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Um mistério cristalino
Em "Coisas e Anjos de Rilke", Augusto de Campos traduz
os principais poemas do autor tcheco de língua alemã
Kathrin H. Rosenfield
especial para a Folha
Nada teria aparentemente mudado durante os 70 anos que
nos separam da morte do mais
acabado dos poetas alemães.
Em 1927, Robert Musil indignava-se com
o fato de que a morte de Rilke (1875-1926), que teria merecido um luto de Estado, não tivesse produzido mais rumor
do que a estréia de um filme. Hoje, há
dois acontecimentos extraordinários
que devem caber em poucas linhas. Para
falar do prodígio da tradução é necessário falar do próprio Rilke, do lugar paradoxal que ele ocupa não só no imaginário brasileiro mas também no contexto
alemão.
Muitos pensam em Rilke como num
poeta "inspirado" ou "místico", amante
de temas preciosos ou "aristocráticos". E
houve época em que ele passava por um
arauto das damas seletas. Décio Pignatari até identificou suas poesias como "bijus de um níquel" nos quais certas mentes fitam seus sonhos sentimentais de
elevação espiritual. Foi breve esse desprezo, é bem verdade, e logo chegou
também ao Brasil o seu resgate via Heidegger, Paul de Man e, sobretudo, João
Cabral, que viu claramente o quanto Rilke está longe de qualquer parnasianismo: "Preferir a pantera ao anjo,/ condensar o vago em preciso" -eis o que distingue Rilke daquilo que banalmente
chamamos de "misticismo".
Rilke e seu tradutor dão a exata medida
dos cálculos infinitesimais que levam o
poeta a algo mais do que metáforas
"mentirosas" ou parciais. Dizer que a
poesia de Rilke (e a de seu tradutor) é
perfeita não é uma hipérbole distraída.
Significa, ao contrário, que ela perfaz o
círculo todo que liga, inseparavelmente,
as coisas concretas às essências imateriais. Ela faz sentir que a pantera é realmente anjo e que o anjo é pantera. E, nesse ponto preciso, sentimentos, realidades e idéias se deixam converter uns nos
outros.
O tradutor de Rilke enfrenta uma
imensa dificuldade principalmente porque os "Novos Poemas" e os "Sonetos a
Orfeu" são limpos, translúcidos e... profundos. Como traduzir uma profundidade que é imponderável, sem peso e volume? Como encontrar o traçado daquilo
que, em Rilke, é risco apenas, um risco,
porém, que penetra, de imediato, no
âmago das coisas? Esse tipo de "profundidade" não tem nada do ocultismo esotérico, ele é mais "uma faca só lâmina".
Citemos um único exemplo, para não
contaminar essas jóias da tradução com
o laborioso esforço da crítica : "Um deus
pode. Mas como erguer do solo,/ na estreita lira, o canto de uma vida?". Esses
dois versos alteram por completo as duas
frases do verso alemão, mas nada captaria com maior precisão, leveza e graça
sua essência, seu movimento, seu giro:
abreviatura de inúmeras sensações e de
infinitos pensamentos que, repentinamente, se ajeitam, se encaixam e se concentram num ínfimo ponto, livres agora
do peso do tempo, da sucessão, das cansativas
enumerações e dos senões
relativos da reflexão.
A escolha desta coletânea abrange admiravelmente a gama inteira na
qual se move a poesia de
Rilke. As temáticas solenes (amor, morte, condição do poeta),
entrelaçadas em magníficos nós, não excluem os toques de doce comicidade que
encontramos em Cervantes e Flaubert,
em Dostoiévski, Kafka e Guimarães Rosa. Menciono esses narradores aparentemente alheios ao poeta porque um dos
traços mais encantadores de Rilke (traço
que o distingue dos modernos mais cerebrais e sobriamente intelectuais) é a incrível simplicidade de sua dicção.
Nela respira, aparentemente, a fala natural. Essa naturalidade da simples conversa (seja ela discurso interior ou diálogo) dá à prosa de Flaubert como à de Rosa suas ressonâncias incomparavelmente poéticas.
Nos papagaios e flamingos de Rilke,
encontramos o mesmo amálgama de comicidade e elevação que
transforma em emblemas
de uma transcendência
"reificada" os burrinhos,
papagaios e perus de Cervantes, Flaubert e Rosa. É
evidente que a poesia de
Rilke está a anos-luz de
distância da "prosa", já
que sua "simplicidade" resume, num
lance veloz, tudo o que, na narrativa, se
estende, se explica e se analisa. No entanto o gesto-prosa de Flaubert a Rosa, o
gesto de deixar que as coisas se contem
por si mesmas, toca tangencialmente
aquele carinho contemplativo que dá à
aura extremamente preciosa, distante e
elevada de Rilke um toque irresistivelmente... próximo (?), familiar (?) -faltam-me palavras mais precisas.
Podemos chamar Rilke de poeta obcecado pelo amor, a morte e o ofício da
poesia? Sua poesia nos dá mais a sensação elevada e serena de que é possível penetrar nessas outras dimensões. A descida de Orfeu ao inferno deixa de ser uma
vaga aventura mitológica, transformando-se numa possibilidade concreta de
transpormos pelo menos por um instante sem duração a banalidade da existência no tempo. Nesse sentido, é bem verdade que Rilke é "obcecado" por falar de
uma só coisa, do assim chamado "mistério da poesia". No entanto sua precisão,
tão cristalina, desvela, a ponto de emudecermos, como na pupila de um gato, numa rosácea medieval ou no olhar de uma
cortesã pode vir a nos fitar a "totalidade
cósmica" ou a "eternidade". Em outros
tempos, isso se chamava "o olho de
Deus", mas na poesia de Rilke não se trata necessariamente do Deus da fé cristã,
porém de um (possível) deus ou, simplesmente, de "algo" totalmente outro.
É admirável quando uma tradução como esta de Augusto de Campos consegue colocar o leitor na encruzilhada central do universo de Rilke. Esse tipo de
versão nos libera no espaço de tempo da
leitura (e, se um deus quiser, além disso)
das "idées reçues" e da "onda fácil de fala
cálida", da tentação de cairmos nos chavões conceituais inexpressivos.
Quando isso acontece, é totalmente irrelevante falar de certos problemas de
leitura e interpretação. Embora minha
sensibilidade possa dizer "não" à versão
de um ou outro poema (por exemplo, o
"São Sebastião"), sinto que, na sua perfeição, essas versões realçam, pela diferença, algo essencial na minha própria
leitura do poema em alemão.
Kathrin H. Rosenfield é professora de teoria literária na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM).
A Canção do Mendigo
Vou indo de porta em porta,
ao sol e à chuva, não importa;
de repente descanso o meu ouvido
direito em minha mão direita:
minha voz me soa imperfeita,
como se nunca a tivesse ouvido.
A Montanha
Trinta e seis vezes e mais outras cem
o pintor escreveu essa montanha,
devotado, sem êxito, à façanha
(trinta e seis vezes e mais outras cem)
de entender o vulcão que ele trazia,
feliz, mesmerizado, no seu peito,
mas a montanha de perfil perfeito
não lhe quis revelar sua magia:
doando-se do ar de cada dia,
mil vezes, cada noite cintilante
abandonado, como sem valia;
cada imagem imersa num instante,
em cada forma a forma transformada,
indiferente, distante, modesta -,
sabendo, como uma visão, do nada,
acontecer atrás de cada fresta.
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