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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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O dia que o Brasil esqueceu

Tales A.M. Ab'Sáber
especial para a Folha

No longínquo ano de 1991 aconteceu um importante fenômeno de massa, desde uma forma estética e de pensamento verdadeiramente surpreendente. De repente, sem aviso prévio e nenhum sinal identificável, no mesmo instante e ao mesmo tempo milhões de pessoas mudaram o canal que assistiam em seu aparelho de televisão ou, simultaneamente, a desligaram.
Em uma determinada noite de quinta-feira daquele duro ano, o do apogeu do desastre do governo Collor, aconteceu o inimaginável: uma parcela significativa do público amante de novelas de televisão e da grande mãe de todas as novelas, a Rede Globo de Televisão, se recusou abertamente a seguir assistindo a uma delas. Em um momento preciso do fluxo do tempo, espécie de brecha utópica, sem nenhuma combinação, as pessoas se desligaram aos milhões da tão onipresente Rede Globo de Televisão. Ninguém mais se lembra do fenômeno, o que também faz parte de seu sentido paradoxal, de simultâneo desrecalque e sintoma regressivo, como pretendo pensá-lo.
Agora, no momento do lançamento de "Celebridade", uma nova novela de Gilberto Braga -o artista responsável pelo desligamento maciço do aparelhinho naquele episódio-, novela que promete, como é próprio dos melhores momentos do dramaturgo, adentrar os jogos simbólicos do poder e das relações entre classe e dinheiro no país, as reportagens surgidas nos grandes jornais, mesmo entre os mais conscientes do andamento das coisas da cultura entre nós, nada lembraram sobre o grande "happening" negativo de 91, que inconscientemente mobilizou uma multidão.
Nessas matérias, a história de Gilberto Braga foi contada direitinho, porém elidindo o seu grande momento, como a própria Globo sempre o desejou: que aquele estranho acontecimento, de evidente matiz político, jamais tivesse ocorrido.
É curioso que ninguém mais se lembre daquele que foi um dos maiores momentos da televisão entre nós, superado na prática por ficções políticas e emocionais "reais" mais eficazes nos anos que se seguiram. Analogamente, mas às avessas, os anos tucanos só tiveram a sua ruptura imaginária na consciência pública quando a catástrofe já ia avançada, no momento de seu grande, e também para todos surpreendente, apagão. Para a lógica conservadora e de chiques entre si dos anos tucanos podia-se mesmo esquecer o acontecimento ao redor de "O Dono do Mundo".
Que estranho objeto estético ou de pensamento tomou a telinha da TV naquele longínquo 1991? Era apenas mais uma novela do já então celebrado Gilberto Braga, o mesmo autor de "Escrava Isaura" (1976), "Dancing Days" (1979) e "Vale Tudo" (1988); tratava-se da primeira novela de Braga após o grande reconhecimento artístico e emocional da minissérie "Anos Dourados" (1986) e da imensa comoção de "Vale Tudo". O novo produto tinha o título de "O Dono do Mundo" e teve, na época, o maior e mais requintado investimento já feito em uma novela entre nós. A começar pela abertura, baseada na célebre imagem de Charlie Chaplin a brincar com o globo terrestre, comprada dos detentores dos direitos de "O Grande Ditador", de 1940. Com essas muito clássicas imagens cinematográficas transcorria uma elegante canção de Tom Jobim, composta e interpretada especialmente para a novela.
Essa imagem inicial, do grande ditador de Chaplin a brincar displicentemente com o mundo, sob uma elegante e irônica neobossa executada por piano e orquestra, já indicava em uma solução da imaginação o material explosivo que o folhetim eletrônico encerrava. No tempo em que a poderosa Globo, por meio da explícita vontade de seu proprietário, Roberto Marinho (1904-2003), acabara de interferir de forma decisiva na primeira eleição livre do país em 25 anos, na época da emergência do arrogante arrivismo apleboisado e bufo do primeiro tempo do governo Collor, com seu desprezo pelo dinheiro popular, "O Dono do Mundo" tinha início com sua cifrada referência a ditadores absolutos e satisfeitos, que confundiam seu poder com o melhor da cultura local, a muito carioca, mas também universal, música de Tom Jobim. A alegoria que reúne poder absoluto, satisfação pulsional pelo total predomínio diante do outro, cultura local e universal de qualidade, tudo sobre a particular aura de verdade daquela imagem clássica, era muito sugestiva, e é surpreendente que o sistema de autocensura da emissora tenha deixado passar uma tão clara notação irônica diante da sua própria estrutura de poder, que fazia suas peripécias no próprio país.
