São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001

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EINSTEIN e ROSSMANN

Piadas, anedotas, histórias engraçadas, não sei qual palavra escolher para esse gênero de relato cômico extremamente curto de que, um dia, me beneficiei grandemente, pois Praga era a metrópole das piadas. Piadas políticas. Piadas judaicas. Piadas sobre os camponeses. E sobre os médicos. E um curioso gênero de piadas sobre os professores sempre avoados e sempre munidos, não sei por quê, de um guarda-chuva.
Einstein acaba de encerrar sua aula na Universidade de Praga (sim, ele lecionou ali durante algum tempo) e se prepara para sair. "Senhor professor, pegue seu guarda-chuva, está chovendo!" Einstein contempla pensativo seu guarda-chuva num canto da sala e responde ao estudante: "Sabe, meu caro, eu costumo esquecer meu guarda-chuva, é por isso que tenho dois deles. Um está em casa, o outro eu guardo na universidade. Claro, eu poderia levá-lo agora, já que, como você disse com muita pertinência, está chovendo. Mas nesse caso eu acabaria tendo dois guarda-chuvas em casa e nenhum aqui". Dito isso, ele sai à chuva.
O romance "América", de Kafka, começa com o mesmo motivo de um guarda-chuva incômodo, embaraçador, perdido a todo instante; Karl Rossmann, carregado de uma pesada mala em meio a um empurra-empurra, está prestes a sair de um paquete no porto de Nova York; subitamente ele se lembra de seu guarda-chuva, esquecido no fundo do barco. Ele confia sua mala ao jovem que conheceu durante a viagem e, como o caminho de volta está barrado pela multidão, desce uma escada que lhe é desconhecida e se perde nos corredores; enfim ele vê uma porta de cabine aberta e lá dentro um homem, um foguista. Ele lhe dirige a palavra e este, loquaz, se queixa dos superiores. Como a conversa dura certo tempo, o foguista convida Karl a se abancar, por mais comodidade, em sua cama.
A impossibilidade psicológica dessa situação salta aos olhos. De fato, o que nos contam não é verdade! É uma piada ao término da qual, claro, Karl ficará sem a mala e sem o guarda-chuva! Sim, é uma piada; porém Kafka não a conta como se contam piadas; ele expõe longamente, em detalhes, explicando cada gesto a fim de que pareça psicologicamente digno de crédito; Karl sobe na cama e, embaraçado, ri de sua falta de jeito; depois de ter jogado muita conversa fora, de repente ele diz consigo, com uma curiosa lucidez, que melhor seria "ir procurar sua mala que ficar ali dando conselhos...". Kafka reveste o inverossímil com a aparência do verossímil, o que confere a esse romance (e a todos os seus romances) um inimitável encanto mágico.



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