São Paulo, Domingo, 05 de Setembro de 1999
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José Luís Fiori analisa como países periféricos passaram a compartilhar o seu governo com os EUA
Sem moeda nem coragem

da Redação

Leia a seguir trecho de um ensaio do economista José Luís Fiori que faz parte do livro "Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações" (Ed. Vozes). Organizado por Fiori, o livro conta ainda com ensaios de Luiz Gonzaga Belluzo, José Carlos Braga e Wilson Cano, entre outros. A coletânea será lançada na quinta-feira, dia 9, às 19h, durante o seminário "Desenvolvimento: o Fato e o Mito", que acontece entre quarta e sexta-feira na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (informações pelo tel. 0/xx/ 21/587-7686). Entre os participantes do evento estarão Delfim Netto, João Sayad e Maria da Conceição Tavares.

JOSÉ LUÍS FIORI
especial para a Folha

Durante a segunda metade do século 19 foi possível compatibilizar a integração e dependência econômica dos principais países latino-americanos no padrão e no ciclo da economia inglesa, com sua subordinação à supremacia geopolítica regional dos Estados Unidos. No século 20 esses países tiveram muito pouca importância na Guerra Fria, mas aceitaram, com total lealdade, a hegemonia norte-americana e foram lugares privilegiados de experimentação da estratégia liberal-desenvolvimentista organizada por seus Estados, aliados ao capital financeiro internacional.
O caso do Brasil, neste sentido, foi exemplar: com exceção de alguns momentos, nos governos Vargas e Geisel, foi possível conciliar, com o apoio norte-americano, o liberalismo internacionalizante de suas elites civis, econômicas e políticas, com o nacionalismo anticomunista de suas elites militares, promovendo uma industrialização com forte participação estatal e ampla "internacionalização do mercado interno".
Foi no início dos anos 70 que o establishment intelectual e administrativo da política externa norte-americana começou a rever sua estratégia com relação ao Terceiro Mundo e seu projeto desenvolvimentista. Não foi uma resposta ao pessimismo que se generalizara, a partir da América Latina, com respeito à eficácia das políticas de desenvolvimento. Foi uma resposta ao questionamento simultâneo do seu poder militar e econômico, expresso, pelo lado militar, como reação à humilhante derrota no Vietnã, e que se prolongou na imprevisão da guerra do Yom Kippur e bem mais tarde nas revoluções da Nicarágua e do Irã. Pelo lado econômico, respondia à proposta de um grupo expressivo de países do Terceiro Mundo favorável à rediscussão da ordem econômica internacional, o que supunha algum grau de redistribuição do poder entre os Estados como condição prévia do sucesso dos projetos de distribuição da riqueza mundial.
Esse processo começou com o sucesso da estratégia da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em relação ao aumento dos preços do petróleo, que por sua vez estimulou o aparecimento do Grupo dos 77 e de sua proposta, aprovada pela Sexta Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas em 1974, favorável à criação de uma Nova Ordem Econômica Internacional, que incluía a formação da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e a defesa do direito dos países em desenvolvimento de: 1) criarem associações de produtores; 2) vincularem os preços dos seus produtos de exportação ao movimento dos preços dos produtos industriais que importavam dos países desenvolvidos; 3) nacionalizarem empresas ligadas ao exercício da soberania sobre seus recursos naturais; 4) definirem regras próprias para o funcionamento das multinacionais nos seus territórios.
Agrega-se a essa agenda a defesa da necessidade premente de rediscutir o sistema de tarifas e o próprio sistema monetário internacional. Em síntese, uma proposta de reforma global da ordem internacional vigente, que questionava a própria hierarquia de poder que regia as relações interestatais.
