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José Luís Fiori analisa como países periféricos passaram a compartilhar
o seu governo com os EUA
Sem moeda nem coragem
da Redação
Leia a seguir trecho de um ensaio do economista José Luís Fiori
que faz parte do livro "Estados e
Moedas no Desenvolvimento das
Nações" (Ed. Vozes). Organizado
por Fiori, o livro conta ainda com
ensaios de Luiz Gonzaga Belluzo,
José Carlos Braga e Wilson Cano,
entre outros. A coletânea será lançada na quinta-feira, dia 9, às 19h,
durante o seminário "Desenvolvimento: o Fato e o Mito", que
acontece entre quarta e sexta-feira
na Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (informações pelo tel.
0/xx/ 21/587-7686). Entre os participantes do evento estarão Delfim
Netto, João Sayad e Maria da Conceição Tavares.
JOSÉ LUÍS FIORI
especial para a Folha
Durante a segunda metade do
século 19 foi possível compatibilizar a integração e dependência
econômica dos principais países
latino-americanos no padrão e no
ciclo da economia inglesa, com
sua subordinação à supremacia
geopolítica regional dos Estados
Unidos. No século 20 esses países
tiveram muito pouca importância
na Guerra Fria, mas aceitaram,
com total lealdade, a hegemonia
norte-americana e foram lugares
privilegiados de experimentação
da estratégia liberal-desenvolvimentista organizada por seus Estados, aliados ao capital financeiro internacional.
O caso do Brasil, neste sentido,
foi exemplar: com exceção de alguns momentos, nos governos
Vargas e Geisel, foi possível conciliar, com o apoio norte-americano, o liberalismo internacionalizante de suas elites civis, econômicas e políticas, com o nacionalismo anticomunista de suas elites
militares, promovendo uma industrialização com forte participação estatal e ampla "internacionalização do mercado interno".
Foi no início dos anos 70 que o
establishment intelectual e administrativo da política externa norte-americana começou a rever
sua estratégia com relação ao Terceiro Mundo e seu projeto desenvolvimentista. Não foi uma resposta ao pessimismo que se generalizara, a partir da América Latina, com respeito à eficácia das políticas de desenvolvimento. Foi
uma resposta ao questionamento
simultâneo do seu poder militar e
econômico, expresso, pelo lado
militar, como reação à humilhante derrota no Vietnã, e que se prolongou na imprevisão da guerra
do Yom Kippur e bem mais tarde
nas revoluções da Nicarágua e do
Irã. Pelo lado econômico, respondia à proposta de um grupo expressivo de países do Terceiro
Mundo favorável à rediscussão da
ordem econômica internacional,
o que supunha algum grau de redistribuição do poder entre os Estados como condição prévia do
sucesso dos projetos de distribuição da riqueza mundial.
Esse processo começou com o
sucesso da estratégia da Opep
(Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em relação ao
aumento dos preços do petróleo,
que por sua vez estimulou o aparecimento do Grupo dos 77 e de
sua proposta, aprovada pela Sexta
Sessão Especial da Assembléia
Geral das Nações Unidas em 1974,
favorável à criação de uma Nova
Ordem Econômica Internacional,
que incluía a formação da Unctad
(Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento) e a defesa do direito dos
países em desenvolvimento de: 1)
criarem associações de produtores; 2) vincularem os preços dos
seus produtos de exportação ao
movimento dos preços dos produtos industriais que importavam dos países desenvolvidos; 3)
nacionalizarem empresas ligadas
ao exercício da soberania sobre
seus recursos naturais; 4) definirem regras próprias para o funcionamento das multinacionais
nos seus territórios.
Agrega-se a essa agenda a defesa
da necessidade premente de rediscutir o sistema de tarifas e o
próprio sistema monetário internacional. Em síntese, uma
proposta de reforma global da ordem internacional vigente, que questionava a própria hierarquia
de poder que regia as relações interestatais.
A resposta americana foi
uma nova estratégia, que
proclamou a impossibilidade do desenvolvimento
generalizado e passou a
priorizar países e regiões.
