São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2007

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Ponto de fuga

Vozes interiores

A companhia Piccolo Teatro vinga Goldoni das críticas enunciadas desde o século 18: trivialidade, imitação realista da vida, falta de poesia, psicologia curta

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

No filme "Medéia" (DVD Versátil), de Pier Paolo Pasolini, há um enigmático centauro. Seu rosto expressivo parece esculpido a golpes de machado. Esse centauro é o ator Laurent Terzieff, que fascinou também Buñuel e Clouzot.
Teve uma carreira que transcorreu sobretudo no teatro.
Com 72 anos hoje, é reverenciado, com fãs, fiéis e adoradores. Representou, na última temporada teatral parisiense, "Hughie", adaptação de uma novela escrita por Eugene O"Neill [1888-1953].
A cenografia de Ludovic Hallard transformou a pequena sala do teatro Lucernaire no saguão de um hotel decadente: até os indicadores de saída de emergência tomavam o aspecto art déco de 1928.
Hughie, o antigo porteiro, morreu. O novo, meio amargo, meio conformado, adapta-se às suas funções no hotelzinho quase espelunca.
Claude Aufaure, o ator, parece ao mesmo tempo tão humano e tão ausente.
Surge então um certo Erié Smith, encarnado por Terzieff. Ser aéreo, seus gestos angulosos e elegantes como que desafiam a lei da gravidade. Olhar cor de aço, capaz de entrar em cada alma. Modula infinitamente o texto e as palavras permanecem vibrando na memória.
Erié Smith gosta de falar, de recriar o passado com uma verdade que nunca existiu. O antigo porteiro, Hughie, sabia ouvi-lo. O novo, monossilábico, entediado, não alimenta suas ilusões. Erié perdeu o antigo espelho para seus fantasmas. A vida denuncia-se então como tempo que escoa sem sentido.
Maschera
O sucesso maior da última temporada em Paris foi uma peça representada em italiano, com legendas: "Il Ventaglio" (O Leque), de Goldoni [1707-1793]. Ficou pouco em cartaz: saiu do teatro do Odéon para a Espanha, deve ir depois a Veneza.
A companhia é mítica: o Piccolo Teatro di Milano, criado por Giorgio Strehler. O amor de Strehler pelos textos de Goldoni foi imenso: seu "Arlecchino", representado por décadas, modificava-se com o tempo.
Depois da morte de Strehler, Luca Ronconi assumiu a direção do Piccolo Teatro e pôs em cena "O Leque". O Piccolo Teatro vinga Goldoni das críticas enunciadas desde o século 18: trivialidade, imitação realista da vida, falta de poesia, psicologia curta.
O gênio de Goldoni é feito de outra coisa, é social, por assim dizer. Evita o tom frívolo de seus contemporâneos franceses Beaumarchais e Marivaux, que se limitavam a nobres e criados.
"O Leque" figura a sociedade inteira de uma aldeia. Reúne sapateiro, boticário, taverneiro, dona de loja de tecidos, fidalgos decaídos, burgueses ricos.
Coerente com o espírito do autor, Ronconi os deixa em cena o tempo inteiro graças a cenários transparentes.
Todos correm atrás de seus pequenos interesses, desejos, amores, explicitados ou pressupostos. O leque do título, que passa de mão em mão, concentra tudo isso. No final, um vendaval varre a aldeia, levando o cenário consigo.
Arroubos
Na sacrossanta Comédie Française, templo oficial do teatro na França, uma nova montagem de "Partage de Midi" (Partilha do Meio-Dia), de Claudel [1868-1955]. Cenários desenxabidos, mas atores intensos para as frases sonoras, musicais.
Hóstia
Claudel, católico, transforma suas próprias experiências amorosas, seus adultérios, em terríveis interrogações místicas. Foi um viajante em terras exóticas, incluindo o Brasil. Elas lhe propiciavam angústias espirituais vazadas numa escrita de beleza arrebatada. Claudel era um sensual e um torturado, como sua irmã Camille.

jorgecoli@uol.com.br


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