São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2007

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Arquétipos da paixão

Liv Ullmann e Monica Vitti foram eternizadas nas telas por Bergman e Antonioni

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Lembra o dicionário que musas são divindades que inspiram.
Para o artista, elas funcionam como o alento que dá fôlego, vigor à sua criação. Para nós, que gozamos arte, as musas são os pontos fortes que nos fazem respirar mais profundamente ou, em situações extremas, prender a respiração.
Diversamente das estrelas, que estão na tela para serem contempladas como num firmamento distante e fora do alcance, as musas são espelhos da nossa humanidade.
Em suas cenas, não adquirem a distância do mito. Pelo contrário, são antes seres decaídos, submetidos às dores da existência.
Os grandes criadores do cinema fizeram questão de fazer da musa esse objeto ordinário em torno do qual giram a câmera a fim de desvendar seus segredos, expor seus mistérios.
Godard teve a sua em Anna Karina, assim como Buñuel a teve em Catherine Deneuve, John Cassavettes em Gena Rowlands e Woody Allen em Mia Farrow.
Nem sempre a relação é de homem para mulher, como atesta a função-musa de Jean Pierre Léaud para Truffaut, a de Marcello Mastroianni para Fellini e a de Tony Leung para Wong Kar-wai (se bem que, nestes casos, a musa se confunde com o alter-ego).

Potência da imagem
O que define a musa para um cineasta é menos sua beleza como forma de encantamento (para isso basta ser estrela) do que a potência de sua imagem.
Ou, ainda mais, o quanto as características físicas e estéticas de um ator servem às ambições expressivas de um autor. É dentro desse campo de possibilidades que se podem identificar Liv Ullmann como a musa de Ingmar Bergman e Monica Vitti como a de Michelangelo Antonioni, os dois gênios da arte cinematográfica desaparecidos na última semana.
O primeiro signo distintivo da musa é a repetição.
Depois que ela entra em cena, funciona como um arquétipo da paixão.
Os personagens mudam, mas a imagem se reproduz infinitamente como um fantasma ou uma multiplicação numa sala de espelhos (a cena de "A Dama de Xangai" da destruição da imagem-estrela de Rita Hayworth fazia parte de seu devir-musa para Orson Welles).
Mesmo quando elas estão ausentes nos créditos, sua presença se faz sentir na semelhança com a imagem de outros atores em cena. Não é mera coincidência que as musas nos filmes sejam também companheiras ou amantes na vida pessoal dos cineastas.
E, como todo fantasma que se recusa a desaparecer, um dia elas retornam, num grande papel derradeiro.
Outro signo, também característico da paixão amorosa que os artistas devotam a suas musas, é o mistério.
E elas se tornam musas em suas obras a partir do momento em que todo o esforço da criação investe na sondagem de seus segredos, na análise simultaneamente microscópica e telescópica que a câmera oferece aos olhos do espectador através da magnitude do primeiro plano.

"Bravo, bravo"
O crítico italiano Aldo Tassone, grande especialista na obra de Antonioni, relatou ao "Libération", na edição da última quarta-feira, detalhes da relação de Antonioni e Vitti que sugerem essa ambigüidade entre relação afetiva e inspiração artística.
"Ele a conheceu quando ela dublava uma voz em "O Grito". Ela me contou que no estúdio de gravação uma mão se pousou em seu ombro como um pássaro. Era Antonioni, que disse a ela simplesmente: "Bravo, bravo". Depois, eles fizeram quatro filmes e viveram juntos a seu modo. Ele havia comprado dois andares de um palácio em Roma. Cada um tinha o seu, mas uma escada interna os reunia. Não se tratava de fato de um casal, mas de um par de amigos magníficos. Monica, com suas cores, sua exuberância; Michelangelo, com sua elegância discreta e austera. Um dia, aconteceu um terrível incêndio no prédio. Michelangelo só pensou em salvar Monica, que já se encontrava do lado de fora. Então, ele se postou diante do prédio em chamas, o qual encarava como se fosse um plano prestes a filmar."
Ao contrário de nós, amantes ordinários, os amantes artistas têm na obra a oportunidade de eternizar a imagem-arquétipo pela qual se tornaram obcecados.
O caso de Liv Ullmann repete esses padrões na carreira de Bergman.
Antes de ela aparecer, outras atrizes e atores serviram ao mestre sueco em seus extraordinários mergulhos na alma.
Mas foi na opacidade do rosto de Ullmann que Bergman conseguiu ver além, naquele que talvez seja seu filme mais profundo: "Persona".
É o título que marca a estréia de Ullmann na obra do cineasta sueco, da qual em seguida a atriz só eventualmente estará ausente.
Sempre retornará nos pontos altos ("Cenas de um Casamento", "Gritos e Sussurros", "Face a Face", "Sonata de Outono") ou como fantasma (o papel de Ewa Fröling, a mãe de "Fanny e Alexandre").
Esses espectros que rondam até a hora da morte não deixam de voltar já no crepúsculo, como comprovam as presenças de Ullmann em "Sarabanda" e de Monica Vitti em "O Mistério de Oberwald".
Nesses dois trabalhos dos fins das trajetórias criativas de seus autores, as atrizes não encarnam mais personagens, elas são filmadas como imagens, puras projeções do espírito e realização absoluta do maior desejo do sujeito apaixonado: deixaram de ser objetos de desejo para se integrar e entregar completamente a um sujeito.


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