A resposta americana foi uma nova estratégia, que proclamou a impossibilidade do desenvolvimento generalizado e passou a priorizar países e regiões. Como dizia na época Robert Tucker, um dos intelectuais da nova estratégia, tratava-se agora de "prestar atenção às reivindicações dos Estados que estão, em virtude de seu poder, em condições de ameaçar a estabilidade internacional e assim a viabilidade do sistema" ("De L'Inegalité des Nations", Economica, Paris, 1977, pág. 148). Ou, como afirmava Tom Farer na "Foreign Affairs", na mesma linha, mas de maneira mais explícita: "Mesmo no que diz respeito às questões econômicas, é possível resolver o conflito (com os países em desenvolvimento) não somente porque suas exigências são modestas, mas também porque é pequeno o número daqueles países que há que cooptar (...) acertando-se com as elites governantes de muito poucos Estados. Na África, a Nigéria. Na América Latina, Brasil, Venezuela e talvez México (...)" (1975, pág. 79). O objetivo último da nova proposta era bastante claro: "Uma estratégia de compromisso que vise ao enfraquecimento dos laços que preservaram até aqui a solidariedade entre os países em desenvolvimento" (Tucker, pág. 150).
Foi nos anos 80, entretanto, a partir da administração Reagan e da sua grande restauração liberal-conservadora, que se criaram as condições econômicas e políticas que permitiram associar esta nova orientação geoeconômica ao projeto simultâneo de abandono do próprio desenvolvimentismo. A "diplomacia do dólar forte" e a falência financeira dos últimos Estados desenvolvimentistas abriram as portas para a promoção ativa da convergência das políticas econômicas da região.
Na segunda metade da década de 80, a renegociação das dívidas externas permitiu que a estratégia de "cooptação seletiva" se associasse de forma mais clara e definitiva ao projeto de restauração na periferia latino-americana do princípio liberal vigente no século 19: mercados desregulados, economias abertas e exportadoras e Estados liberais não intervencionistas.
O projeto de liberalização das economias latino-americanas, sintetizado na proposta geoeconômica do Consenso de Washington, durou pouco porque supunha que as reformas liberais somadas a uma política macroeconômica ortodoxa seriam condição suficiente para manter uma entrada abundante e constante do investimento direto estrangeiro, que passaria a ser o carro-chefe do "novo modelo" de crescimento econômico destes países. A crise argentina e seu novo plano de estabilização, em 1990, baseado na dolarização da economia, representou, de fato, um salto de qualidade e uma mudança de rota com relação ao primeiro projeto.
Logo depois, a crise mexicana de 1994 e o acordo que garantiu o empréstimo de US$ 40 bilhões ao país, e alguns anos depois, a crise e o acordo com o FMI e o BIS (Banco Internacional de Compensações), que garantiu o empréstimo de US$ 48 bilhões ao Brasil, acabaram explicitando as novas expectativas das elites liberais e internacionalizantes desses três países. Nos três casos, o que passou a ser proposto, de forma explícita ou implícita, é uma mudança de estatuto com relação à "cláusula" de aceitação da nova ordem liberal. Argentina, México e Brasil estão de fato se propondo a deixar a condição de "mercados emergentes", estimulados pelas propostas norte-americanas do Nafta e da Alca.
Na verdade, a nova utopia das elites liberais e internacionalizantes dos três principais países latino-americanos deixou de ser a simples integração liberal à economia internacional. Ela agora responde pelo nome de "dominion" e se alimenta de um grande paradigma: "As relações siamesas entre Canadá e Estados Unidos, que são muito extensas, mas que têm muito pouco a ver com a situação de gêmeos, para ser exato (...)" (H.A. Innis, "Essays in Canadian Economic History", University of Toronto Press, 1952, pág. 238). Apontam nessa direção, ao terminar a década de 90, várias decisões unilaterais tomadas pelos governos dos três países, e todos os acordos internacionais que assinaram a partir de suas crises cambiais. Na prática esses países mantêm formalmente o autogoverno interno, mas compartilham de forma crescente sua gestão com os Estados Unidos, por meio dos seus organismos multilaterais e da "haute finance" americana.
Não dispõem de um sistema de crédito e de capital financeiro sob comando nacional e já tomaram várias decisões que caminham, em última instância, em direção à dolarização das suas economias, mesmo quando ela enfrenta fortes resistências internas e internacionais. Seu objetivo, agora, é garantir o afluxo de investimentos com que contavam desde o início, mas agora em condições de escassez e alta seletividade por parte dos investidores privados internacionais. Daí a atração exercida pelo sistema do "currency board", criado exatamente para garantir os capitais de investimento ingleses contra eventuais instabilidades ou idiossincrasias políticas dentro dos seus velhos "dominions".
