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Em sua obra mais ambiciosa, o escritor irlandês Roddy Doyle mistura romance
histórico e de formação para retratar o processo de independência de seu país
A infância selvagem da Irlanda
José Geraldo Couto
Colunista da Folha
O dublinense Roddy Doyle, de 43
anos, ganhou notoriedade internacional fazendo a crônica
da Irlanda contemporânea, especialmente a das classes trabalhadoras
(e desempregadas), em romances como
"O Furgão", "Paddy Clarke Ha Ha Ha",
"Os Risadinhas" (todos publicados no
Brasil pela ed. Estação Liberdade), "The
Commitments", "A Grande Família" e
"The Woman Who Walked into Doors".
Três deles foram levados às telas de cinema: "The Commitments" por Alan
Parker, "A Grande Família" e "O Furgão" por Stephen Frears.
Com este "Uma Estrela Chamada
Henry", publicado no Reino Unido em
1999 e apresentado como primeiro volume de uma prometida trilogia, Doyle dá
um passo mais ambicioso. Ambientado
nas duas primeiras décadas do século 20,
o livro é uma mistura de romance de formação e romance histórico -e seu êxito
reside justamente no modo engenhoso
como combina esses dois gêneros.
Narra, em primeira pessoa, a trajetória
de Henry Smart, garoto criado nos cortiços e becos miseráveis de Dublin que
acaba se envolvendo na luta pela independência da Irlanda.
Esse personagem singular, filho de um
perneta que trabalhava como leão-de-chácara num bordel, contracena no romance com figuras reais, em especial alguns líderes do movimento revolucionário irlandês, como Eamon de Valera, Michael Collins, James Connoly etc.
O que poderia ser um tedioso painel de
época ou uma enjoativa obra cívico-política, como ocorre com tantos romances
históricos, se revela, ao contrário, um livro cheio de vida, humor e inteligência,
graças, em parte, à habilidade de Doyle
em descrever situações expressivas, mas
também, e principalmente, à opção por
estabelecer como eixo de sua narrativa a
educação sexual, política e moral de
Henry Smart.
Crescido nas ruas mais degradadas de
Dublin, entre bêbados, mendigos e prostitutas, Henry -cuja mãe se torna alcoólatra depois de abandonada pelo marido
perneta- começa a vida como um pequeno selvagem urbano, desprovido de
todo valor moral e de toda motivação
que não seja o instinto de sobrevivência.
Fúria vingadora
Desde os sete ou
oito anos, trazendo a tiracolo um irmão
mais novo, ele rouba, mendiga, trafica,
caça ratos para vender a criadores de
cães de briga. Vira-se, em suma, entre os
bares e as docas, como um "olvidado",
um "pixote", um "capitão da areia".
Na maneira como Henry Smart se vê
no mundo -ou, antes, na maneira como Doyle faz com que ele se veja- não
há nenhum traço de autopiedade, mas
sim uma incontida fúria vingadora.
Sua inserção no movimento republicano irlandês não se faz sem traumas e atritos. Henry engaja-se na luta revolucionária quase por acaso, aos 14
anos, quando já tem quase dois metros e todos
pensam que é maior de
idade. O que o move não é
a consciência nacionalista ou algo parecido, mas uma aversão instintiva e ferozmente individualista ao poder e, sobretudo, um desejo de revanche contra a
própria miséria.
Ao comentar uma faixa republicana
com os dizeres "não servimos ao rei nem
ao Kaiser", Smart comenta: "Se fosse por
mim, acrescentariam "nem a ninguém",
em vez de "somente à Irlanda". Eu não
dava a mínima para a Irlanda".
Quando pega finalmente em armas,
em vez de atirar contra os soldados ingleses, direciona seus tiros para as vitrines
das lojas que exibiam todas as coisas às
quais nunca tivera acesso: brinquedos,
doces, sapatos.
"Atirei e matei tudo o que me fora negado, todo o comércio e o esnobismo
que haviam zombado de mim e de outras centenas de milhares atrás de vidro e
cadeados, tudo que era injustiça, iniquidade e sapatos -enquanto os outros rapazes tiravam nacos dos militares."
Em momentos como esse, Henry
Smart lembra o protagonista do conto de
Rubem Fonseca "O Cobrador", outro individualista que revida com brutalidade
contra o mundo que o exclui.
Embora termine por compreender o
sentido da luta pela independência,
Smart mantém um agudo
senso crítico diante do
movimento e de suas divisões internas. Sabe-se diferente dos grandes líderes, aburguesados, elegantes, incorporados ao
Parlamento. Será sempre
um "outsider".
"Eu estava bem no meio
do que se tornaria uma grande, grande
história; estava moldando o destino de
meu país; era um dos afilhados de Collins, mas na verdade me encontrava excluído de tudo. (...) Éramos anônimos e
descartáveis, tão mortos quanto os pracinhas na França. Carregávamos armas e
recados. Éramos as iscas e os bobos que
levavam a culpa. Obedecíamos às ordens
e matávamos."
Educação amorosa
Falando, ao
que tudo indica, pela boca de seu personagem, Doyle expõe a cisão de classe que
perpassa inevitavelmente todos os movimentos políticos.
Assim, distingue claramente a história
oficial, heróica e luminosa, e a história
das massas anônimas, uma história triste, úmida e cinzenta como a própria Dublin. Michael Collins está para a primeira
como Henry Smart está para a segunda.
Entrelaçada à evolução política do personagem, acompanhamos sua educação
sexual e amorosa. Pode-se censurar,
aqui, uma complacência algo infantil do
autor diante das proezas sexuais de seu
jovem garanhão.
Mas não deixa de ser interessante o fato
de o processo de educação da libido de
Henry Smart -inicialmente um bruto
que vê a mulher como mero desaguadouro de seu desejo- espelhar sua jornada em direção ao entendimento de seu
lugar no mundo.
Desnecessário dizer que a juventude
selvagem e turbulenta desse admirável
personagem de ficção encarna a juventude não menos selvagem e turbulenta da
Irlanda independente.
Uma Estrela Chamada
Henry
378 págs., R$ 34,00
de Roddy Doyle. Tradução de Lidia Luther. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP
01155-030, SP, tel. 0/ xx/11/
3661-2881).
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