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A DERROTA SEM GRANDEZA
O pobre Alfonso Quijada quis erguer-se a personagem
lendária de cavaleiro errante. Em toda a história da literatura, Cervantes conseguiu justamente o inverso; lançou por terra um personagem lendário: no mundo da
prosa. A prosa: essa palavra não significa somente uma
língua não versificada; significa também: o caráter concreto, cotidiano, corpóreo da vida. Dizer que o romance
é a arte da prosa não é mais, assim, um truísmo; é a definição dessa arte. Homero não se pergunta se, depois de
seus numerosos combates corpo-a-corpo, Aquiles ou
Ulisses conservaram intatos seus dentes. Ao contrário,
para Dom Quixote e para Sancho, os dentes são uma
preocupação perpétua, os dentes que doem, os dentes
que faltam. "Sancho, Sancho, um diamante não é tão
precioso quanto um dente."
A morte de Dom Quixote é tanto mais emocionante
por ser prosaica: despida de patos. Ele já ditou seu testamento e, depois, durante três dias, agoniza rodeado de
pessoas que sinceramente o amam: contudo "isso não
impediu que a sobrinha comesse, que a governante bebesse e que Sancho estivesse de bom humor. Pois o fato
de herdar alguma coisa apaga ou atenua o pesar que o
homem deve ao morto".
Dom Quixote explicou a Sancho que Homero e Virgílio não descreviam os personagens "tal como eram, mas
tal como deveriam ser para servir de exemplos de virtude às gerações futuras". Ora, o próprio Dom Quixote é
tudo menos um exemplo a seguir. Os personagens romanescos não exigem que os admiremos por suas virtudes. Exigem que os compreendamos, e isso é coisa totalmente diversa. Os heróis da epopéia vencem ou, se
são derrotados, guardam até o último suspiro sua grandeza. Dom Quixote foi derrotado. E sem grandeza nenhuma. Pois, de saída, tudo está claro: a vida humana
como tal é uma derrota. A única coisa que nos resta
diante dessa inelutável derrota chamada vida é tentar
compreendê-la.
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