Por meio de privatizações ou fusões de suas indústrias, bancos e serviços, já alcançaram um avançado grau de transnacionalização de suas economias e seguem depositando todas suas expectativas de crescimento no aumento da participação dos investimentos externos na sua formação interna de capital. Não contam com a continuidade territorial nem cultural que mantiveram o Canadá ligado umbilicalmente à Inglaterra e aos Estados Unidos. E tampouco fizeram a conversão estrutural que permitiu ao Canadá passar, no século 20, diretamente, da agricultura para a indústria sob o comando dos mesmos capitais financeiros anglo-saxões.
Este é hoje o projeto em que apostam, de forma explícita ou implícita, as elites internacionalizantes da Argentina, México e Brasil. Um projeto que não seria impossível, se pensado apenas num plano abstrato ou "teórico" que desconhecesse completamente a história e as condições objetivas desses países. Mas que se defronta com grandes obstáculos reais, situados dentro e fora da própria região. Começando, exatamente, pelo problema da relação das moedas locais com o sistema monetário internacional.
Hoje, ao contrário do século 19, os Estados Unidos não se submetem e não aceitam nenhum tipo de padrão monetário ou regra cambial que entre em conflito com os seus próprios interesses econômicos e estratégicos. Como, por outro lado, a economia dos três candidatos a "dominion" não tem condições de suportar, no longo prazo, um sistema cambial flutuante apontará sempre na direção de duas alternativas limites: adotar o sistema do "currency board" dos velhos "dominions" ou a troca direta da moeda local pelo dólar.
Os Estados Unidos rejeitam esta última hipótese de dolarização porque não têm condições, no momento, de arcar com a responsabilidade da estabilização monetária e do equilíbrio orçamentário de sociedades que ainda são democráticas e podem, portanto, escapar do seu controle centralizado, mas não colonial. Mas uma parte expressiva do establishment de Washington não se opõe, pelo contrário, ao sistema do "currency board".
Nesse caso, o volume do crédito interno e a variação das taxas de juros ficam condicionados pelo volume ou escassez dos recursos externos que entrarem nos três países. Trata-se, na prática, de um simulacro do padrão-ouro que mantém a possibilidade de desenvolvimento do país totalmente dependente do movimento internacional de capitais, deixando seus governos completamente indefesos diante de eventuais crises nos mercados financeiros globais. Esse será também o limite de qualquer outra solução intermediária e transitória, como no caso do modelo de "inflation target" adotado -de novo- pelo Canadá e pela Nova Zelândia e a Austrália. Mas não é por acaso que essa política só tenha sido adotada pelos velhos "dominions" ingleses um século mais tarde.
No caso de adoção de qualquer destas "soluções" cambiais, a única resposta a crises do tipo das que ocorreram em 1997 e 1998, será sempre a recessão, de forma a reduzir a produção e o emprego internos até o nível requerido pela manutenção do equilíbrio externo, dada a oferta de capitais do momento. Por isso, como no caso do padrão-ouro, o funcionamento desse "modelo de desenvolvimento" requer o isolamento dos seus administradores com relação a qualquer tipo de demanda ou reivindicação internas, o que supõe a despolitização radical das relações econômicas, o enfraquecimento dos sindicatos, a fragilização dos partidos políticos e dos parlamentos e, finalmente, a redução da vida democrática ao mínimo indispensável.
Nesse sentido, coloca-se novamente o dilema identificado por Polanyi e desenvolvido por Eichengreen: nesses casos, como ocorreu no século 19, ou se limita a mobilidade dos capitais ou a democracia. Um dilema muito mais difícil de ser enfrentado agora do que foi há um século, porque nestes cem anos, como previra Karl Polanyi, alargaram-se os sistemas políticos e o crescimento das grandes metrópoles aumentou geometricamente o potencial de resistência social a ser atropelada por uma estratégia monetária e orçamentária que reduz, inevitavelmente, as expectativas de mobilidade social da população. Dentro da camisa-de-força do sistema de "currency board", os países que o adotam estarão condenados a ter ciclos muito curtos de baixo crescimento, a menos que se transformem, como no caso dos "dominions" ingleses do século passado, em lugar privilegiado e permanente de alocação maciça dos investimentos orientados pelo capital financeiro internacional.
