, ou [Eric] Clapton, ou o
nosso Arnaldo Baptista; ou,
ainda, aceitaram serem mortos
simbolicamente ao reduzir o
seu nível de conflito ao grau zero da mera reprodução do
mundo como ele é.
O processo do apaziguamento histórico da ilusão de massas
da contracultura foi muito violento, uma guerra simbólica,
em que os ajustes foram feitos
na carne e na vida, e à qual muitos não sobreviveram. A responsabilidade dessa violência
foi totalmente transferida aos
dionisíacos.
Michael Jackson representou outro modo de viver e de
morrer no universo tanático
dionisíaco do pop. Ele é um artista positivo, da afirmação do
que existe, e da realização total
desse próprio espaço social e
histórico em seu corpo. Em
primeiro lugar, tudo já foi dito
sobre ele, e tocar outra vez no
sistema explícito de suas formas e de seu dilema é simplesmente confirmar um clichê,
uma reiteração do espetacular.
Mas, paradoxalmente, é este
mesmo um dos aspectos mais
importantes de sua forma humana e política: Jackson se
transformou em um objeto de
visibilidade total, ele passou a
viver sob o signo daquilo que os
psicanalistas chamam de
"atuação", em uma escala de
massas talvez jamais vista.
Isso quer dizer que apenas
externalizando tudo o que sentia e vivia e passando ao ato, ao
teatro da realidade exterior visível, o que portava em si, ele
podia chegar a conhecer algo
de si mesmo. Ao contrário de
alguém que sonha, e preserva
um ponto de mistério em seus
sonhos, e uma relação de interioridade consigo mesmo,
Jackson expulsava o sonho de
si realizando-o na onipotência
de seu lugar real de poder, no
espetáculo e no dinheiro.
Zumbi
Sua atuação total dos anos
1980 e 90, seu espetáculo total,
incluindo aí o próprio corpo, a
ponto de virar uma coisa de si
próprio, sinalizou mesmo a
época de mudança do modo de
orientar a subjetividade frente
ao crescente poder do mercado
e o falimentar valor da política:
do humanismo do sujeito sonhador ao fetichismo e exibicionismo do psiquismo atuador, que busca se identificar
com o poder crescente e total
da coisa na cultura, a ação visível da própria forma mercadoria sobre os homens.
Seu sonho realizado, exposto
ao voyeurismo desejante de
milhões, totalmente projetado
na realidade que o cercava, tornou-se de fato o pesadelo da regressão humana ao polimorfo
perverso das origens de todos
nós, metamorfoseado em espetáculo, hipervisível para todos,
sem mais dimensão de intimidade ou interioridade.
Desde "Thriller" Jackson
tornou-se o efeito especial por
excelência, a imagem técnica
da própria indústria atuando
sem parar, encarnada.
O sonho foi acompanhado
universalmente em tempo real.
Um travestismo total, estranhamente familiar, que invertia e suspendia o sentido de tudo: o bonito jovem negro tornou-se andrógino, mas também branco, não apenas Diana
Ross, mas também Liz Taylor,
mas também, à medida que envelhecia, tornou-se imune ao
tempo, perpetuamente jovem,
ou criança, mas também coisa,
brinquedo, o próprio corpo da
mercadoria, boneco do sonho
pop americano, ou Barbie, que
virou Chuck, ou ídolo pop que
virou múmia, ou Michael Jackson que virou zumbi...
Este novo Frankenstein espetacular, que realizou em sua
metamorfose milionária e sinistra o estatuto autoritário da
técnica, do dinheiro e da mercadoria sobre o corpo humano
e sobre as relações do sentido
das coisas, acabou por virar, e
revelar, o pesadelo americano
e, se todos os seus consumidores contribuíram com seu gozo
diante da degradação do jovem
ídolo, no fim das contas Jackson simplesmente não poderia
ser preso pela América, como
deveria ter sido, quando passou
a "devorar" criancinhas como
em um conto de fadas bizarro,
que vem do real.
Todos sabemos, e Michael
Jackson teve a loucura (ou a sanidade?) de deixar isto explícito, que aquela criança linda que
entrou para a indústria do espetáculo aos cinco anos de idade, com voz de "castrato" e o
soul de Marvin Gaye, é que foi
devorada pelo verdadeiro
monstro do nosso tempo. Mas
o seu próprio desejo também
criou esse monstro.
No final dos anos 1960, quando os Jackson 5 assinavam seu
contrato com a Motown, um
outro gênio, de outra família da
música negra e pop americana,
Sly, com sua família Stone, cantava ironicamente aquilo que o
lindo menininho Jackson, com
seu canto e sua dança de fazer
chorar, um dia representaria
inteiramente, sacrificando a isso todo corpo e espírito: "All
the plastic people" [Toda a gente de plástico].
O amor de Diana Ross por ele
era ao mesmo tempo admiração pelo enorme talento da música negra e simples amor materno, numa preocupação limite sobre o destino humano daquele profissional bebê. Em
1989, Gilberto Gil sinalizava a
conexão interior de transformismo, poder e morte, que todos intuímos no ídolo: "Bob
Marley morreu/ Porque além
de negro era judeu/ Michael
Jackson ainda resiste/ Porque
além de branco ficou triste".
Entre o menininho maravilhoso que foi invadido pela indústria tão radicalmente cedo e
a coisa em si do espetáculo, e a
cena perversa acompanhada
por todos, do adulto que era pura visibilidade, temos a história
da assimilação negra ao mercado e ao fetichismo industrial
americano, que não se tornou
libertária. Michael foi um verdadeiro cidadão Kane do momento avançado do capitalismo turbinado. De fato, um "cidadão quem?"; ou, melhor, "cidadão o quê?".
TALES AB'SÁBER , psicanalista, é autor de "O
Sonhar Restaurado" (Ed. 34).
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