|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Em "De Olhos Bem Fechados", Stanley Kubrick torna visível
os mecanismos contemporâneos de recalque do desejo
O Natal diabólico de Bill e Alice
LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
especial para a Folha
É uma pena que esta seja a última oportunidade que temos de
ver um novo filme de Stanley Kubrick; mas ao mesmo tempo deveríamos agradecer-lhe, ainda
que postumamente, por nos haver legado uma filmografia poderosa, que agora se encerra com
mais uma obra-prima capaz de
ajudar-nos, como todas as outras,
a compreender o mundo em que
vivemos. "De Olhos Bem Fechados" estamos todos nós, de olhos
vendados, tão desatentos que somos ao que ocorre conosco e à
nossa volta. Sabendo disso, Kubrick faz seu filme para suscitar
uma mudança em nossa percepção, literalmente para nos pôr de
olhos bem abertos. Por isso seu
filme é tão perturbador.
O universo tratado pelo cineasta
é o establishment anglo-saxão, a
referência máxima da ordem global contemporânea; nele vivem o
bem-sucedido médico William
(Bill) Harford e Alice, sua bela
mulher, que encarnam o casal
ideal do sonho americano (Tom
Cruise e Nicole Kidman representam, emblematicamente, tudo o
que "deu certo"). Estamos às vésperas do Natal, a data magna da
cristandade e dos presentes, e todos já armaram a sua árvore, até
mesmo as prostitutas. Mas, em
vez de festa, abre-se um abismo.
A normalidade é quebrada pelo
desejo de uma mulher que irrompe assim, inexplicável e indomável, cortando com faca o amor
conjugal do sexo. Assustada e culpada, Alice confessa ao marido o
objeto de seu tormento, que
emergira numa troca de olhares
com um desconhecido. A irrupção do desejo tem um efeito devastador; na magistral sequência
da confissão, Kubrick nos faz ver
o que Hölderlin já notara: que as
palavras têm o poder de ferir, de
matar. Atingido em cheio por
uma revelação que o interpela como homem e transforma sua mulher num enigma, William sai em
busca da experiência que lhe permita conservar seu amor. E, como
ocorre com Leonore, na ópera de
Beethoven, a senha para salvar
seu casamento é transformar-se
em Fidelio e arriscar-se nos subterrâneos do poder.
Desde que o médico desperta
dolorosamente, o filme se desenrola em dois planos entrelaçados: por um lado, o plano do desejo de Alice -este permanece
pulsando em seu imaginário e só
será mostrado por meio das imagens que seu marido dele faz, e
que relançam o médico incessantemente; por outro, o plano da
ação de William, isto é, plano de
seu encontro com a circulação
real do desejo. Entre o plano intenso do desejo de Alice e o plano
extenso da realidade experienciada por William desenrola-se o filme, mostrando o que a sociedade
contemporânea mais teme e, por
isso mesmo, quer recalcar: a força
do desejo.
É compreensível que a mídia do
establishment americano tenha
rejeitado "De Olhos Bem Fechados" e procurado desqualificá-lo.
O filme traz à tona aquilo que a
aliança do cristianismo com o capitalismo, vale dizer o seu "espírito", quer ocultar por ser a base
mesma sobre a qual a sociedade
se institui: a negação ou a satanização do desejo e a sua sublimação através da culpa.
Há 19 anos, em "O Iluminado",
Kubrick já havia tratado do tema
do recalque e do retorno do recalcado, como bem mostrou Frederic Jameson em "As Marcas do
Visível". Mas lá o que retornava
era o passado, levando o herói a
ser possuído pelo fantasma da
História, enquanto aqui o que retorna é o substrato recalcado no
presente. Lá, como aqui, o problema também era considerado através do turbilhão que envolve a típica família moderna, casal + filho; mas lá o desrecalque aflorava
como paranóia e impotência, enquanto aqui irrompe como culpa
e perversão, que ligam o desejo à
morte. No entanto, atenção: lá,
como aqui, mesmo focalizando o
que se passa no interior de uma
família, Kubrick não se prende de
modo algum a uma concepção familiarista do desejo, porque este
não está circunscrito ao teatro da
castração. Mais próximo de
Nietzsche do que da psicanálise,
Kubrick parece querer evidenciar,
tanto no passado quanto no presente, como o fluxo do desejo se
inscreve no "socius".
