São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001

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+ brasil 502 d.C.

Os amigos perdidos da velhice

José Arthur Giannotti


Hoje em dia convivemos com uma forma peculiar de alteridade pela qual o outro é querido antes de se pôr como caso da norma; não é o que ocorre com nossos amores da mais variada espécie? Se meu filho tivesse cometido uma infração imperdoável, sem dúvida eu preferiria que ele existisse a despeito de sua falta


Os verdadeiros amigos se fazem na juventude, e na velhice muitos se perdem. Não me refiro àqueles ceifados pela morte, pois esses continuam na memória como pontos de referência, intacta vibração demarcando o terreno de nossas solidariedades passadas, mas àqueles consumidos pela própria dialética da amizade contemporânea. A consolidação da intimidade como terreno peculiar à nossa sociabilidade empresta à amizade novo sentido. Tudo depende de como nos relacionamos com a norma moral. Nossa experiência com o dever foi relativizada pela diversidade dos sistemas morais com que convivemos. Por certo agimos em referência a um deles, seguimos regras a que outros também se submetem, mas somos obrigados a reconhecer que nem sempre o conteúdo dessas regras é vivido e implementado da mesma maneira por todos aqueles com quem mantemos contato.

Fonte de invenção
Por trás da universalidade abstrata da norma como opinião se escondem exercícios diferentes. A todos, por exemplo, devemos respeito, o reconhecimento de que o outro é uma espécie de coisa sagrada, que deve ser aceito na sua peculiaridade, quer como ser configurado pelas relações que mantém com seu mundo, vale dizer, como agente, quer, ademais, como alguém que foge das regras de seu mundo e do meu. Ora, o respeito que se deve ter pelo outro quando ele se apresenta como fissura do mundo é muito diferente daquele respeito que o toma como agente de uma comunidade ética. Lembremos que essa comunidade se amplia ou se estreita ao sabor das práticas históricas. O ser humano deve ser respeitado, mas o escravo, como diziam os antigos, é antes de tudo instrumento vocal. No entanto eles mesmos descobriram nele o amigo e o ser dotado de razão. Como analisar essa mudança de aspecto? O outro se apresenta também como fonte de invenção, de surpresas que colorem o mundo vivido e presente com pigmentos ainda desconhecidos. Uma cena do filme "Amistad" (1997), dirigido por Steven Spielberg, ilustra o que estou querendo dizer. Depois de se revoltarem contra traficantes espanhóis que os levavam a um mercado de escravos, os africanos são aprisionados pelas autoridades da Nova Inglaterra. Se fossem apenas mercadoria, coisa em contraposição à pessoa, deveriam ser devolvidos a seus legítimos donos, os espanhóis, ou, no caso contrário, remetidos para a África. A dificuldade de enquadrar esse caso na regra ainda se complica pelo fato de a sociedade estar cindida, prestes a entrar na Guerra de Secessão (1861-1865), que aboliria de vez a escravidão na América do Norte. Diversos sistemas morais se confrontam na medida em que as respectivas comunidades entram em luta, delineando diferentemente o âmbito do que deve ser respeitado. Aos poucos, porém, são os próprios africanos que vão demonstrando sua humanidade até que, num dado momento, ela é finalmente posta e reconhecida. Isso acontece quando o líder dos prisioneiros, Cinque, em pleno julgamento, se levanta e exclama em seu inglês quebrado: "Give us free". Impossível desconhecer o apelo expresso na língua dominante e feito por indivíduos que acabaram de revelar sua própria história. Ao mudar o aspecto pelo qual são vistos, os outros se integram numa mesma comunidade ética, de ambos os lados se torna possível assim invocar seus antepassados comuns, a fim de que, estando presentes no corpo do tribunal, possam orientar a determinação do caso, situado agora em vista da transcendência do mesmo mundo. O outro rompe o véu de sua alteridade distante e os dois mundos se fazem um só.

