São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001

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Um cortejo de almas


Em "O Triunfo da Vida" o poeta romântico inglês Shelley reelabora o tema clássico da descida ao mundo dos mortos

Donaldo Schüler
especial para a Folha

Temos em português o poema "The Triumph of Life" ("O Triunfo da Vida") , de Percy Bysshe Shelley (1792-1822), que está saindo pela editora Rocco. A tradução de Leonardo Fróes impressiona bem desde o primeiro verso: "Qual presto espírito lançado à lida" ("Swift as a spirit hastening to his task"). Na tradução, os sons sibilantes do original, misturados aos "rr" e "ll", atingem belo efeito musical. A tradução de Fróes merece apreço pela sonoridade, pelo ritmo, pela fluência. Ao lado dos versos em inglês, nasce um novo Shelley que fala nosso idioma. Fróes acerta quando recria Shelley com recursos vocabulares de românticos nossos. Mas Fróes não se limita a traduzir. Pertence aos tradutores que exercem o ofício com conhecimento de causa. Insere os tercetos de Shelley na história lírico-épica encabeçada por Dante e Petrarca e vem até a vanguarda. A visão é ampla, bem informada e pertinente. Correto é lembrar Drummond neste apanhado. Merece menção ainda a inventiva recriação de tercetos de Dante, feita por Haroldo de Campos em "Pedra e Luz na Poesia de Dante".

Brumas românticas
Contestando tendências recentes, Fróes volta, no ensaio sobre Shelley, à biografia. Não é este o lugar para responder aos desafios do ensaísta e tradutor. Resumamos a questão. Os estruturalistas voltaram-se ao texto para deslindar o arcabouço que o sustenta. Nesse empenho, contribuíram para definir gêneros e clarear conceitos. De que lhes valeriam biografias? Antibiográficos já foram esteticistas e formalistas antes deles. Se a biografia contribui para entender o texto, por que omiti-la? Não esqueçamos, entretanto, que biografia não é vida, é grafia, elaboração literária. Entre a obra de um autor e sua biografia estamos entre dois textos. Ir do texto à vida é teoricamente impossível. O que diz Fróes na rápida biografia de Shelley? Que o poeta anteviu a morte. Todos antevemos a morte. Shelley, seriamente doente, previu sua morte no mar? Aqui a biografia entra no terreno do fantástico. Bem mais esclarecedor é saber que Shelley nos deixou um poema cuja conclusão foi frustrada pelo fim em circunstâncias imprevisíveis. A descida ao mundo dos mortos pode ser acompanhada de Homero até Ezra Pound. O modelo sofre, entretanto, alterações operadas por decisões que peculiarizam poetas e épocas. O poema incompleto termina com o grito "o que é a vida?". Tudo indica que uma possível elaboração final não teria apagado essa indagação, já que encontramos "donde vens? aonde vais?" no corpo do poema. Essas perguntas envoltas em brumas românticas se distanciam, entretanto, do "conhece-te a ti mesmo" helênico. A reelaboração romântica do legado grego vê-se no maior dos seus poemas, "Prometeu Liberto". Shelley atribui a invenção de Júpiter à mente humana. Nessa versão, o próprio homem cria o seu algoz. Prometeu, o rebelde, casado com Ásia (a Terra), anatematiza o tirano. Vitorioso no protesto, o deus opressor é reduzido a nada. Teríamos aí raízes de análises freudianas? O Platão de Shelley é uma presença desessencializada, irracional, penumbrosa. Essa imagem está muito distante do autor dos diálogos, interessado em salvar Atenas da ruína. Shelley é um expoente da poesia do seu tempo. Vê-lo dentro da revolução romântica esclarece opções.

Na via pública
"O Triunfo da Vida" não é uma dantesca descida aos infernos. Não é descida. A Terra é o território de Shelley, sem excluir os que se empenharam para compreendê-la cientificamente. Entre a noite que vai e o dia que surge, o poeta, sentado à beira de uma via pública, vê, através da polvadeira de uma manhã de verão, o desfile de almas dos que já partiram. Não surpreende que apareça Rousseau, devotado ao amor como Platão, para identificar os passantes, gente que, embriagada de glória, escondia a verdade da morte, entre eles: Napoleão, Voltaire, Frederico, o Grande, Catarina da Rússia. Passam criminosos como César e Constantino. Passam sábios como Bacon. Passam homens divinos como Gregório e João. Esplendem os que se identificam com a vitalidade da natureza que murmura tanto em regatos quanto em ritmos e rimas, embora não haja resposta a porquês.
James Joyce navegou por essas águas. "O Triunfo da Vida", verso 200: "Que amei, temi, odiei, sofri, morri" ("I feared, loved, hated, suffered, did and died"). "Finnegans Wake", 18, 21: "Chegaram, amaram, pariram, partiram" ("They lived and laughed and loved and left"). O romantismo sobrevive na vanguarda. A tradução de Leonardo Fróes alimenta nossas reflexões.


Donaldo Schüler é ficcionista, ensaísta e tradutor de "Finnegans Wake" (Ateliê Editorial), de James Joyce.

O Triunfo da Vida
120 págs., R$ 22,00
de Percy Shelley. Tradução de Leonardo Fróes. Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/ 507-2000).



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