Pois bem, logo nos primeiros dias da novela, de grande sucesso, como era de esperar, ela se completa com o desligamento em massa e uma comoção da opinião pública, que vai acossar fortemente o seu autor nas semanas que se seguiram ao imprevisto apagão. Podemos relembrar um pouco o seu quiproquó dramático, a origem do fenômeno.
Felipe Barreto, provavelmente a maior personagem já interpretada por Antonio Fagundes, é um importante cirurgião plástico, casado com a filha de um milionário carioca e figura destacadíssima da sociedade local. Homem de caráter duvidoso, ele esbanja desprezo de classe e fetichismo de consumo e luxo, ao que chama de "bom gosto". Homem inteligente, ele disfarça cuidadosamente sua violência para com seus pares de classe com elegância e espírito. Sabendo do casamento de um assistente seu, Felipe Barreto aposta com seu secretário particular, Júlio, uma caixa de champanhe francês que ele consegue deflorar a bela e pobre noivinha virgem, Márcia, a jovem Malu Mader, antes mesmo de o casamento se consumar.
Está armada a estrutura muito própria a um melodrama clássico de fins do século 18 e início do 19, a la Richardson, mas que põe em movimento um jogo simbólico referente aos lugares das classes no Brasil do fim do século 20. Após muitas peripécias e uma velocidade dramática estonteante, nunca antes vista em dramas de televisão, que vai ampliando belamente o leque dos lugares e dos circuitos sociais representados na novela, em seu quarto dia de exibição, uma quinta-feira, subitamente chegamos ao capítulo em que Felipe Barreto desvirgina a noivinha, que se oferece por ela mesma, acreditando na nobreza de espírito do sedutor e na verdade de sua paixão por ela. Isso acontece mais ou menos na metade do capítulo, e não ao final, como preconizavam as novelas antigas. Como podemos ver, a novela se inaugura com uma forma e um ritmo dramático intensos e muito bem concebidos, de maneira intelectual mesmo, por seu autor.
Imediatamente após o acontecimento dramático, político e sexual, ainda durante o capítulo, o ibope despenca: enquanto nos dois dias anteriores a novela perdera quatro pontos de audiência em relação aos 48 pontos da sua estréia na segunda-feira, apenas no fatídico quarto capítulo a novela perdeu nada menos do que nove pontos de audiência, em um fenômeno jamais visto em semelhantes casos. O melhor produto realizado pela televisão brasileira em sua história teve uma queda de 13 pontos de audiência em seus quatro primeiros dias de exibição, sem que ninguém pudesse prever o fato.
Impacientes, os espectadores, alguns ofendidos, outros humilhados, desligaram o aparelho antes mesmo de o episódio terminar. Ainda me recordo de que nos dias seguintes a empregada doméstica de minha mãe, com seu radinho de fofocas, fazia coro com uma boa parte da elite carioca sobre o desrespeito (a quem?), a pouca-vergonha, como ela dizia em seu baixo moralismo impotente, proporcionada a todos pela perversa novela. O autor foi logo enquadrado dentro e fora da empresa e teve que dar declarações explícitas de que Felipe Barreto seria punido, de que ele mesmo, Gilberto Braga, era um moralista e de que a novela passaria a se comportar melhor.