Intimidade e moralidade
Hoje em dia convivemos com uma forma peculiar de alteridade pela qual o outro é querido antes de se pôr como caso da norma. Não é o que ocorre com nossos amores da mais variada espécie? Se meu filho tivesse cometido uma infração imperdoável, sem dúvida eu preferiria que ele existisse a despeito de sua falta. Isso nem sempre ocorre com os agentes responsáveis pela implementação das regras da moralidade pública, pois, antes que existam, importa a norma independentemente de quem deva segui-la. Não é possível viver em sociedade sem regras morais que delimitem o modo de viver em público; isto se impõe antes que se leve em consideração quem está seguindo essas regras. Esse distanciamento entre a intimidade e a moralidade pública redefine então o sentido da amizade, que se apresenta assim na qualidade de colchão, amortecendo os rigores do pólo da intimidade e do pólo da moralidade pública. O amigo é o conivente, aquele com o qual se convive e que de certo modo nos ajuda a negociar com as normas. No final das contas, o amigo também é nosso quebra-galho, coloca-se ao nosso lado disposto a considerar certos atos como fugindo ao estrito cumprimento da regra. Visto que certas ações nem cumprem nem infringem uma determinada norma, mas se põem como casos ambíguos (isso "não é bem assim", tal como foi prescrito pela regra), a amizade contemporânea passa a jogar no interior dessa zona cinzenta. Espera-se do amigo solidariedade, que esteja conosco para suportar as vicissitudes da vida, inclusive as vicissitudes do seguimento das normas. Por isso, ao contrário do que acontecia na Antiguidade, hoje não é imoral ser amigo de pessoas nem tanto virtuosas.

Virtude capital
É precisamente essa moderna negociação com a norma que se complica com a chegada da velhice. Em termos muito gerais, o outro falha ao deixar de corresponder às expectativas de solidariedade. Logo no início de seu diálogo "Cato Maior ou da Velhice", Cícero comenta que o velho tende a ser mais virtuoso do que o jovem, pois a virtude se aprende com o passar dos anos.
O mesmo acontece com o ser humano moderno, mas, para nós, que experimentamos a diversidade dos sistemas morais, a tolerância se torna a virtude capital. Ora, se o ancião tem mais oportunidades para aprender a ser tolerante, em contrapartida, esse progressivo exercício da tolerância vem especificá-la e ponderá-la de maneira diferente. Nem todos aprendem a ser tolerantes para as mesmas coisas ou desenvolvem a mesma medida para suas tolerâncias.
Obviamente é quando os amigos vão para o espaço público que essa dilaceração se torna mais intensa, pois aí a regra é querida antes do caso. Mas, já que só vem a ser totalmente compreendida pelo caso, alguns deles deixam se ser apenas repetições e passam a ser então iluminados de modo diverso, apresentam-se sob novo aspecto, conforme o julgamento se faça a partir da prática de grupos diferentes, quando não antagônicos.
A essa altura do aprendizado da virtude, o sujeito julga como intolerável o que outro julga de modo contrário. A diferença não tende assim a ser julgada como traição? Se a política separa amigos de inimigos, ela, a despeito de construir uma teia de alianças, não é igualmente celeiro de inimizades?
Além do mais, os membros de um mesmo grupo não tendem a ponderar diversamente o contato com essa alteridade? "Você traiu nosso passado comum, sendo conivente com nossos inimigos", assim alguém acusa de dedo em riste. No entanto, ainda no mesmo grupo, os julgamentos tendem a diferir na medida em que o poder de cada um é ponderado diferentemente. "Você não me apoiou como devia", dirá um amigo, embora atribua ao acusado mais poder do que ele tem de fato. "Você não percebeu que está sendo utilizado por outrem em meu prejuízo", dirá outro. "Você não me deu aquele meio ponto necessário para eu passar de ano", quando a questão é julgar o desempenho em geral. Desse modo, se com o tempo todos nós vamos aprendendo a ser mais tolerantes, nem sempre nos tornamos tolerantes em relação às mesmas coisas, de sorte que, pouco a pouco, intolerantes na nossa tolerância, vamos cortando os laços com os amigos feitos na juventude.

Nem todos aprendem a ser tolerantes para as mesmas coisas ou desenvolvem a mesma medida para suas tolerâncias


Haveria forma de evitar essa perda? As vicissitudes do cumprimento da regra moral podem ser evitadas na medida em que ela passa a ser efetuada automaticamente. O puritano é o autômato da virtude, transforma suas ações num ritual que segue sem alma uma coreografia previamente definida. Não existe hoje em dia certo puritanismo da amizade? Isso ocorre quando alguém abraça um amigo como se fosse um amigo qualquer, com o mesmo respeito neutralizado, como se todos fossem igualmente ponderáveis, como se cada um não possuísse estilo peculiar em sua dança da vida. No circuito dessa prática, o indiferente não perde amigos porque não os tem de fato. Mas, dessa perspectiva, valeria a pena ter amigos, quando a diferença em tê-los serve apenas para encobrir uma profunda solidão, quando o preenchimento da norma se converte num invólucro vazio para evitar o risco de viver?


José Arthur Giannotti é filósofo e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".



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