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Ruínas da identidade
JOÃO CAMILLO PENNA
especial para a Folha
O lançamento de uma segunda
biografia de Clarice Lispector "Eu
Sou uma Pergunta - Uma Biografia de Clarice Lispector", de Teresa Cristina Monteiro Ferreira, publicada apenas quatro anos após a
de Nádia Battella Gotlib, "Clarice
-Uma Vida Que Se Conta" (Ática,
1995), recoloca em pauta questões
recorrentes sobre o gênero biografia e nos força a encarar o
"problema" específico de qualquer biografia de Clarice.
Em linhas gerais, o "problema"
com o qual toda a biografia -ou,
no fundo, toda a crítica- de Clarice se depara é o seguinte: Clarice
não cessa de se criticar ou de se
biografar em seus próprios textos.
No caso específico da biografia,
como demonstram os dois livros
até agora publicados, o problema
se desdobra na estratégia de introduzir os textos biográficos de autoria da própria Clarice, numa
narrativa que se quer o arrolamento de fatos importantes de
uma vida.
Impressiona, assim, inicialmente, um dado de semelhança entre
as duas: ambas perscrutam de
perto o texto de Clarice, reduzido
frequentemente à confirmação da
informação biográfica -ou simplesmente a substituindo. A biografia suplementa o dado obtido
na investigação do pesquisador
com o que nos conta sobre sua vida a própria autora; ou então
ocorre o inverso, é o texto que suplementa alguma lacuna do dado,
algo que o pesquisador não conseguiu obter pelas vias de fato.
Na época, a biografia de Nádia
foi criticada por parafrasear Clarice em excesso, mas, ao mesmo
tempo, embutida na paráfrase estava a descoberta de um duplo
movimento de "ficcionalização",
interno à escritura de Clarice, que
a biógrafa detectou, a meu ver,
com precisão.
Por um lado, Clarice ficcionaliza
a vida, ou seja, transforma em ficção o que em geral se mantém como reserva não-literária, como se
pode ver, por exemplo, nos textos
autobiográficos, que biografizam
a sua ficção, ou nos depoimentos
jornalísticos, que Clarice transforma em confrontos angustiados,
revelando ou multiplicando versões de si mesma, manipulando a
expectativa do público.
Por outro lado, e em sentido inverso, Clarice desficcionaliza a ficção, ou seja, abre dentro da literatura um espaço radicalmente
neutro, da "brutalidade do fato",
para usar uma expressão de Francis Bacon.
Assim sendo, a personagem que
Clarice não cessa de criar dentro e
fora da obra não passa desse exercício, um pretexto para a grande
descoberta e instrumento de sua
obra: a sensação nua, caracteristicamente não-literária, intervenção brutal ou simples do mundo.
Busca de si mesma, essa "pergunta" sobre a identidade, a que tanto
os críticos se referem, e que Teresa Cristina repete no título de sua
biografia? Sim e não: a identidade
é ainda uma versão reduzida do
substrato de vida, tema da obra
inteira de Clarice, cujos textos são
sempre escritos sobre as ruínas do
"bildungsroman", essa narrativização da existência, interessada
justamente no ponto em que a vida se confunde com o que a limita, ilimitando-a, o que a contorna
e transtorna, e que se transforma
ou não em narração.
Dito isso, a estratégia de utilização de textos de autoria de Clarice
é bastante diferente nas duas biografias. A biografia de Nádia é
uma biografia de textos, e a de Teresa Cristina, de fatos. Ressaltem-se os problemas, talvez opostos,
das duas: Nádia tem dificuldade
de se desligar dos textos, atada a
eles como que simbioticamente, e
escreve uma biografia de crítico;
enquanto Teresa Cristina não dá
conta dos aspecto da linguagem
na vida-obra de Clarice e escreve
uma biografia que se quer romance.
Na biografia de Teresa Cristina,
a referência textual é reduzida a
quase nada. Os mesmos textos
"memorialistas" utilizados por
Nádia são aqui parafraseados ou
simplesmente incorporados em
itálico, sem nenhuma referência à
sua procedência. A filtragem auto-reflexiva, marca da elaboração
propriamente textual da matéria
autobiográfica, não é levada em
conta. Aqui não há mais complementação do dado da investigação com a crônica ou conto, há
simples substituição. O texto é o
próprio acontecimento como
aconteceu.
