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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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Ponto de fuga

Mostrar e demonstrar

Jorge Coli
especial para a Folha

Talvez não exista um filme mais singular do que "Soy Cuba" ("Eu Sou Cuba"). Saiu em DVD, no Brasil, já faz algum tempo, pela Continental.
Em princípio, é uma longa propaganda sobre a revolução cubana, feita por russos, em 1964. Mas a propaganda se quis poesia, o roteiro foi confiado a Yevgeny Yevtushenko, e o diretor, Mikhail Kalatozov, fez de sua câmera instrumento do lirismo. Não mostra um "real", secreta algo que possui a textura das lendas. Não trata do que vem depois da revolução, não celebra o agora, escolha que poderia conduzir o filme para o campo do documentário, a par de "O Triunfo da Vontade", de Leni Riefenstahl. Fala de um "antes", de um passado recente percebido como mito longínquo, espécie de memória transfigurada.
A verossimilhança histórica é o de menos, assim como qualquer louvação positiva. Não existe, porém, formalismo dissolvente -formalista era a acusação da época a Kalatozov; nem russos nem cubanos, por sinal, gostaram do filme. As intenções demonstrativas, pressupostas no projeto, atenuam-se diante das imagens enérgicas. Alguns críticos descobriram nelas uma herança de Eisenstein. A hipótese convence pouco, já que "Soy Cuba" não investe na montagem e se constrói inteiramente por uma extraordinária fluidez de planos em sequências ininterruptas: é nesse fluxo que o mundo emerge e os personagens também. Em vez de um discípulo de Eisenstein, Kalatozov se revela antes um mestre que prenuncia, sem maneirismo estilístico nem espírito de sistema, a aposta cinematográfica de "A Arca Russa".

História - "Soy Cuba" permite, como nenhum outro, intuir uma certa essência do cinema. Ela está acima do realismo, do maniqueísmo, da encomenda, da propaganda, da ideologia, do engajamento, das crenças, dos enganos e da História, brota do mistério da criação. "Soy Cuba", esplêndido, ficou esquecido por mais de 30 anos. Foi restaurado e distribuído, graças aos esforços de Martin Scorsese e Francis Ford Coppola.

Peritos - Distribuído nas bancas -mas na verdade não é muito fácil de encontrar- o primeiro número da revista "Cine Monstro - Horror Magazine". Tem um tom de enciclopédia, é menos analítica que erudita, fonte preciosa de informações. Vindos de especialistas apaixonados, os dados são precisos e rigorosos. Nele, há um dossiê consagrado à diabólica Barbara Steele.

Fontes - Depois do futurismo, a pintura italiana da primeira metade do século 20 fechou-se sobre si e voltou-se para o passado, para a solenidade imóvel do "quattrocento", para Piero della Francesca. O episódio da arte metafísica -ou seja, essencialmente De Chirico- vincula-se também à imobilidade, reagindo à vertigem dinâmica das experiências futuristas. Pintores célebres na península, como Casorati ou Sironi, não entravam nas correntes internacionais da arte moderna. Tiveram, porém, um impacto na arte brasileira e também na argentina e uruguaia, como vem demonstrar a exposição "Novecento Sudamericano", na Pinacoteca do Estado, em São Paulo.
O conjunto traça algumas indicações, revela artistas excelentes, cria diálogos fecundos, mas permanece como uma espécie de esboço fragmentário. O número de obras, que já era reduzido na versão da mostra apresentada na Itália, como atesta o catálogo editado por Skira, é ainda menor em São Paulo. Além disso, as telas italianas limitam-se àquelas pertencentes a instituições de Milão; foram solicitadas somente duas, dentre as numerosas que fazem parte do extraordinário acervo do Museu de Arte Contemporânea da USP.
Dessa forma, a questão, de importância crucial, é apenas aflorada, sugerindo futuros estudos aprofundados, mostras mais ambiciosas e complexas, que certamente trarão renovações essenciais para o conhecimento da história das artes latino-americanas. Na visita aos quadros reunidos na Pinacoteca, permanece, de qualquer forma, o prazer de descobrir algumas obras raras, confidenciais e serenas, como o "Descanso", de Lorenzo Gigli, o "Desocupado", de Horacio March, ambos argentinos, os retratos femininos misteriosos do uruguaio Gilberto Bellini.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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