Tudo parece indicar que pela primeira vez o teledrama brasileiro encontrou um limite objetivo na relação da sua forma com a sua matéria social


De fato, ao longo de sua longa história, nada disso aconteceu: feita a tentativa de punição e rebaixamento de Felipe Barreto, mais ou menos no segundo terço da novela ele seduz novamente a mocinha Márcia e novamente lhe joga na cara que ela era apenas um objeto do seu puro desejo. Por fim, ele retorna ao campo de influência da sua mãe de adoção, a socialmente perversa Constância Eugênia, interpretada por Nathalia Timberg, se afasta da mãe boa, mas cafetina de luxo, Olga Portela -papel brilhante de Fernanda Montenegro- e se casa novamente com uma moça muito jovem, uma quase adolescente, filha de um milionário do interior do Brasil. Na última cena da novela Felipe Barreto está no altar com a linda e rica jovem, quando ele se vira para a câmera, colocada ao seu lado, dá uma piscadela e um sorrisinho cafajeste e em tom cínico arremata: "E é virgem!...".
O fato de Gilberto Braga não ter desvirtuado o poder sádico e cínico da parcela de elite que lhe interessava observar -que nada aprende no espaço dramático e histórico da novela, negando a ela, e a nós, qualquer redenção imaginária possível- faz parte da grandeza da obra, tanto quanto o choque e o curto-circuito na esfera pública que ela realizou.
Podemos pensar a correspondência entre o evento, acontecido como espécie de formação do inconsciente por meio de "O Dono do Mundo", no início dos anos 90 brasileiros, com a célebre transmissão radiofônica de Orson Welles e seu Mercury Theatre de "A Guerra dos Mundos", nos Estados Unidos de 1938. Lá Welles localizou e positivizou a profunda paranóia nacional americana, medo culposo generalizado e pronto para achar que seu mundo e sua vida serão exterminados pelo outro, princípio emocional delirante que está no fundo do histórico belicismo imperial do país, que -como recentemente notou Paulo Eduardo Arantes- faz do mundo uma imensa fronteira de si mesmo, região de exceção e barbárie, fronteira que, como a ficção científica não cansa de nos ensinar, não tem limites nem mesmo no espaço e, como pensou o filósofo local, não se limita a nenhum espaço. Como se sabe, ao ouvirem parcialmente a transmissão da adaptação para o presente da novela de H.G. Wells, milhares de pessoas entraram em pânico com a invasão marciana em todo o país -tornado agora ele mesmo a fronteira de um outro império em expansão tecnológica, o marciano-, produzindo um caos por algumas horas que chegou a resultar mesmo em algumas mortes.
Aqui, no mesmo registro da comunicação de massa e de maneira igualmente surpreendente, Gilberto Braga levou seus milhões de espectadores pelas mãos -de forma psíquica adormecida para o sentido do que estava em jogo para eles mesmos- até o ponto exato da novela em que a comunicação de uma imagem do país e de si mesmos se tornou insuportável, instantaneamente, como um brusco despertar de quem se afasta de um pesadelo. A maestria do hipnotizador das massas está exatamente aí: controlar tão bem as estruturas da sua linguagem que os espectadores alienados da novela são levados a um ponto de pensamento que ainda a pouco lhes era inconcebível, em uma figuração da força amorosa da sedução, a qual por fim todos reagem bruscamente, defensivamente, fugindo e negando tal matéria e tal forma, impensável imagem especular que se fez horror.
Dessa forma Gilberto Braga confrontou seu conformado país com a sua própria fratura simbólica, desvirginando seu público e fundindo pensamento e sexualidade: os donos do mundo aqui têm total direito sobre o outro, objeto que se oferece docilmente -como a mocinha Márcia, por amor ao outro perverso de classe e para existir para ele- para a manipulação e o gozo exclusivos dos senhores, cujo resultado final é a alienação do fraco de qualquer direito objetivo.
Naquele contexto histórico de escárnio do poder corrupto e violento do país, promovido, em parte, pela própria Globo, por um segundo as massas foram chocadas pela realidade simbólica de seu lugar no jogo brasileiro e, não suportando o que viram, atacaram a forma pensamento, tecida no todo do tempo, da novela de Gilberto Braga.
Há um curioso paradoxo em todo esse sintoma coletivo, que cinde o país em um movimento que tem de um lado um pólo muito alto e, de outro, o rés do chão. Como produção de uma falha no circuito tradicional da recepção do drama -falha em que o dramaturgo fala pela exigência reflexiva e emocional que faz a seu público, enquanto este cala a própria reflexão e passa ao ato de desligar a TV-, tudo parece indicar que pela primeira vez o teledrama brasileiro encontrou um limite objetivo na relação da sua forma com a sua matéria social, resolvido pelo autor, mas epica e muito paradoxalmente inconscientemente rechaçado por seu público. De modo específico, a telenovela brasileira entrava na era da crise da forma drama, calando a sua possibilidade ao romper o circuito do seu encantamento -mesmo que a contrapelo- e ao se tornar subitamente épica, mesmo que na esfera do sintoma.