Quando a reconstituição do fato
não procede de textos da própria
Clarice, ela vem de depoimentos
ou cartas dos amigos e familiares.
A ficcionalização da biografia é
operada pela omissão do discurso
indireto. Os depoimentos acabam
se transformando em quase personagens, internalizados por uma
narração onisciente que sabe o
que elas pensam. Assim: "Pedro
Lispector, pensativo e angustiado.
Subitamente as estepes e os bosques da Rússia invadiam sua
mente", (pág. 30); ou: "Clarice
não via a hora de atingir a maioridade para se tornar cidadã brasileira" (pág. 68).
À maneira de um romance histórico do século 19, a narradora
relaciona os acontecimentos da
grande história (política) com os
da pequena história (privada),
com resultados em geral ingênuos
-ou às vezes desajeitados.
Teresa Cristina reduz tudo
-texto, depoimento, carta, crítica- a dado extralinguístico, numa narração que pontua os acontecimentos da vida de Clarice com
acontecimentos históricos.
O que permanece oculto
Por trás dessa trama complicada de textos e fatos, o leitor sente
uma grande lacuna: a ausência de
muitos textos e fatos da vida de
Clarice que as biografias apenas
sugerem ou nos quais muitas vezes nem tocam. Assim, a relação
com Paulo Mendes Campos foi
impossível porque "Paulo era casado" (pág. 277); a psicose do filho mais velho, Pedro, é apenas levemente tocada: "Mas nada se
compara à preocupação com o filho mais velho. Seu universo tão
peculiar e inacessível revelava um
comportamento fora dos padrões. Clarice não podia acompanhar os caminhos tortuosos da
esquizofrenia de Pedro, precisava
do auxílio da psiquiatria" (pág.
238); as internações periódicas a
que Clarice se submetia ainda são
matéria de sigilo.
Pudor de ferir a imagem de
"boa moça" da autora? Censura
da família sobre os materiais biográficos e escritos de Clarice, receosos de que ferissem as pessoas
de seu círculo que ainda vivem?
Manter oculto o que a autora queria que fosse mantido oculto? Note-se que há um progressivo desvelamento de dados antigamente
tabus, por exemplo, no que concerne à origem judaica, à infância
imigrante da família Lispector, no
trânsito que leva da Ucrânia a Maceió, a Recife e ao Rio de Janeiro.
Pouco a pouco todos esses fatos e
documentos vão vindo à tona. O
mesmo não ocorre com as fases
mais recentes de sua vida. Será
preciso esperar para a entrada dos
textos em domínio público?
O que parece ocorrer-e aí nos
deparamos com uma questão não
específica a Clarice, que se repete
em outros casos recentes de autores brasileiros não menos ilustres- é um zelo das famílias em
manter a imagem do autor tal
qual ele ou ela o faria se fosse vivo.
A continuação desse controle sobre a vida -que, é preciso acrescentar, os próprios autores nem
sempre exerciam sobre suas vidas
com tal sistematicidade e que não
deixa de ser uma extensão do direito autoral- repousa sobre
uma interpretação dos interesses
do autor, autorizada pela herança.
Interpretação sem dúvida identificatória, sem dúvida arbitrária e
sem dúvida armada de intenções,
se não boas, pelo menos que se
querem guardiãs da memória do
autor, mesmo a custo de reforçar
o esquecimento. Mas aí vale perguntar: por que tanto receio? Por
que fazer tanto segredo? Seremos
tão moralistas a ponto de ter vergonha da vida? Há aqueles que
justificam o silencio dizendo que
o autor só interessa mesmo pela
obra e que a vida só interessa aos
vivos que a compartilharam. Para
Clarice -mas na verdade para
todo escritor-, que elaborava
constantemente a vida textualmente, como é sempre o caso, isto
significa o silêncio sobre a origem
do texto e uma perda terrível para
o conhecimento da obra. Com isso os leitores permanecem esperando. E permanece a suspeita de
que a biografia de Clarice ainda
está por ser escrita.
A OBRA
Eu Sou uma Pergunta -
Uma Biografia de Clarice
Lispector - Teresa Cristina Monteiro Ferreira. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP 20011-040,
RJ, tel. 0/xx/21/507-2000). 302
págs. R$ 32,00.
João Camillo Penna é diretor da Escola de
Letras da Univer-Cidade, Centro Universitário da Cidade (Rio de Janeiro), e autor de
"Clarice Lispector and the Intention of Minority Literature in Brazil".
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