São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2008

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Ponto de Fuga

Os que somem no nevoeiro


Intuições se infiltram no espírito do leitor e o tomam, e então as palavras fazem o coração se apertar; comoções assim surgem à leitura de "Réquiem", de Lêdo Ivo


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Estranho poder o das palavras, agenciadas de uma certa maneira, ao encontrar ritmos secretos e correspondências imprevistas. A arte da poesia não se dirige à consciência. Nela, as frases brotam do indizível para melhor a ele nos conduzir.
Na poesia, as palavras morrem como designação e ressuscitam, além da linguagem, como talismãs cheios de poderes que não se explicam. Intuições se infiltram no espírito do leitor e o tomam. É então que elas, as palavras, fazem o coração se apertar, tornar-se frágil. São comoções assim que surgem à leitura de "Réquiem", poema em 18 momentos de Lêdo Ivo. Está lá o verso: "As palavras me seguem como cães". São fiéis e vivas. Hilda Hilst escreveu sobre "os olhos de cães", que entendem sem entender e exprimem o silêncio.
A matilha do poeta o acompanha neste canto que invoca o fim último: "E a morte insolente segue os passos/ dos homens que caminham sob o sol/ rumo à noite suprema, ao mar irregular".
Há versos que recordam Mário de Andrade: "As luzes do aeroporto correm como arlequins". Esse eco, porém, se incorpora e se dissolve na expressão pessoal, plena do autor. O tom desse "Réquiem", enevoado e calmo, não resiste por vezes à irrupções mais eloqüentes, que exclamam. Elas indicam uma pulsão romântica, que surge também no gosto pelas metáforas, nas aliterações sonoras.
Assim, "Mar, tambor e martelo, música e sal da vida,/ grande mar retumbante, eis-me ao teu lado!" parece trazer, de longe, a sombra de Castro Alves, outro amoroso de outros oceanos. Mas, de imediato, volta o fluxo lento e absorto: "Junto à ponte do estaleiro que range sobre as vagas/ aspiro ao silêncio dos peixes"...

Páginas
A vida é uma viagem, dizia Proust, mencionando Anaxágoras. "Réquiem", de Lêdo Ivo, acrescenta: é um longo caminho entre dois nadas. Essa admirável meditação sobre a fugacidade e o término, banhada em imaginários mares, foi publicada num volume de grande beleza (editora Contra Capa). Vem ilustrado por fotos de telas e objetos delicados criados por Gonçalo Ivo, filho do autor, nas quais a matéria, sempre presente nas superfícies acidentadas, torna-se prenhe de cores luminosas.
A felicidade cristalina das pinturas se contrapõe ao tom pensativo do poema, em que todo traço, toda marca, se esgarça e se apaga. Gianguido Bonfanti acrescentou um forte, um terrível desenho feito com nanquim: o retrato de Lêdo Ivo.

Citação
"Com a sua mão sinistra a morte esmaga/ nossos sonhos de insetos deslumbrados/ e entorna a alvura da água contida no vaso/ prometido ao desastre de uma flor de estilhaços./ A morte, sempre a morte, a nos importunar/ com seu zumbir de mosca funerária." Lêdo Ivo, "Réquiem".

Crimetime
Todo leitor de Sherlock Holmes sabe que o detetive é capaz de "adivinhar" qualquer coisa pela simples observação.
O mundo não tem segredos para sua mente superior e para seu olhar. Sonho radical de um positivismo sem freios, diante de Sherlock Holmes ninguém pode ter segredos. O ótimo piloto de uma nova série da CBS, criado por Bruno Heller (um dos idealizadores de "Roma") parte desse exato princípio. Seu título é "The Mentalist" [O Vaticinador].
Nele, um investigador resolve crimes intrincados graças a sua observação e intuição excepcionais. Está à caça de um serial killer, Red John, cujos dons são tão poderosos quanto os seus: é um equivalente de Moriarty, o terrível adversário de Holmes.


jorgecoli@uol.com.br


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