São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001

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Um mistério cristalino

Em "Coisas e Anjos de Rilke", Augusto de Campos traduz os principais poemas do autor tcheco de língua alemã

Kathrin H. Rosenfield
especial para a Folha

Nada teria aparentemente mudado durante os 70 anos que nos separam da morte do mais acabado dos poetas alemães. Em 1927, Robert Musil indignava-se com o fato de que a morte de Rilke (1875-1926), que teria merecido um luto de Estado, não tivesse produzido mais rumor do que a estréia de um filme. Hoje, há dois acontecimentos extraordinários que devem caber em poucas linhas. Para falar do prodígio da tradução é necessário falar do próprio Rilke, do lugar paradoxal que ele ocupa não só no imaginário brasileiro mas também no contexto alemão.
Muitos pensam em Rilke como num poeta "inspirado" ou "místico", amante de temas preciosos ou "aristocráticos". E houve época em que ele passava por um arauto das damas seletas. Décio Pignatari até identificou suas poesias como "bijus de um níquel" nos quais certas mentes fitam seus sonhos sentimentais de elevação espiritual. Foi breve esse desprezo, é bem verdade, e logo chegou também ao Brasil o seu resgate via Heidegger, Paul de Man e, sobretudo, João Cabral, que viu claramente o quanto Rilke está longe de qualquer parnasianismo: "Preferir a pantera ao anjo,/ condensar o vago em preciso" -eis o que distingue Rilke daquilo que banalmente chamamos de "misticismo".
Rilke e seu tradutor dão a exata medida dos cálculos infinitesimais que levam o poeta a algo mais do que metáforas "mentirosas" ou parciais. Dizer que a poesia de Rilke (e a de seu tradutor) é perfeita não é uma hipérbole distraída. Significa, ao contrário, que ela perfaz o círculo todo que liga, inseparavelmente, as coisas concretas às essências imateriais. Ela faz sentir que a pantera é realmente anjo e que o anjo é pantera. E, nesse ponto preciso, sentimentos, realidades e idéias se deixam converter uns nos outros.
O tradutor de Rilke enfrenta uma imensa dificuldade principalmente porque os "Novos Poemas" e os "Sonetos a Orfeu" são limpos, translúcidos e... profundos. Como traduzir uma profundidade que é imponderável, sem peso e volume? Como encontrar o traçado daquilo que, em Rilke, é risco apenas, um risco, porém, que penetra, de imediato, no âmago das coisas? Esse tipo de "profundidade" não tem nada do ocultismo esotérico, ele é mais "uma faca só lâmina". Citemos um único exemplo, para não contaminar essas jóias da tradução com o laborioso esforço da crítica : "Um deus pode. Mas como erguer do solo,/ na estreita lira, o canto de uma vida?". Esses dois versos alteram por completo as duas frases do verso alemão, mas nada captaria com maior precisão, leveza e graça sua essência, seu movimento, seu giro: abreviatura de inúmeras sensações e de infinitos pensamentos que, repentinamente, se ajeitam, se encaixam e se concentram num ínfimo ponto, livres agora do peso do tempo, da sucessão, das cansativas enumerações e dos senões relativos da reflexão.
A escolha desta coletânea abrange admiravelmente a gama inteira na qual se move a poesia de Rilke. As temáticas solenes (amor, morte, condição do poeta), entrelaçadas em magníficos nós, não excluem os toques de doce comicidade que encontramos em Cervantes e Flaubert, em Dostoiévski, Kafka e Guimarães Rosa. Menciono esses narradores aparentemente alheios ao poeta porque um dos traços mais encantadores de Rilke (traço que o distingue dos modernos mais cerebrais e sobriamente intelectuais) é a incrível simplicidade de sua dicção.
Nela respira, aparentemente, a fala natural. Essa naturalidade da simples conversa (seja ela discurso interior ou diálogo) dá à prosa de Flaubert como à de Rosa suas ressonâncias incomparavelmente poéticas.
Nos papagaios e flamingos de Rilke, encontramos o mesmo amálgama de comicidade e elevação que transforma em emblemas de uma transcendência "reificada" os burrinhos, papagaios e perus de Cervantes, Flaubert e Rosa. É evidente que a poesia de Rilke está a anos-luz de distância da "prosa", já que sua "simplicidade" resume, num lance veloz, tudo o que, na narrativa, se estende, se explica e se analisa. No entanto o gesto-prosa de Flaubert a Rosa, o gesto de deixar que as coisas se contem por si mesmas, toca tangencialmente aquele carinho contemplativo que dá à aura extremamente preciosa, distante e elevada de Rilke um toque irresistivelmente... próximo (?), familiar (?) -faltam-me palavras mais precisas.
Podemos chamar Rilke de poeta obcecado pelo amor, a morte e o ofício da poesia? Sua poesia nos dá mais a sensação elevada e serena de que é possível penetrar nessas outras dimensões. A descida de Orfeu ao inferno deixa de ser uma vaga aventura mitológica, transformando-se numa possibilidade concreta de transpormos pelo menos por um instante sem duração a banalidade da existência no tempo. Nesse sentido, é bem verdade que Rilke é "obcecado" por falar de uma só coisa, do assim chamado "mistério da poesia". No entanto sua precisão, tão cristalina, desvela, a ponto de emudecermos, como na pupila de um gato, numa rosácea medieval ou no olhar de uma cortesã pode vir a nos fitar a "totalidade cósmica" ou a "eternidade". Em outros tempos, isso se chamava "o olho de Deus", mas na poesia de Rilke não se trata necessariamente do Deus da fé cristã, porém de um (possível) deus ou, simplesmente, de "algo" totalmente outro.
É admirável quando uma tradução como esta de Augusto de Campos consegue colocar o leitor na encruzilhada central do universo de Rilke. Esse tipo de versão nos libera no espaço de tempo da leitura (e, se um deus quiser, além disso) das "idées reçues" e da "onda fácil de fala cálida", da tentação de cairmos nos chavões conceituais inexpressivos.
Quando isso acontece, é totalmente irrelevante falar de certos problemas de leitura e interpretação. Embora minha sensibilidade possa dizer "não" à versão de um ou outro poema (por exemplo, o "São Sebastião"), sinto que, na sua perfeição, essas versões realçam, pela diferença, algo essencial na minha própria leitura do poema em alemão.


Kathrin H. Rosenfield é professora de teoria literária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM).

A Canção do Mendigo

Vou indo de porta em porta,
ao sol e à chuva, não importa;
de repente descanso o meu ouvido
direito em minha mão direita:
minha voz me soa imperfeita,
como se nunca a tivesse ouvido.

A Montanha

Trinta e seis vezes e mais outras cem
o pintor escreveu essa montanha,
devotado, sem êxito, à façanha
(trinta e seis vezes e mais outras cem)

de entender o vulcão que ele trazia,
feliz, mesmerizado, no seu peito,
mas a montanha de perfil perfeito
não lhe quis revelar sua magia:

doando-se do ar de cada dia,
mil vezes, cada noite cintilante
abandonado, como sem valia;
cada imagem imersa num instante,
em cada forma a forma transformada,
indiferente, distante, modesta -,
sabendo, como uma visão, do nada,
acontecer atrás de cada fresta.



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