São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2007

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O cineasta do instante

Bergman é o único a filmar os homens do ângulo das mulheres e as mulheres do ângulo dos homens

JEAN-LUC GODARD

O retorno de "Monika e o Desejo" ao circuito comercial é o acontecimento cinematográfico do ano. Trata-se de uma homenagem dos cinemas parisienses a Ingmar Bergman.
Corramos, pois, ao Panthéon, assim como, faz alguns anos, corríamos à Orangerie para ver Van Gogh. É provável que a brilhante retrospectiva na Cinemateca Francesa e o sucesso fulminante de "Juventude" (1951) e de "O Sétimo Selo" respondam por muito desse súbito fascínio de Paris por Bergman. Mas é justo que seja assim.
Desdenhado quando de sua estréia no circuito comercial, "Monika" é um filme do mais original dos cineastas e é para o cinema de hoje o que "O Nascimento de uma Nação" foi para o cinema clássico.
Assim como Griffith influenciou Serguei Eisenstein, Abel Gance, Fritz Lang, "Monika" levou ao apogeu, com cinco anos de vantagem, esse renascimento do jovem cinema moderno que tinha por sumos sacerdotes um Fellini, na Itália, um Aldrich, em Hollywood, e um Vadim (ou será que nos enganamos?), na França.
De fato, "Monika" já é "E Deus Criou a Mulher" [de Roger Vadim], mas de modo genial, sem um erro, sem um tropeço, com uma lucidez total tanto no que diz respeito à construção dramática e moral como aos valores em cena ou, em outras palavras, à encenação.
Dois anos separam "Monika" de "Juventude". Mas, curiosamente, as aventuras de Maj-Britt Nilsson poderiam dar seqüência às de Harriet Andersson -muito embora as precedam, na cronologia de Bergman.
"Juventude" é o outono, são os devaneios de um passeio solitário, de um romantismo próximo do autor das admiráveis "Confissões" [de Rousseau].
"Monika" é o verão, as férias com dinheiro curto, um pessimismo encardido que faz pensar em "A Náusea" [de Sartre]. Dois anos separam esses dois filmes.
Mas, para Bergman, dois anos significam dois filmes, isto é, duas vezes mais experiência e "savoir-faire".
É bem verdade que, entre todos os cineastas modernos, Ingmar Bergman é seguramente o único que não renega abertamente os procedimentos caros aos vanguardistas dos anos 30: sobreposições à Delluc, reflexos à Kirsanoff, contra-luzes à Epstein, enfim, todo um bricabraque de efeitos que só se vêem, hoje em dia, nos filmes de Gréville e Robert Hossein ou em festivais de cinema amador.
Mas é por ousadia que Bergman se atreve a continuar empregando truques tão fora de moda. Os enquadramentos trabalhados, os ângulos insólitos, as tomadas de nuvens, lagos e bosques não são, para o autor de "Monika", jogos gratuitos da câmera ou proezas de cinegrafista.
Bergman, ao contrário, sabe integrá-los à psicologia de seus personagens no instante preciso em que quer exprimir um sentimento preciso.
É o caso do "travelling" que recua, ao nascer-do-sol, a fim de exprimir o prazer de Monika, cruzando Estocolmo de barco enquanto a cidade desperta; ou, mais tarde, o "travelling" que se aproxima do rio e das margens, quando Monika, já cansada e farta, retorna à Estocolmo que adormece.
Bergman é o cineasta do instante. Sua câmera busca uma coisa apenas: captar o instante presente no que ele tem de mais fugidio e aprofundá-lo até que adquira valor de eternidade.
Daí a importância primordial do flashback, uma vez que a mola dramática dos filmes de Bergman se resume a heróis que refletem sobre o momento e sobre seu estado presente.
Em "Juventude", o verão, terno e belo, recaía na tragédia.
Mas, em "Monika", a sordidez logo vem se misturar ao prazer, e o tédio, à felicidade.
Como Robinsons modernos, Monika e seu Jules, que só têm um saco de dormir para abrigar seu amor, logo darão as costas à alegria para chafurdar em nojo.
É preciso ver "Monika", nem que seja apenas pelos extraordinários minutos em que Harriet Andersson, antes de se deitar novamente com um sujeito que ela abandonara, mira fixamente a câmara, os olhos zombeteiros tomados de angústia, convertendo o espectador em testemunha do desprezo que ela tem por si mesma, por ter optado involuntariamente pelo inferno, e não pelo céu. É a tomada mais triste da história do cinema.
"Amar a valer, amar e morrer": "Monika" é o primeiro filme baudelairiano. Bergman é o único a saber filmar os homens do ângulo das mulheres -que os amam, mas os detestam- e as mulheres do ângulo dos homens -que as detestam, mas as amam.
E, quanto à sensualidade, Bergman converteria em puro espiritualismo toda a "Série Blonde", mesmo que não fizesse mais que dar a ver (graças à magia das imagens em movimento, diria Louis Marcorelle) o estremecer de um ombro, o palpitar de um coração, o frêmito de um joelho, a amargura de um olhar.
Mas ele faz bem mais que isso. Para Monika, assim como para o Michael O"Hara de "A Dama de Xangai", o essencial é saber envelhecer bem.
Mas a velhice é a feiúra, por sorte nos sussurra Ingmar Bergman -como é sorte que exista o cinema, que preserva a beleza.

Este texto foi publicado na revista "Arts", em julho de 1958. Tradução de Samuel Titan Jr.


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