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Um cortejo de almas
Em "O Triunfo da Vida" o poeta romântico inglês Shelley
reelabora o tema clássico da descida ao mundo dos mortos
Donaldo Schüler
especial para a Folha
Temos em português o poema "The
Triumph of Life" ("O Triunfo da Vida") ,
de Percy Bysshe Shelley (1792-1822), que
está saindo pela editora Rocco. A tradução
de Leonardo Fróes impressiona bem desde o primeiro verso: "Qual presto espírito lançado à lida"
("Swift as a spirit hastening to his task"). Na tradução, os sons sibilantes do original, misturados
aos "rr" e "ll", atingem belo efeito musical.
A tradução de Fróes merece apreço pela sonoridade, pelo ritmo, pela fluência. Ao lado dos versos
em inglês, nasce um novo Shelley que fala nosso
idioma. Fróes acerta quando recria Shelley com
recursos vocabulares de românticos nossos.
Mas Fróes não se limita a traduzir. Pertence aos
tradutores que exercem o ofício com conhecimento de causa. Insere os tercetos de Shelley na
história lírico-épica encabeçada por Dante e Petrarca e vem até a vanguarda. A visão é ampla,
bem informada e pertinente. Correto é lembrar
Drummond neste apanhado. Merece menção
ainda a inventiva recriação de tercetos de Dante,
feita por Haroldo de Campos em "Pedra e Luz na
Poesia de Dante".
Brumas românticas
Contestando tendências recentes, Fróes volta, no ensaio sobre Shelley,
à biografia. Não é este o lugar para responder aos
desafios do ensaísta e tradutor. Resumamos a
questão. Os estruturalistas voltaram-se ao texto
para deslindar o arcabouço que o sustenta. Nesse
empenho, contribuíram para definir gêneros e
clarear conceitos. De que lhes valeriam biografias? Antibiográficos já foram esteticistas e formalistas antes deles. Se a biografia contribui para entender o texto, por que omiti-la?
Não esqueçamos, entretanto, que biografia não
é vida, é grafia, elaboração literária. Entre a obra
de um autor e sua biografia estamos entre dois
textos. Ir do texto à vida é teoricamente impossível. O que diz Fróes na rápida biografia de Shelley?
Que o poeta anteviu a morte. Todos antevemos a
morte. Shelley, seriamente doente, previu sua
morte no mar? Aqui a biografia
entra no terreno do fantástico.
Bem mais esclarecedor é saber
que Shelley nos deixou um poema cuja conclusão foi frustrada
pelo fim em circunstâncias imprevisíveis.
A descida ao mundo dos mortos pode ser acompanhada de
Homero até Ezra Pound. O modelo sofre, entretanto, alterações operadas por decisões que peculiarizam poetas e épocas. O poema
incompleto termina com o grito "o que é a vida?".
Tudo indica que uma possível elaboração final
não teria apagado essa indagação, já que encontramos "donde vens? aonde vais?" no corpo do
poema. Essas perguntas envoltas em brumas românticas se distanciam, entretanto, do "conhece-te a ti mesmo" helênico.
A reelaboração romântica do legado grego vê-se
no maior dos seus poemas, "Prometeu Liberto".
Shelley atribui a invenção de Júpiter à mente humana. Nessa versão, o próprio homem cria o seu
algoz. Prometeu, o rebelde, casado com Ásia (a
Terra), anatematiza o tirano. Vitorioso no protesto, o deus opressor é reduzido a nada. Teríamos aí
raízes de análises freudianas? O Platão de Shelley é
uma presença desessencializada, irracional, penumbrosa. Essa imagem está muito distante do
autor dos diálogos, interessado em salvar Atenas
da ruína. Shelley é um expoente da poesia do seu
tempo. Vê-lo dentro da revolução romântica esclarece opções.
Na via pública
"O Triunfo da Vida" não é
uma dantesca descida aos infernos. Não é descida. A Terra é o território de Shelley, sem excluir os
que se empenharam para compreendê-la cientificamente. Entre a noite que vai e o dia que surge, o
poeta, sentado à beira de uma via pública, vê, através da polvadeira de uma manhã de verão, o desfile de almas dos que já partiram. Não surpreende
que apareça Rousseau, devotado ao amor como
Platão, para identificar os passantes, gente que,
embriagada de glória, escondia a verdade da morte, entre eles: Napoleão, Voltaire, Frederico, o
Grande, Catarina da Rússia. Passam criminosos
como César e Constantino. Passam sábios como
Bacon. Passam homens divinos como Gregório e
João. Esplendem os que se identificam com a vitalidade da natureza que murmura tanto em regatos quanto em ritmos e rimas, embora não haja
resposta a porquês.
James Joyce navegou por essas águas. "O Triunfo da Vida", verso 200: "Que amei, temi, odiei, sofri, morri" ("I feared, loved, hated, suffered, did
and died"). "Finnegans Wake", 18,
21: "Chegaram, amaram, pariram,
partiram" ("They lived and laughed
and loved and left"). O romantismo
sobrevive na vanguarda. A tradução
de Leonardo Fróes alimenta nossas
reflexões.
Donaldo Schüler é ficcionista, ensaísta e
tradutor de "Finnegans Wake" (Ateliê Editorial), de James Joyce.
O Triunfo da Vida
120 págs., R$ 22,00
de Percy Shelley. Tradução de
Leonardo Fróes. Ed. Rocco (r.
Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP
20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/
507-2000).
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