Como dizia na época Robert Tucker, um dos intelectuais da nova estratégia,
tratava-se agora de "prestar atenção às reivindicações dos Estados que estão, em virtude de seu poder, em condições de
ameaçar a estabilidade internacional e assim a viabilidade do sistema" ("De
L'Inegalité des Nations",
Economica, Paris, 1977,
pág. 148). Ou, como afirmava Tom Farer na "Foreign Affairs", na mesma
linha, mas de maneira
mais explícita: "Mesmo
no que diz respeito às
questões econômicas, é
possível resolver o conflito
(com os países em desenvolvimento) não somente
porque suas exigências
são modestas, mas também porque é pequeno o
número daqueles países
que há que cooptar (...)
acertando-se com as elites
governantes de muito
poucos Estados. Na África, a Nigéria. Na América
Latina, Brasil, Venezuela e
talvez México (...)" (1975,
pág. 79). O objetivo último da nova proposta era bastante claro:
"Uma estratégia de compromisso
que vise ao enfraquecimento dos
laços que preservaram até aqui a
solidariedade entre os países em
desenvolvimento" (Tucker, pág.
150).
Foi nos anos 80, entretanto, a
partir da administração Reagan e
da sua grande restauração liberal-conservadora, que se criaram as
condições econômicas e políticas
que permitiram associar esta nova orientação geoeconômica ao
projeto simultâneo de abandono
do próprio desenvolvimentismo.
A "diplomacia do dólar forte" e a
falência financeira dos últimos
Estados desenvolvimentistas
abriram as portas para a promoção ativa da convergência das políticas econômicas da região.
Na segunda metade da década
de 80, a renegociação das dívidas
externas permitiu que a estratégia
de "cooptação seletiva" se associasse de forma mais clara e definitiva ao projeto de restauração
na periferia latino-americana do
princípio liberal vigente no século
19: mercados desregulados, economias abertas e exportadoras e
Estados liberais não intervencionistas.
O projeto de liberalização das
economias latino-americanas,
sintetizado na proposta geoeconômica do Consenso de Washington, durou pouco porque supunha que as reformas liberais
somadas a uma política macroeconômica ortodoxa seriam condição suficiente para manter uma
entrada abundante e constante do
investimento direto estrangeiro,
que passaria a ser o carro-chefe do
"novo modelo" de crescimento
econômico destes países. A crise
argentina e seu novo plano de estabilização, em 1990, baseado na
dolarização da economia, representou, de fato, um salto de qualidade e uma mudança de rota com
relação ao primeiro projeto.
Logo depois, a crise mexicana
de 1994 e o acordo que garantiu o
empréstimo de US$ 40 bilhões ao
país, e alguns anos depois, a crise
e o acordo com o FMI e o BIS
(Banco Internacional de Compensações), que garantiu o empréstimo de US$ 48 bilhões ao
Brasil, acabaram explicitando as
novas expectativas das elites liberais e internacionalizantes desses
três países. Nos três casos, o que
passou a ser proposto, de forma
explícita ou implícita, é uma mudança de estatuto com relação à
"cláusula" de aceitação da nova
ordem liberal. Argentina, México
e Brasil estão de fato se propondo
a deixar a condição de "mercados
emergentes", estimulados pelas
propostas norte-americanas do
Nafta e da Alca.
Na verdade, a nova utopia das
elites liberais e internacionalizantes dos três principais países latino-americanos deixou de ser a
simples integração liberal à economia internacional. Ela agora
responde pelo nome de "dominion" e se alimenta de um grande
paradigma: "As relações siamesas
entre Canadá e Estados Unidos,
que são muito extensas, mas que
têm muito pouco a ver com a situação de gêmeos, para ser exato
(...)" (H.A. Innis, "Essays in Canadian Economic History", University of Toronto Press, 1952, pág.
238). Apontam nessa direção, ao
terminar a década de 90, várias
decisões unilaterais tomadas pelos governos dos três países, e todos os acordos internacionais que
assinaram a partir de suas crises
cambiais. Na prática esses países
mantêm formalmente o autogoverno interno, mas compartilham
de forma crescente sua gestão
com os Estados Unidos, por meio
dos seus organismos multilaterais
e da "haute finance" americana.
Não dispõem de um sistema de
crédito e de capital financeiro sob
comando nacional e já tomaram
várias decisões que caminham,
em última instância, em direção à
dolarização das suas economias,
mesmo quando ela enfrenta fortes resistências internas e internacionais. Seu objetivo, agora, é garantir o afluxo de investimentos
com que contavam desde o início,
mas agora em condições de escassez e alta seletividade por parte
dos investidores privados internacionais. Daí a atração exercida
pelo sistema do "currency
board", criado exatamente para
garantir os capitais de investimento ingleses contra eventuais
instabilidades ou idiossincrasias
políticas dentro dos seus velhos
"dominions".
