São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001

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A DERROTA SEM GRANDEZA

O pobre Alfonso Quijada quis erguer-se a personagem lendária de cavaleiro errante. Em toda a história da literatura, Cervantes conseguiu justamente o inverso; lançou por terra um personagem lendário: no mundo da prosa. A prosa: essa palavra não significa somente uma língua não versificada; significa também: o caráter concreto, cotidiano, corpóreo da vida. Dizer que o romance é a arte da prosa não é mais, assim, um truísmo; é a definição dessa arte. Homero não se pergunta se, depois de seus numerosos combates corpo-a-corpo, Aquiles ou Ulisses conservaram intatos seus dentes. Ao contrário, para Dom Quixote e para Sancho, os dentes são uma preocupação perpétua, os dentes que doem, os dentes que faltam. "Sancho, Sancho, um diamante não é tão precioso quanto um dente."
A morte de Dom Quixote é tanto mais emocionante por ser prosaica: despida de patos. Ele já ditou seu testamento e, depois, durante três dias, agoniza rodeado de pessoas que sinceramente o amam: contudo "isso não impediu que a sobrinha comesse, que a governante bebesse e que Sancho estivesse de bom humor. Pois o fato de herdar alguma coisa apaga ou atenua o pesar que o homem deve ao morto".
Dom Quixote explicou a Sancho que Homero e Virgílio não descreviam os personagens "tal como eram, mas tal como deveriam ser para servir de exemplos de virtude às gerações futuras". Ora, o próprio Dom Quixote é tudo menos um exemplo a seguir. Os personagens romanescos não exigem que os admiremos por suas virtudes. Exigem que os compreendamos, e isso é coisa totalmente diversa. Os heróis da epopéia vencem ou, se são derrotados, guardam até o último suspiro sua grandeza. Dom Quixote foi derrotado. E sem grandeza nenhuma. Pois, de saída, tudo está claro: a vida humana como tal é uma derrota. A única coisa que nos resta diante dessa inelutável derrota chamada vida é tentar compreendê-la.



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