"De Olhos Bem Fechados" é
uma verdadeira aula de como o
espírito cristão e capitalista lida
com o desejo, canalizando-o para
o registro da culpa e da confissão.
Nesse sentido, é interessantíssimo
observar como a culpa e a confissão de Alice e de William se consumam de modo muito diverso.
A culpa da mulher prende-se à
existência mesma do plano do desejo que, não podendo mais ser
negada, explode na esfera do casamento como um crime cometido contra a fidelidade: o problema de Alice é que ela não consegue reprimir "seu" desejo de ocupar seus sonhos e sua consciência.
Já a culpa de William não resulta de um processo mental, mas
sim de sua responsabilidade por
tudo o que desencadeou, desde
que foi levado a tentar descobrir o
enigma do sexo; mas tal culpa, em
vez de explodir no universo da intimidade, implode na esfera da
sociedade. Com efeito, o que o
marido descobre, mas não pode
contar, é que quando a interdição
é suspensa o desejo é saciado como celebração do mal. Assim, por
trás da fachada impecável e comportada da sociedade contemporânea pulsa um desejo convertido
em crime imaginado ou crime
consumado.
A partir do momento em que
William se vê envolvido na trama
do desejo, a morte passa a rondá-lo. Primeiro na casa de seu paciente, onde morte e desejo se encontram e se contrastam absurdamente; depois, na casa da prostituta, onde sexo e ameaça de
morte se desencontram por pouco; finalmente, na mansão da orgia, onde o desejo, anônimo, pode
correr solto... mas junto com a
morte. Tudo isso nos é mostrado
com intrigante distanciamento. À
primeira vista, parece que o olhar
de Kubrick é clínico; mas depois
percebemos que ele não toma os
homens e as situações como objetos e fatos, que portanto seu olhar
não é analítico, não é científico.
Como grande artista, Kubrick
não faz um diagnóstico, mas antes põe em cena as potências do
desejo e do "socius" que movem
esses homens e situações.
Sua maneira de trazer à tona o
que é recalcado consiste em dar
um tratamento muito específico
às imagens: temos sempre a sensação de que os corpos se destacam de um fundo, mas ao mesmo
tempo é sempre como se fosse o
fundo que estivesse secretando a
figura; por sua vez, a paisagem é
paradoxalmente familiar e estranha: Nova York e até mesmo os
ambientes surgem como que contaminados pela atmosfera de incerteza e insegurança que oprime
os personagens, empurrando-os
para o primeiro plano; finalmente, na grande sequência do ritual
satânico e orgiástico, figuras e
fundo se mesclam e se confundem num espaço extemporâneo e
num clima tenebroso, reverso
sombrio da normalidade.
A ousadia de Kubrick não se limita porém a expor a obscenidade da ordem social contemporânea. A lição ficaria incompleta se
o cineasta deixasse de mostrar como se "resolve" o recalque do desejo depois que a confissão desabafou toda a culpa. A normalidade é restaurada graças a um novo
recalque -desta vez do crime
real. Quando Alice e William reconciliam-se, o espectador percebe que nem mesmo a culpa e a
confissão de ambos lhes pertencem, pois são mecanismos forjados por uma sociedade perversa
para garantir a sua sobrevivência
por meio da sobrevivência deles
enquanto cristãos e consumidores. O establishment se refaz na
loja de departamentos, no momento das compras de Natal...
com a boneca Barbie modelando
o desejo da menina!
Laymert Garcia dos Santos é professor livre-docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) e autor de "Tempo de
Ensaio" (Cia. das Letras), entre outros.
O FILME
De Olhos Bem Fechados - (Eyes Wide Shut,
EUA, 1999). Dir. de Stanley Kubrick. Roteiro
de Kubrick e Frederic Raphael. Com Tom
Cruise (William Harford), Nicole Kidman (Alice Harford), Sydney Pollack (Victor Ziegler),
Marie Richardson (Marion), Rade Sherbedgia
(Milich), Leelee Sobieski (filha de Milich).
Texto Anterior: Artes plásticas - Valêncio Xavier: O olho e a fenda Próximo Texto: Nicolau Sevcenko: A arte política de Schnitzler e Kubrick Índice
|