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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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"O Sortilégio da Cor" critica a defesa da mestiçagem na sociedade brasileira presente nas obras de autores como Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro

A ideologia que lava mais branco

Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

Este livro -"O Sortilégio da Cor"- merece ser elogiado por abordar sem papas na língua a supremacia do branco e a opressão dos negros, demolindo os mitos do homem cordial e da democracia racial na sociedade brasileira. Que o leitor atente para a estatística da desigualdade social como fenômeno cromático. "Os negros ganham menos da metade do que ganham os brancos. Aproximadamente 26% dos negros, contra 16% dos brancos, ganham menos de um salário mínimo, enquanto 1% de negros, contra 4% dos brancos, ganham mais que dez vezes o valor do salário mínimo. Os afro-brasileiros instruídos ganham menos que os brancos com o mesmo nível de educação e, nas faixas mais altas de renda, recebem quase seis vezes menos que os brancos." De nascença e formação acadêmica norte-americanas, vivendo há décadas no Brasil, a autora -na história das nossas idéias- nutre especial admiração por Guerreiro Ramos e Abdias Nascimento. Ela sublinha em vários momentos sua tese de que a discriminação racial é o componente básico das desigualdades sociais e que ela não deve ser diluída na questão de classe social.

Branqueamento
Ideologia que está nos discursos acadêmicos e nas representações do senso comum, a mestiçagem é uma grande mistificação porque traz embutida o "ideal de brancura". E mais: a ideologia da mestiçagem, assentada no suposto critério anti-racista da etnia, converte o homem mestiço em um "branco virtual". E o antigo mote, travestido em argumento culturalista, do branqueamento da população de cor. Também não agrada a Elisa Larkin Nascimento a ênfase na conversão do negro africano em negro brasileiro no decurso da nossa história. O xodó epistemológico da autora pelo sociólogo Guerreiro Ramos está expresso no seu auto-retrato sobre o "niger sum". O que significa afirmar a auto-estima afro-descendente como totalidade cultural, ou seja: "O negro no Brasil é povo", no dizer do notável sociólogo Guerreiro Ramos, acrescido da ressalva de que o negro no Brasil não é o povo. No livro de Nascimento, a palavra "folclore" ganha sentido invariavelmente pejorativo, de modo que está ausente a abordagem de Luis da Câmara Cascudo sobre o negro na sociedade brasileira, principalmente porque o assunto é o processo de sua desafricanização. Por onde e como o negro africano se torna negro brasileiro, mas isso não nega em nós o "made in Africa". A autora denuncia a ignorância do público intelectual sobre a África, o berço da humanidade, esse legado sociopsíquico por nós recalcado que veio com o pacote colonial da escravidão; todavia a miscigenação é um fato empírico irrecusável que já aconteceu no passado, em que o afro-descendente virou brasileiro por causa, entre outras coisas, da comida e da bagaceira. Os orixás baixaram aqui, mas não alcançaram Portugal. O lusotropicalismo de Gilberto Freyre é rejeitado por fazer uma espécie de erotização das desigualdades sociais, assim como a noção de metaraça ou de sincretismo aparece enquanto ideologia do negro como "branco virtual". O quase branco.

"Nova Roma"
Darcy Ribeiro também não escapa da crítica do "sortilégio da cor", tido como um antropólogo do patriarcalismo e do branqueamento. Até mesmo o qualificativo "latino" é um termo inapropriado à América do Sul, além de sua "Nova Roma" ser uma escamoteação da negritude.
A autora pega pesado com a antropologia de Darcy Ribeiro, indispondo-se contra o seu suposto machismo e sua linguagem "chula". "Ressuscitar Roma é atualizar o mito ariano", escreve sobre a morenidade e o povo novo mestiço de Darcy Ribeiro. De dialética e materialista, a sua antropologia aparece como um saber conservador ou de direita que legitima e justifica o "supremacismo branco na cama da democracia racial".
É curioso esse juízo áspero e equivocado acerca do mentalizador do "socialismo moreno". Senador, Darcy Ribeiro dedicou um número de sua "Carta" a Zumbi, na qual escreveu um verdadeiro manifesto sobre "ser negro", vendo nos quilombos as primeiras tentativas de socialismo na história do Brasil. Injusto seria acusá-lo de racista. Ele nunca quis que o negro desaparecesse pela mestiçagem. Cito-o: "A democracia racial é possível, mas só é praticável conjuntamente com a democracia social. Ou bem há democracia para todos ou não há democracia para ninguém, porque, à opressão do negro condenado à dignidade de lutador da liberdade, corresponde o opróbrio do branco posto no papel do opressor dentro de sua própria sociedade".
Darcy achava que negros, índios, mulatos, curibocas, mestiços, brancos, cafusos, somos todos um povo proletário externo destinado a enricar os núcleos cêntricos do capitalismo imperialista.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa Amarela) e "Biomassa" (ed. Senac).


O Sortilégio da Cor
416 págs., R$ 51,50
de Elisa Larkin Nascimento. Ed. Selo Negro (r. Itapicuru, 513, conjunto 72, CEP 05006-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3862-3530).


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