São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2007

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Michel Ciment comenta o legado de Bergman e Antonioni

Ciment, da rival "Positif", diz que Bergman foi polimorfo e Antonioni, de um registro só; também ataca os festivais hoje

DA REDAÇÃO

Ao lado da revista "Cahiers du Cinéma", criada em 1952, sua rival "Positif" (fundada um ano depois) também defendeu o jovem Ingmar Bergman nos anos 50 e acompanhou a ascensão de Michelangelo Antonioni.
Seu diretor de Redação, Michel Ciment, que esteve presente na maior parte da existência da revista, não concorda com o homólogo da "Cahiers" quanto à qualidade do cinema atual.
Ciment (1928) disse à Folha que a indústria cinematográfica não permite mais a ousadia formal dos dois mestres mortos na última semana.
Assim como Frodon, o veterano jornalista da "Positif" também não enxerga herdeiros dos dois cineastas. O crítico concorda, no entanto, que existem grandes nomes em atividade e, assim como Frodon, cita Alain Resnais, Jean-Luc Godard e Hou Hsiao-hsien, entre outros. (Marcos Strecker)

 

FOLHA - As mortes de Bergman e Antonioni representam de alguma forma o fim do "grande cinema"?
MICHEL CIMENT -
Sou cético com relação às afirmações definitivas. Ainda há grandes cineastas vivos na França, como Alain Resnais, Jean-Luc Godard e Eric Rohmer, e no estrangeiro também.
Por outro lado, acho que é o fim dos grandes cineastas que apareceram nos anos 40 e 50 e que impuseram a noção de autor ao cinema, como na literatura e na pintura.
Para mim, também Federico Fellini, Orson Welles, Akira Kurosawa e Luchino Visconti representavam um grande cinema que podia conciliar o público e a crítica.
Temos hoje grandes cineastas como Hou Hsiao-hsien e Abbas Kiarostami, mas são cineastas para um público mais restrito.

FOLHA - Há ainda espaço no cinema para a mesma pretensão intelectual que Bergman e Antonioni demonstravam?
CIMENT -
Hoje é muito mais difícil. A forma como os filmes são produzidos e distribuídos, o que envolve a TV, levou a uma prudência estética e também em relação aos temas que impediria, hoje, um filme como "Persona" (66), de Bergman, ou "A Aventura", de Antonioni.

FOLHA - Bergman ou Antonioni deixaram herdeiros?
CIMENT -
Vários grandes artistas não deixaram herdeiros diretos. Vimos em um momento o cinema argentino fazendo um cinema como o de Antonioni... ou o cinema português.
Mas acho isso catastrófico, não devemos imitar os grandes estilistas porque isso vira uma paródia. Bergman e Antonioni criaram um cinema tão pessoal que os herdeiros só poderiam produzir uma caricatura.
Os que exercem mais influência são diretores como um Jean Renoir, por exemplo, ou John Ford, porque tinham uma expressão menos egocêntrica.

FOLHA - Woody Allen sempre se declarou influenciado por Bergman, trabalhou com o fotógrafo de Bergman, Sven Nykvist...
CIMENT -
Woody Allen tem duas grandes influências: Bergman e Fellini. É um americano voltado para a Europa.
E Bergman era também um grande autor cômico, não devemos esquecer que nos anos 50 filmou comédias brilhantes, como as de Ernst Lubitsch.

FOLHA - A influência do teatro foi fundamental para o cinema de Bergman?
CIMENT -
Não acho que foi fundamental. Vi algumas montagens dele, devo dizer que não fiquei impressionado. Tenho a impressão de que o fundamental em seu teatro era a atuação.
Quando diretores de teatro fazem cinema, tornam-se grandes diretores de atores, como Elia Kazan, Visconti ou George Cukor. O cinema de Bergman era muito mais inovador e revolucionário do que o seu teatro.

FOLHA - Temas de Bergman como dilemas morais ou culpa ainda são possíveis hoje?
CIMENT -
Acho que menos do que na época de Bergman e Antonioni. Esses temas são menos centrais do que há 50 anos, quando vivíamos o triunfo do existencialismo. Vi recentemente um documentário de Aleksandr Sokúrov sobre Soljenitsin, e esses temas estão muito presentes.
O que vai de fato ficar de Bergman e Antonioni é a inovação formal, a estética e o problema dos casais, da relação entre as pessoas.

FOLHA - Quais foram os principais filmes de Bergman?
CIMENT -
É muito difícil responder isso para Bergman. É um pouco como Shakespeare em relação ao teatro. Bergman se renovava constantemente, tinha uma produção variada.
Não é possível apontar "o" grande filme dele. Para sua tendência expressionista, eu citaria "Noites de Circo" (1953). Para sua expressão ascética, citaria "Persona". Para sua tendência oitocentista, "Fanny e Alexander". E para suas reflexões sobre o relacionamento, sobre os casais, apontaria "Cenas de um Casamento".

FOLHA - E os principais filmes de Antonioni?
CIMENT -
Para ele é mais fácil. "O Grito" (1957), para sua primeira fase, e "A Aventura", para o seu segundo período.
Talvez também "Identificação de uma Mulher" (82) para a sua segunda fase.

FOLHA - Antonioni antecipou o cinema digital com "O Mistério de Oberwald" (1981)?
CIMENT -
Não acho. Bergman era um gênio polimorfo, que podia adaptar Mozart, por exemplo. Já Antonioni funcionava com um só registro, o da ausência, da não-comunicação, que vai dos seus primeiros filmes até "Identificação de uma Mulher".
Tudo que ele fez fora desse registro foi um fracasso. "O Mistério de Oberwald" é uma peça filmada, medíocre. Seu documentário sobre a China também é medíocre. Ele era grande em um só domínio.
Infelizmente, foi forçado a fazer filmes no fim da sua vida, como "Eros" [de 2004, em que dirige o segmento "A Mão"].
Isso foi dramático para sua imagem.

FOLHA - O cinema oriental, como o de Wong Kar-wai, se inspirou em Antonioni?
CIMENT -
Wong Kar-wai certamente não, porque faz um cinema baseado na edição ágil, rápida. Talvez em relação a uma certa melancolia.
Todos os cineastas da melancolia são inspirados em Antonioni. Andrei Tarkóvski e Wim Wenders o são, sem dúvida. Mas de modo indireto, já que são grandes cineastas.
No cinema oriental, apontaria Hou Hsiao-hsien e Tsai Ming-liang.

FOLHA - Quais são os grandes nomes do cinema atual?
CIMENT -
Fora da França, acho que o grego Theo Angelopoulos.
Nos EUA, Terence Malick é incontestavelmente um dos grandes cineastas. Também há os irmãos Coen, Tim Burton...
Talvez Gus van Sant. O cinema americano é o único atualmente que dialoga ao mesmo tempo com os intelectuais e cinéfilos e com o público.
Mesmo se Woody Allen não faz o mesmo sucesso de Steven Spielberg, ainda tem milhões de espectadores.
Para mim o grande drama do cinema contemporâneo é que os filmes são cada vez mais produzidos para os festivais de cinema. Às vezes não conseguem atingir um grande público.
São planejados para ficarem prontos em maio, a tempo de concorrerem no Festival de Cannes. Acho isso dramático.
A beleza do cinema é ser como o teatro de antigamente ou como o romance, a pintura. Deveria ser consumido e apreciado por um grande público.


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