Uma hipótese difícil de sustentar porque, ao contrário da relação dos velhos "dominions" com a sua metrópole inglesa, no caso dos três novos candidatos à condição de "dominions" norte-americanos não existe complementaridade, mas competição entre suas estruturas produtivas, o que coloca no caminho do projeto os interesses internos da sociedade americana, que já se opôs ao Nafta e impõe permanentes barreiras protecionistas contra os produtos de exportação brasileiros e argentinos.
O que é ainda mais importante do ponto de vista das restrições "externas" a tal projeto é a própria natureza distinta do capital financeiro neste final do século 20, constituído, em grande parte, por fundos de investimento, cujos porta-fólios são permanentemente reavaliados pelos mercados. Eles buscam aplicações com a maior rentabilidade possível e com liquidez a curto prazo, o que é completamente incompatível com as necessidades de infra-estrutura e serviços básicos das economias dos novos "dominions". Por isso mesmo, tampouco é provável que esse capital financeiro deambulante construa economias complementares ou divisões internacionais de trabalho consistentes e duradouras.
No padrão-ouro a periferia atuava como uma espécie de "variável de ajuste" dos países centrais, hoje o capital financeiro vai de um mercado emergente a outro sem construir pontes sólidas e caminhos duradouros. A forma como se deu a expansão dos investimentos durante o padrão-ouro acompanhou os espaços hierarquizados do "imperium" e foi constituindo uma divisão territorial do trabalho que acabava funcionando, em alguns casos, como uma máquina complementar e permanente de crescimento. Hoje, o capital financeiro diluiu e flexibilizou ao máximo as fronteiras variáveis dos seus territórios econômicos, passando de um a outro país e região mundial sem se propor nenhuma fixação mais permanente, muito menos qualquer tipo de projeto "civilizatório" para a periferia do sistema.
Qual o limite desse projeto, até onde pode ir dentro desta nova onda expansiva da crença "quase religiosa" nos mercados auto-regulados, combinada com a crença quase ingênua no comportamento benevolente do poder hegemônico ou imperial? O que é certo é que esse projeto, a menos das condições mencionadas, é rigorosamente incompatível com um ritmo acelerado e sustentado de crescimento econômico. Por outro lado, ele é perfeitamente compatível com o aumento da riqueza privada de burguesias que sempre foram "voláteis" e podem se adaptar, portanto, com enorme facilidade, a uma nova condição, que seria inevitavelmente a do rentismo.
Nessa nova "civilização liberal", contudo, aumenta a velocidade com que os "mercados auto-regulados" vão destruindo "os interesses da sociedade como um todo". E, como isso ocorre sob um patamar muito mais elevado de desenvolvimento das forças produtivas e das necessidades sociais, também seus efeitos tendem a ser mais rápidos e violentos. Nesse sentido, ao contrário do que sonhara Smith, esse projeto, do ponto de vista das nações, torna mais fracos e não mais fortes os habitantes desses países, de forma que seus povos tendem a se afastar cada vez mais daquela "igualdade de coragem e força" que, segundo ele, seria capaz de intimidar a injustiça dos demais Estados.
Nesse sentido, se Polanyi tiver razão, e a lição liberal do século 19 transcender sua própria época, o que se deve esperar é que também se apressem e se intensifiquem as manifestações próprias do que ele chamou de "segundo movimento", que se manifestará pelo lado da demanda e da proteção social dos que vão ficando sem emprego nem subsistência. Mas, nesse caso, as pressões que vieram no século 19 pelo lado do "princípio da nacionalidade" deverão se apoiar nestas mesmas forças sociais. Porque já agora, em condições de crise cambial, o refluxo econômico deverá, uma vez mais, apontar na direção da substituição de importações, mas essa será apenas uma mera reação de mercado, se não contar com uma estratégia social de poder que aponte na direção democrática do fortalecimento da produção e da sociedade que segue contida pelas fronteiras territoriais do Estado nacional. A forma em que isso ocorrerá, entretanto, num mundo onde segue em plena expansão o poder dos interesses e das redes liberalizantes, é uma incógnita. Mas este é o ponto em que o enigma teórico se transforma num problema que só pode ser resolvido no campo da luta política.


José Luís Fiori é doutor em ciências políticas pela USP e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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