São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001

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PONTE PRATEADA

Alguns anos após o encontro em Praga, mudei-me para a França, onde, assim quis o acaso, Carlos Fuentes era embaixador do México. Na época eu morava em Rennes e, durante meus breves passeios a Paris, eu ficava na casa dele, numa mansarda da embaixada, e tomava com ele cafés da manhã que se prolongavam em discussões sem fim.
De cara, vi minha Europa Central na vizinhança imprevista da América Latina: dois confins do Ocidente situados em extremidades opostas; duas terras negligenciadas, menosprezadas, abandonadas, duas terras excluídas; e as duas partes do mundo mais profundamente marcadas pela experiência traumatizante do barroco. Digo traumatizante porque o barroco chegou à América Latina como a arte do conquistador e chegou a meu país natal trazida pela Contra-Reforma sanguinolenta, o que incitou Max Brod a chamar Praga de "Cidade do Mal". Eram duas partes do mundo iniciadas na misteriosa aliança do mal e da beleza.
Nós conversamos e eu vi uma ponte prateada, leve, trêmula, cintilante, erigida como um arco-íris arqueado no céu entre minha pequena Europa Central e a imensa América Latina; uma ponte que unia as estátuas extáticas de Matyas Braun em Praga e as igrejas ensandecidas no México. E pensei também numa outra afinidade de nossas duas terras natais: elas ocupavam uma posição-chave na evolução do romance do século 20: primeiro, os romancistas centro-europeus (Carlos me falava de "Os Sonâmbulos", de Hermann Broch, como do mais importante romance do século 20); depois, cerca de 20, 30 anos mais tarde, os romancistas latino-americanos, meus contemporâneos.
Descobri depois os romances de Ernesto Sabato. Em "Abaddon - O Exterminador", ele diz: "O romance é hoje o único observatório de onde se pode abarcar a vida humana como um todo". Ao dizer isso, ele não pensa num afresco extensivo da vida social, numa nova "Comédia Humana", mas numa visão sintética da existência que só pode proceder "dessa atividade do espírito que nunca dissociou o indissociável: o romance".
Meio século antes dele, do outro lado do mundo (outra vez eu vi vibrar sobre minha cabeça a ponte prateada), o Broch dos "Sonâmbulos" e o Musil de "O Homem sem Qualidades" (ed. Nova Fronteira) pensaram a mesma coisa. Na época em que os surrealistas elevavam a poesia à condição de primeira das artes, eles conferiram essa posição suprema ao romance.



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