Por meio de privatizações ou fusões de suas indústrias, bancos e
serviços, já alcançaram um avançado grau de transnacionalização
de suas economias e seguem depositando todas suas expectativas
de crescimento no aumento da
participação dos investimentos
externos na sua formação interna
de capital. Não contam com a
continuidade territorial nem cultural que mantiveram o Canadá
ligado umbilicalmente à Inglaterra e aos Estados Unidos. E tampouco fizeram a conversão estrutural que permitiu ao Canadá passar, no século 20, diretamente, da
agricultura para a indústria sob o
comando dos mesmos capitais financeiros anglo-saxões.
Este é hoje o projeto em que
apostam, de forma explícita ou
implícita, as elites internacionalizantes da Argentina, México e
Brasil. Um projeto que não seria
impossível, se pensado apenas
num plano abstrato ou "teórico"
que desconhecesse completamente a história e as condições
objetivas desses países. Mas que
se defronta com grandes obstáculos reais, situados dentro e fora da
própria região. Começando, exatamente, pelo problema da relação das moedas locais com o sistema monetário internacional.
Hoje, ao contrário do século 19,
os Estados Unidos não se submetem e não aceitam nenhum tipo
de padrão monetário ou regra
cambial que entre em conflito
com os seus próprios interesses
econômicos e estratégicos. Como,
por outro lado, a economia dos
três candidatos a "dominion" não
tem condições de suportar, no
longo prazo, um sistema cambial
flutuante apontará sempre na direção de duas alternativas limites:
adotar o sistema do "currency
board" dos velhos "dominions"
ou a troca direta da moeda local
pelo dólar.
Os Estados Unidos rejeitam esta
última hipótese de dolarização
porque não têm condições, no
momento, de arcar com a responsabilidade da estabilização monetária e do equilíbrio orçamentário
de sociedades que ainda são democráticas e podem, portanto, escapar do seu controle centralizado, mas não colonial. Mas uma
parte expressiva do establishment
de Washington não se
opõe, pelo contrário, ao
sistema do "currency
board".
Nesse caso, o volume do
crédito interno e a variação das taxas de juros ficam condicionados pelo
volume ou escassez dos
recursos externos que entrarem nos três países.
Trata-se, na prática, de um
simulacro do padrão-ouro que mantém a possibilidade de desenvolvimento do país totalmente dependente do movimento
internacional de capitais,
deixando seus governos
completamente indefesos
diante de eventuais crises
nos mercados financeiros
globais. Esse será também
o limite de qualquer outra
solução intermediária e
transitória, como no caso
do modelo de "inflation
target" adotado -de novo- pelo Canadá e pela
Nova Zelândia e a Austrália. Mas não é por acaso
que essa política só tenha
sido adotada pelos velhos
"dominions" ingleses um
século mais tarde.
No caso de adoção de
qualquer destas "soluções" cambiais, a única
resposta a crises do tipo
das que ocorreram em
1997 e 1998, será sempre a
recessão, de forma a reduzir a produção e o emprego internos até o nível requerido pela manutenção
do equilíbrio externo, dada a oferta de capitais do
momento. Por isso, como no caso
do padrão-ouro, o funcionamento desse "modelo de desenvolvimento" requer o isolamento dos
seus administradores com relação a qualquer tipo de demanda
ou reivindicação internas, o que
supõe a despolitização radical das
relações econômicas, o enfraquecimento dos sindicatos, a fragilização dos partidos políticos e dos
parlamentos e, finalmente, a redução da vida democrática ao mínimo indispensável.
Nesse sentido, coloca-se novamente o dilema identificado por
Polanyi e desenvolvido por Eichengreen: nesses casos, como
ocorreu no século 19, ou se limita
a mobilidade dos capitais ou a democracia. Um dilema muito mais
difícil de ser enfrentado agora do
que foi há um século, porque nestes cem anos, como previra Karl
Polanyi, alargaram-se os sistemas
políticos e o crescimento das
grandes metrópoles aumentou
geometricamente o potencial de
resistência social a ser atropelada
por uma estratégia monetária e
orçamentária que reduz, inevitavelmente, as expectativas de mobilidade social da população.
Dentro da camisa-de-força do sistema de "currency board", os países que o adotam estarão condenados a ter ciclos muito curtos de
baixo crescimento, a menos que
se transformem, como no caso
dos "dominions" ingleses do século passado, em lugar privilegiado e permanente de alocação maciça dos investimentos orientados
pelo capital financeiro internacional.