Talvez a novela tenha adentrado aquela crise da representação unitária e de mutismo que Peter Szondi localizou no final do século 19 e primeira metade do século 20 no teatro europeu de Ibsen, Tchekóv, Strindberg e Hauptmann. Podemos mesmo dizer, como Szondi escreveu sobre "Os Tecelões", de Hauptmann, que a crise de "O Dono do Mundo" se daria ao redor da "contradição entre a temática épica e a forma dramática não destituída que parece ser responsável por ela". Desse modo Gilberto Braga esteve nos limites da forma e do conteúdo social de seu meio, o que foi percebido por seu público e, infelizmente para o pensamento, para a estética e para todos nós, rechaçado.
Voltando a nossa comparação de fundo, enquanto Orson Welles, em sua época, deu forma e conteúdo para a expansão de um aspecto da psicose americana, que passou a alucinar quando encontrou seu espelho positivo no objeto da indústria cultural, Braga levou a consciência brasileira ao limite das suas contradições estruturais, e a novela adaptativa e conformista foi por um segundo odiada e atacada, bem como nos anos seguintes o fenômeno foi esquecido ou, a bem dizer, recalcado, em uma sintomática defesa diante do pior, a verdade insuportável: neste nosso mundo existem os donos absolutos de toda a riqueza, de todo o gozo e de todo o falso jogo dos direitos, e os despossuídos de tudo se entregam masoquisticamente a eles. A promessa utópica de "O Dono do Mundo" seria a possibilidade de suportar tal consciência-limite do estado sadomasoquista das coisas de classe no Brasil, para poder atacar o mal real, e não a sua figuração melodramática no sonho, tornado pesadelo, da novela.
Aqui o desenvolvimento da consciência como salto e ruptura, gesto de um despertar histórico, como artistas radicais da modernidade como Brecht ou Eisenstein propuseram para as formas do teatro e do cinema, surpreende a todos ao aparecer disfarçado sobre a arcaíssima estrutura maniqueísta do melodrama, forma ficcional própria à origem mesma do capitalismo, que no Brasil de fins do século 20 ainda articula algo da realidade simbólica das coisas. Mas tal salto do pensamento que pudesse alcançar a verdade de sua realidade mais uma vez foi dado para trás, bem ao contrário do desejo do artista. É nessa regressão que ainda estamos instalados e talvez, provavelmente, com um grau muito mais sofisticado de desprezo pelas coisas reais do que aquele que já se tornou impensável na novela de Gilberto Braga.
Não deixa de ser significativo também que, nos Estados Unidos, o fenômeno de massa ao redor da transmissão de Welles tenha se tornado uma referência para o pensamento e o entendimento dos problemas concernentes aos meios de comunicação, criando uma consciência histórica a respeito das formas de sua própria cultura, enquanto no Brasil, diante do nosso "happening" negativo de massas ao redor de "O Dono do Mundo", a tendência tenha sido bem a contrária: tratou-se de apostar no esquecimento, de tirar o acontecimento do mapa.
Desses dois episódios históricos -o de Orson Welles e o de Gilberto Braga-, dos efeitos algo inconscientes dos meios de comunicação de massa, pode-se talvez sonhar com a esperança de cataclismos positivos nessa esfera, para além do sujeito da consciência, que, bem ao contrário da adaptação preconizada cotidianamente, pode levar à apreensão da estrutura de nosso mal-estar comum. Tal expansão do pensar poderia, no momento certo, ser de superação ou despertar, do maior dos pesadelos, nossa própria realidade.

Tales A.M. Ab'Sáber é psicanalista, membro do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professor da Escola da Cidade. É autor de "A Imagem Fria - Cinema e Crise do Sujeito no Brasil dos Anos 80" (Ateliê Editorial, 2003).


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