São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001

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Em sua obra mais ambiciosa, o escritor irlandês Roddy Doyle mistura romance histórico e de formação para retratar o processo de independência de seu país

A infância selvagem da Irlanda

José Geraldo Couto
Colunista da Folha

O dublinense Roddy Doyle, de 43 anos, ganhou notoriedade internacional fazendo a crônica da Irlanda contemporânea, especialmente a das classes trabalhadoras (e desempregadas), em romances como "O Furgão", "Paddy Clarke Ha Ha Ha", "Os Risadinhas" (todos publicados no Brasil pela ed. Estação Liberdade), "The Commitments", "A Grande Família" e "The Woman Who Walked into Doors". Três deles foram levados às telas de cinema: "The Commitments" por Alan Parker, "A Grande Família" e "O Furgão" por Stephen Frears. Com este "Uma Estrela Chamada Henry", publicado no Reino Unido em 1999 e apresentado como primeiro volume de uma prometida trilogia, Doyle dá um passo mais ambicioso. Ambientado nas duas primeiras décadas do século 20, o livro é uma mistura de romance de formação e romance histórico -e seu êxito reside justamente no modo engenhoso como combina esses dois gêneros. Narra, em primeira pessoa, a trajetória de Henry Smart, garoto criado nos cortiços e becos miseráveis de Dublin que acaba se envolvendo na luta pela independência da Irlanda. Esse personagem singular, filho de um perneta que trabalhava como leão-de-chácara num bordel, contracena no romance com figuras reais, em especial alguns líderes do movimento revolucionário irlandês, como Eamon de Valera, Michael Collins, James Connoly etc. O que poderia ser um tedioso painel de época ou uma enjoativa obra cívico-política, como ocorre com tantos romances históricos, se revela, ao contrário, um livro cheio de vida, humor e inteligência, graças, em parte, à habilidade de Doyle em descrever situações expressivas, mas também, e principalmente, à opção por estabelecer como eixo de sua narrativa a educação sexual, política e moral de Henry Smart. Crescido nas ruas mais degradadas de Dublin, entre bêbados, mendigos e prostitutas, Henry -cuja mãe se torna alcoólatra depois de abandonada pelo marido perneta- começa a vida como um pequeno selvagem urbano, desprovido de todo valor moral e de toda motivação que não seja o instinto de sobrevivência.

Fúria vingadora
Desde os sete ou oito anos, trazendo a tiracolo um irmão mais novo, ele rouba, mendiga, trafica, caça ratos para vender a criadores de cães de briga. Vira-se, em suma, entre os bares e as docas, como um "olvidado", um "pixote", um "capitão da areia". Na maneira como Henry Smart se vê no mundo -ou, antes, na maneira como Doyle faz com que ele se veja- não há nenhum traço de autopiedade, mas sim uma incontida fúria vingadora. Sua inserção no movimento republicano irlandês não se faz sem traumas e atritos. Henry engaja-se na luta revolucionária quase por acaso, aos 14 anos, quando já tem quase dois metros e todos pensam que é maior de idade. O que o move não é a consciência nacionalista ou algo parecido, mas uma aversão instintiva e ferozmente individualista ao poder e, sobretudo, um desejo de revanche contra a própria miséria. Ao comentar uma faixa republicana com os dizeres "não servimos ao rei nem ao Kaiser", Smart comenta: "Se fosse por mim, acrescentariam "nem a ninguém", em vez de "somente à Irlanda". Eu não dava a mínima para a Irlanda". Quando pega finalmente em armas, em vez de atirar contra os soldados ingleses, direciona seus tiros para as vitrines das lojas que exibiam todas as coisas às quais nunca tivera acesso: brinquedos, doces, sapatos. "Atirei e matei tudo o que me fora negado, todo o comércio e o esnobismo que haviam zombado de mim e de outras centenas de milhares atrás de vidro e cadeados, tudo que era injustiça, iniquidade e sapatos -enquanto os outros rapazes tiravam nacos dos militares." Em momentos como esse, Henry Smart lembra o protagonista do conto de Rubem Fonseca "O Cobrador", outro individualista que revida com brutalidade contra o mundo que o exclui. Embora termine por compreender o sentido da luta pela independência, Smart mantém um agudo senso crítico diante do movimento e de suas divisões internas. Sabe-se diferente dos grandes líderes, aburguesados, elegantes, incorporados ao Parlamento. Será sempre um "outsider". "Eu estava bem no meio do que se tornaria uma grande, grande história; estava moldando o destino de meu país; era um dos afilhados de Collins, mas na verdade me encontrava excluído de tudo. (...) Éramos anônimos e descartáveis, tão mortos quanto os pracinhas na França. Carregávamos armas e recados. Éramos as iscas e os bobos que levavam a culpa. Obedecíamos às ordens e matávamos."

Educação amorosa
Falando, ao que tudo indica, pela boca de seu personagem, Doyle expõe a cisão de classe que perpassa inevitavelmente todos os movimentos políticos.
Assim, distingue claramente a história oficial, heróica e luminosa, e a história das massas anônimas, uma história triste, úmida e cinzenta como a própria Dublin. Michael Collins está para a primeira como Henry Smart está para a segunda.
Entrelaçada à evolução política do personagem, acompanhamos sua educação sexual e amorosa. Pode-se censurar, aqui, uma complacência algo infantil do autor diante das proezas sexuais de seu jovem garanhão.
Mas não deixa de ser interessante o fato de o processo de educação da libido de Henry Smart -inicialmente um bruto que vê a mulher como mero desaguadouro de seu desejo- espelhar sua jornada em direção ao entendimento de seu lugar no mundo.
Desnecessário dizer que a juventude selvagem e turbulenta desse admirável personagem de ficção encarna a juventude não menos selvagem e turbulenta da Irlanda independente.

Uma Estrela Chamada Henry
378 págs., R$ 34,00
de Roddy Doyle. Tradução de Lidia Luther. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, SP, tel. 0/ xx/11/ 3661-2881).



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