Uma hipótese difícil de sustentar porque, ao contrário da relação dos velhos "dominions" com
a sua metrópole inglesa, no caso
dos três novos candidatos à condição de "dominions" norte-americanos não existe complementaridade, mas competição entre
suas estruturas produtivas, o que
coloca no caminho do projeto os
interesses internos da sociedade
americana, que já se opôs ao Nafta e impõe permanentes barreiras
protecionistas contra os produtos
de exportação brasileiros e argentinos.
O que é ainda mais importante
do ponto de vista das restrições
"externas" a tal projeto é a própria
natureza distinta do capital financeiro neste final do século 20,
constituído, em grande parte, por
fundos de investimento, cujos
porta-fólios são permanentemente reavaliados pelos mercados.
Eles buscam aplicações com a
maior rentabilidade possível e
com liquidez a curto prazo, o que
é completamente incompatível
com as necessidades de infra-estrutura e serviços básicos das economias dos novos "dominions".
Por isso mesmo, tampouco é provável que esse capital financeiro
deambulante construa economias complementares ou divisões
internacionais de trabalho consistentes e duradouras.
No padrão-ouro a periferia
atuava como uma espécie de "variável de ajuste" dos países centrais, hoje o capital financeiro vai
de um mercado emergente a outro sem construir pontes sólidas e
caminhos duradouros. A forma
como se deu a expansão dos investimentos durante o padrão-ouro acompanhou os espaços
hierarquizados do "imperium" e
foi constituindo uma divisão territorial do trabalho que acabava
funcionando, em alguns casos,
como uma máquina complementar e permanente de crescimento.
Hoje, o capital financeiro diluiu e
flexibilizou ao máximo as fronteiras variáveis dos seus territórios
econômicos, passando de um a
outro país e região mundial sem
se propor nenhuma fixação mais
permanente, muito menos qualquer tipo de projeto "civilizatório" para a periferia do sistema.
Qual o limite desse projeto, até
onde pode ir dentro desta nova
onda expansiva da crença "quase
religiosa" nos mercados auto-regulados, combinada com a crença
quase ingênua no comportamento benevolente do poder hegemônico ou imperial? O que é certo é
que esse projeto, a menos das
condições mencionadas, é rigorosamente incompatível com um
ritmo acelerado e sustentado de
crescimento econômico. Por outro lado, ele é perfeitamente compatível com o aumento da riqueza
privada de burguesias que sempre foram "voláteis" e podem se
adaptar, portanto, com enorme
facilidade, a uma nova condição,
que seria inevitavelmente a do
rentismo.
Nessa nova "civilização liberal",
contudo, aumenta a velocidade
com que os "mercados auto-regulados" vão destruindo "os interesses da sociedade como um todo".
E, como isso ocorre sob um patamar muito mais elevado de desenvolvimento das forças produtivas e das necessidades sociais,
também seus efeitos tendem a ser
mais rápidos e violentos. Nesse
sentido, ao contrário do que sonhara Smith, esse projeto, do
ponto de vista das nações, torna
mais fracos e não mais fortes os
habitantes desses países, de forma
que seus povos tendem a se afastar cada vez mais daquela "igualdade de coragem e força" que, segundo ele, seria capaz de intimidar a injustiça dos demais Estados.
Nesse sentido, se Polanyi tiver
razão, e a lição liberal do século 19
transcender sua própria época, o
que se deve esperar é que também
se apressem e se intensifiquem as
manifestações próprias do que ele
chamou de "segundo movimento", que se manifestará pelo lado
da demanda e da proteção social
dos que vão ficando sem emprego
nem subsistência. Mas, nesse caso, as pressões que vieram no século 19 pelo lado do "princípio da
nacionalidade" deverão se apoiar
nestas mesmas forças sociais.
Porque já agora, em condições de
crise cambial, o refluxo econômico deverá, uma vez mais, apontar
na direção da substituição de importações, mas essa será apenas
uma mera reação de mercado, se
não contar com uma estratégia
social de poder que aponte na direção democrática do fortalecimento da produção e da sociedade que segue contida pelas fronteiras territoriais do Estado nacional. A forma em que isso ocorrerá, entretanto, num mundo onde
segue em plena expansão o poder
dos interesses e das redes liberalizantes, é uma incógnita. Mas este
é o ponto em que o enigma teórico se transforma num problema
que só pode ser resolvido no campo da luta política.
José Luís Fiori é doutor em ciências políticas pela USP e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
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